Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma carteirada histórica

Eu tinha uns 14 anos quando deparei com aquela figura esguia, pele extremamente branca, óculos fundo de garrafa, sentada à mesa do café da manhã da minha casa. Pedi desculpas por estar de pijama, e ele respondeu, com um sorriso e o mais britânico dos sotaques, que não havia problema. Mais um daqueles professores ingleses amigos de meu pai, pensei.

Não foi das maneiras mais brilhantes de conhecer o extraordinário historiador Eric Hobsbawm, que morreu nesta semana, aos 95 anos. Mas refletia bem o clima descontraído de suas estadias em nossa casa no Rio, na década de 70, quando meu pai começou a editar seus livros na Paz e Terra, e em São Paulo, nos anos 80.

Para mim, ele não era mais que um amigo gente boa dos meus pais. Isso até eu descobrir, pelos amigos barbudos da minha irmã, que tínhamos um ídolo dormindo no quarto ao lado. Ao me ouvirem dizer que Hobsbawm estava em casa, os colegas de Helena na faculdade de história da PUC arregalaram os olhos e ameaçaram invadir nossa casa para ouvir o mestre.

Às noites, quando chegavam os convidados para os jantares que meus pais ofereciam ao ilustre hóspede, as coisas ficavam mais animadas. A mistura era geral. É incrível lembrar agora Hobsbawm em nossa casa junto com figuras como Millôr Fernandes, Flávio Rangel, Fernando Pedreira, Fernando Henrique Cardoso, Oscar Niemeyer (que o historiador adorou conhecer), Luciano Martins, Gerardo Melo Mourão e Moacyr Werneck de Castro, entre outros, em clima tão descontraído.

Causa trabalhista

“Por favor mande minhas lembranças aos Callado, se voltar a vê-los, e a Darcy Ribeiro, Niemeyer e outros que encontrei (ou reencontrei) graças a vocês”, escreveu ele para minha mãe, Dalva, em maio de 1978, após uma das visitas.

Na carta, pediu desculpas ao meu pai, Fernando, por ter “passando tempo demais curtindo e descansando e tempo de menos nas atividades -leituras, entrevistas etc.-que ele poderia esperar de mim”. “Como você sabe”, justificou, “o Rio e a casa dos Gasparian não encorajam o trabalho”.

Em outra carta, galante, ele comentava que tinha conhecido minha irmã Laura, “tão charmosa e esperta e bonita quanto a primeira [Helena]. Qual sua fórmula secreta para trazer ao mundo crianças que crescem tão perfeitas?”

Hobsbawm era animação pura, ficava sempre até o fim da festa. Os tempos ainda inspiravam cuidado, pois o jornal Opinião, editado pelo meu pai, e que publicara os primeiros textos do Hobsbawm no Brasil, sofria censura e era seguidamente recolhido das bancas.

Dez anos depois, já trabalhando na Paz e Terra, que editava quase toda a sua obra, voltei a encontrá-lo. Nós publicamos inclusive a magistral coleção “História do Marxismo”, em 12 volumes, que ele havia organizado.

Foi nessa época que percebi a extrema atenção que ele destinava à causa trabalhista. Por conta da idade avançada, o historiador preferia não aceitar convites para falar em universidades e outros locais nobres, mas nunca recusava um chamado para falar a trabalhadores em algum sindicato.

Pensamento universal

Alguns anos à frente, quando voltou ao país para o lançamento de Pessoas Extraordinárias(2000), deu uma longa entrevista à Folha. Naquele fim de semana, ele e eu acordamos cedo no sábado para viajar com minha irmã e seus filhos ao litoral norte de São Paulo.

No caminho fomos parados pela Polícia Rodoviária, que me pediu os documentos do carro, e percebi que tinha os esquecido em casa.

Tentei conversar com o oficial. Sem conseguir contornar a situação, peguei a Folhapara mostrar que eu transportava uma pessoa importante -na primeira página da edição daquele sábado, havia uma grande foto de Hobsbawm. Após uma longa encarada típica de autoridade, o homem nos liberou. Em vez de ficar chateado com o contratempo, Hobsbawm achou graça. Foi literalmente uma carteirada histórica

Hoje, a obra de Eric Hobsbawm é admirada não só pelos barbudos dos anos 70 como por todos aqueles que, independentemente da ideologia, buscam um pensamento universal para entender o mundo moderno. É uma tristeza que tenhamos perdido, além desse amigo tão amável, um pensador dessa qualidade.

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[Marcus Gasparian é diretor da Editora Paz e Terra]