Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O repórter riu por último

A História, essa trapaceira, fez mais uma. Foi-se o repórter Fritz Utzeri que, em outubro de 1978, publicou, junto com Heraldo Dias, uma reportagem de três páginas no caderno especial do Jornal do Brasil intitulada “Quem matou Rubens Paiva?” Fritz foi-se no dia em que a Comissão da Verdade endossou a exposição da farsa do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

Quando Fritz e Heraldo publicaram a reportagem, o Exército informava que Paiva havia sido preso no dia 20 de janeiro de 1971 e, dois dias depois, saiu numa diligência, num Volkswagen, escoltado por um capitão e dois sargentos. Estavam na avenida Edson Passos, próxima ao Alto da Boa Vista, e foram interceptados por dois veículos onde havia seis ou oito “elementos desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local ignorado”. Rubens Paiva era um homem alto, corpulento. O coração da reportagem levava a uma pergunta lógica: como uma pessoa desse tamanho sai do banco de trás de um fusca, onde está sob a vigilância de dois sargentos paraquedistas, atravessa um fogo cruzado e vai-se embora?

Uma sindicância do 1º Exército encaminhada ao Superior Tribunal Militar fora uma farsa. Desde 1989, com a publicação do livro A Hora do Lobo, a Hora do Carneiro, do tenente-médico Amilcar Lobo, do DOI, sabe-se que ele examinou Rubens Paiva numa cela, nas primeiras horas do dia 21, diagnosticou-lhe uma hemorragia interna e recomendou sua imediata internação. Na manhã seguinte, soube que ele morrera.

Proteção aos mandantes

Fritz Utzeri riu por último porque a exposição do caso pela Comissão da Verdade deu-lhe uma nova dimensão. Ficando-se apenas na cena do desaparecimento de Rubens Paiva, de quem foi a produção da mentira? Do encarregado da sindicância? Dos oficiais que estavam no DOI naqueles dias? Do capitão e dos sargentos da escolta? O silêncio dos comandantes militares em torno dos crimes praticados com pleno conhecimento dos presidentes da República e dos hierarcas da época tem feito com que aquilo que foi uma política de Estado deslize exclusivamente para os ombros de oficiais que eram capitães, majores ou, quando muito, coronéis. Todos muito elogiados e frequentemente condecorados com a Medalha do Pacificador.

Os documentos oficiais da farsa do assassinato de Rubens Paiva arrolam seis oficiais e dois sargentos. Pelo menos dois militares daquele DOI estão vivos, um dos quais (major, à época) na condição de general reformado. Pelo andar da carruagem, será possível chegar a uma situação na qual os oito militares serão catapultados à condição de autores de uma farsa destinada a encobrir um assassinato. Passados mais de 30 anos, a política de acobertamento de crimes do Estado joga sobre os ombros dos subalternos toda a responsabilidade pelo cumprimento de diretrizes de seus superiores.

Enquanto houver um comandante militar dizendo que “sempre respeitamos os direitos humanos”, esse deslizamento será inevitável. “Sempre”, não. Seguindo-se semelhante doutrina cria-se uma situação na qual primeiro torturaram-se os presos e, depois, torturam-se os torturadores para preservar os mandantes.

Serviço: a reportagem de Fritz e Heraldo Dias está no site do Jornal do Brasil.

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[Elio Gaspari é jornalista e colunista da Folha de S.Paulo e do Globo]