Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sapato neles, Millôr

Por isso, catrâmbias, que o adjetivo genial não deve ser usado imoderadamente. É preciso guardá-lo com zelo para aplicar em quem o justifique. O mundo perdeu o genial Millôr Fernandes. Genial, dou as provas: escritor talentoso, frasista que pegava na veia, jornalista invenal, um dos criadores do mítico jornal O Pasquim, cartunista de primeira, autodidata, humorista fino e culto, fustigador da burrice que prejudica o país, vergastador de sacanalhordas no poder e muito mais. Superabundante Millôr Fernandes. O Prêmio Nobel de Literatura deveria tê-lo ganho.

As emissoras de televisão, ao noticiarem a morte do autor, se preocuparam demais com data de nascimento. Millôr Fernandes anulou isso de idade, essa chatice de contar tempo de vida. Foi jovem à vida toda. Alcançou a mágica de saber levar a vida no riso. Quem ri não tem idade, não morre em vida. É a impressão que me deu o que li na obra dele.

Genial sim, mas é exagero dizer que tudo o que fez foi sublime, como dito no calor da despedida, até por gente séria. Como todo grande escritor, também pisou no barro dos comuns. Aforismos, por exemplo. Há vários que, substituída a assinatura dele por a de um, digamos, Filemon Alberto Calazans, fariam muitos indagarem: “Qual é a desse tal Filemon?” Ninguém é genial o tempo todo, jamais, o que, aliás, é ótimo. Investigar momentos menores em artistas de escol é divertido e enriquecedor; ou seja, os graúdos, até quando não são magníficos, colaboram.

Um parágrafo

O TREM esbarrou com Millôr Fernandes algumas vezes. Em junho de 2007, teve a honra de ter a capa do segundo aniversário do jornal feita por ele. Atrevidamente, convidei-o. Topou e me perguntou o que eu queria. “Sua visão sobre um trem mineiro”, respondi, refletindo preocupadamente sobre essa audácia de pautar Millôr Fernandes. Senti-me um pouco como Rosário Fusco, da revista modernista Verde, de Cataguases, que, ao pedir colaboração a Mário de Andrade, sugeriu ao escritor enviar uma “bosta qualquer”.

Certíssimo o verde Fusco. Como garimpeiro a procurar a pedra grande, um comunicador tem de puxar papo com as altas inteligências. Para que perder tempo com os tolos?

O meu ousado convite rendeu umas historinhas que dão uns dez minutos de conversa e talvez interessem ao leitor – contarei-as em outro momento. Aliás, eu já havia incomodado o mestre anteriormente. Em 2004, antes da fundação dO TREM, Millôr Fernandes topou dar-me uma entrevista, que eu pretendia publicar no jornal O Cometa, no qual escrevi por cinco anos. Permanece inédita.

Continuando o assunto do quarto parágrafo. Millôr Fernandes contratado para fazer a capa do segundo aniversário dO TREM, chegam-me dias depois duas ilustrações, por Sedex. Uma continua inédita no arquivo do jornal, a outra é essa acima, a tal visão de Millôr Fernandes sobre um trem mineiro. Recebi os desenhos, bolei a capa e deixei a redação. Ao retornar, a secretária do jornal deu-me este recado: “Marcos, um tal de Millôr Fernandes ligou aí para você”. Sim, “um tal”. Foi atendido por quem ainda não tinha o prazer de conhecer a bela obra do craque do Méier. Não liguei de volta, agradeci-o por e-mail.

Não sei se exagero, mas tenho a sensação de que ajudei a criar fato para um parágrafo numa futura boa biografia de Millôr Fernandes: um gigante que aos 83 anos topou cortesmente colaborar com um novato jornal de interior, que ele nem conhecia. Hoje, O TREM tem uma simpática visibilidade, é citado em importantes meios de comunicação, em livros, tem leitorado de alto calibre cultural Brasil afora. Na época em que Millôr Fernandes fez a capa, essas conquistas ainda estavam na fase do sonho.

Outro apito

Desde então, passei a mandar O TREM para Millôr Fernandes, gare Ipanema, todo mês, sem falhar um único número, e – importante – nunca mais o incomodei. Ele passou a me dar toques sobre o jornal, por e-mail. Várias vezes, sugeriu melhorar a diagramação, principalmente para valorizar as epígrafes. “Ô pessoal dO TREM Bão, menos matéria, gente! Se não fica ilegível. É como o cara bacana que tem muita ideia e quer dizer todas ao mesmo tempo. Vamos AREJAR o pedaço. As frases, bem selecionadas, continuam difíceis de ler. Corpo maior! Elas merecem”, escreveu em março de 2008.

Meses depois, em setembro, apitou novamente: “Caro Caldeira (valha a aliteração), o jornal vai de vento em popa (sobretudo, espero, a popa), arejou bastante. Claro, pode arejar mais. Não desculpo as frases estarem com tipos tão pequenos e claros. De modo geral, estão muito bem escolhidas. Mas por que não, uma vez ou outra, dar, entre parênteses, uma ripada no ‘pensador’ mais pomposo? AbrAÇO. O Millôr”. Respondi que tinha razão e que em breve seria feita uma reforma gráfica, o que até hoje não cumpri.

No mês seguinte, ele comentou novamente sobre o tamanho das frases, numa mensagem em que anarquizou a grafia de uma palavra: “O caminho é esse, Caldeira. Ninguém é mais província. Continuo implicando com as letrinhas desmerecedoras, das citações. Abrassão”.

Em abril de 2009, escreveu citando um tal Ciro, mas até hoje não descobri de quem se trata. “É esse o caminho, Caldeira – apresentar ao mundo o Brasil, o cosmopolitismo da província. Sapato neles! Como diria o Ciro, O TREM é do caralho. O Millôr.”

Deu outro (a)pito em abril de 2010, com parte do texto em caixa alta. O jornal usou esta frase provocativa ao lado do logotipo: “O TREM nem parece jornal de Itabira”. Ele a viu assim: “Marcos Caldeira, tua propaganda ainda está com um certo tom de desculpa. ITABIRA É o mundo. E NÃO ESTOU EDULCORANDO NÃO, RAPAZ. O mundo”.

Em dezembro do mesmo ano, insistiu na questão das frases e usou meu sobrenome para incentivar o jornal: “Caldeira, O TREM está a caminho de ser um caldeirão. Mas não deixe de aumentar as citações, no alto das páginas. O leitor deve ser obrigado a ler”.

Millôr Fernandes, inspiração permanente para O TREM, que promete executar essa tão necessária quanto sugerida reforma gráfica. Millagradecimentos e sapato neles!

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Millôr nomeou o embaixador de Itabira no Rio de Janeiro

Em novembro de 2007, Millôr Fernandes sugeriu aO TREM uma brincadeira e parafraseou um verso de Carlos Drummond de Andrade no poema “Confidência do Itabirano”: “Por que vocês não pegam a estátua do Drummond, aqui no posto 6 de Copacabana, e fazem dela o embaixador de Itabira no Rio de Janeiro? A estátua, que poderia ficar ‘relegada’, já está virando uma integração na paisagem. Itabira hoje é uma estátua alegre ali no posto 6”. A boa ideia era para ter sido aceita de imediato, mas, por distração do editor, despencou no esquecimento.

Está acatada agora: Drummond esculturado em Copacabana, legitimamente nomeado embaixador de Itabira no Rio de Janeiro. Parado, produz mais para a cidade natal do que uma multidão que se move.

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[Marcos Caldeira Mendonça é jornalista, editor de O TREM Itabirano]