Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os escritores são mortais. Seus livros, não

Eram os tormentosos anos setenta, em Ijuí (RS). A então Fidene (sigla de Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado), que depois transformaria em universidade aquela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, patrocinava várias atividades de extensão, entre as quais um programa para Professores Rurais e uma Semana da Cultura Brasileira, e trouxera para falar aos alunos o romancista Ivan Pedro Martins e a cronista Elsie Lessa.

Não ligávamos os nomes às pessoas, mas estava naquele carro, depois de falar aos universitários do interior de três estados do Sul, a mãe de Ivan Lessa, que líamos em O Pasquim. O jornalista era filho de seu casamento anterior, com o escritor Orígenes Lessa. Elsie espantou-se porque alguém resolveu registrar aquele momento numa câmera cujo flash espocou assim sem mais nem menos na escuridão, iluminando a dama e o cavalheiro a seu lado, xará de seu filho.

Jantamos num moinho transformado em restaurante pelo cônsul da Alemanha em Panambi (RS), cidade vizinha de Ijuí, a não mais de trinta ou quarenta quilômetros. A prosa foi das mais agradáveis, e tanto a cronista quanto o romancista lembraram que os alunos eram muito interessados e, corajosos, tinham feito muitas perguntas.

Veio a década seguinte e um dia me ligam da BBC. Era Ivan Lessa que queria uma entrevista sobre os livros proibidos no período pós-64, que eu acabara de identificar em Nos Bastidores da Censura, fruto de minha tese de doutoramento na USP. Muito gentil, me avisou antes quais as perguntas que faria e marcamos a entrevista, tudo profissional e muito bem pautado.

Frases memoráveis

Num trecho de alguma de suas imaginosas narrativas curtas, José Luís Borges diz que quando morre alguém ligado a nós de algum modo, ficamos nos questionando as razões de não termos sido suficientemente bons e atenciosos para com o morto quando vivo.

Pois foi o que me ocorreu ao saber da morte de Ivan Lessa. Autor de poucos livros, todos memoráveis, mas de muitos textos avulsos e colunas, Ivan Lessa era curiosamente bisneto de um autor cujo romance me fora proibido nos anos de seminário. Sim, o autor de A Carne assinava apenas Júlio Ribeiro, reduzido de Júlio César Ribeiro Vaugham.

Era também neto de Vicente do Rego Themudo Lessa, pastor presbiteriano de fama internacional e respeitado historiador, membro dos Institutos Históricos de São Paulo, Santo Catarina, Espírito Santo, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará e também da Associação Paulista de Imprensa. Em sua homenagem, a Igreja Presbiteriana Independente, em São Paulo, deu seu nome ao Centro de Documentação e História Vicente Themudo Lessa.

Sem O Pasquim, provavelmente ele não seria tão conhecido da geração que hoje tem entre os sessenta e setenta anos. Ali criou a divertida seção “Gip! Gip! Nheco! Nheco!” e, na companhia de Jaguar, o rato Sig. Os mais jovens não o conheceram nos jornais, mas apenas dos livros: Garotos da Fuzarca, Ivan vê o mundo, O luar e a rainha.

Ivan não era apenas um grande autor de textos curtos, mas também de frases antológicas, como as que seguem, por homenagem a ele e para entretenimento dos leitores:

>> “Sincretismo religioso é quando um padre não passa debaixo de uma escada.”

>> “Baiano não nasce, estreia.”

>> “Três entre quatro políticos brasileiros não sabem que país é este. O quarto acha que é a Suíça.”

>> “A cada 15 anos, o Brasil se esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos.”

>> “Amar…é ser a primeira a reconhecer o corpo dele no Instituto Médico Legal.”

Ivan Lessa deixou uma filha, Juliana, de 36 anos, fruto de seu casamento com Elizabeth Fiuza, que foi quem o encontrou morto, em casa, ao voltar, à noite. Ela calculou que o marido deve ter morrido entre 16h e 18h30, no horário local.

A presidente Dilma Rousseff lamentou a morte do escritor:

“Ivan Lessa foi um escritor indomável. Foi irônico, mordaz, provocador, iconoclasta e surpreendentemente lírico – acima de tudo brilhante no trato com as palavras. Sua contribuição à resistência democrática está registrada nas páginas do Pasquim, um espaço de liberdade e crítica que Ivan e seus companheiros souberam abrir, com humor e astúcia, para toda uma geração de brasileiros, num momento em que isso parecia impossível. O Brasil perde um de seus cronistas mais talentosos”.

Mas não se fecham as cortinas nem termina o espetáculo quando se trata de escritores. Eles são mortais, mas seus livros, não.

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[Deonísio da Silva é doutor em Letras pela USP, vice-reitor da Universidade Estácio de Sá e autor de 34 livros, o mais recente é o romance Lotte & Zweig]