Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

‘Um gesto de coragem em meio ao breu da ditadura’

Minha admiração por Ruy Mesquita – para ser mais preciso, pelo doutor Ruy, como era conhecido e como sempre o tratei – nasceu poucas semanas após minha chegada ao recém-nascido Jornal da Tarde, no segundo semestre de 1966.

Foi preciso pouco tempo para que eu percebesse que o JT, genial revolução jornalística concebida por Mino Carta e Murilo Felisberto, teria sido impensável em uma empresa conservadora como aquela se não tivesse um Mesquita segurando o tranco. Não só o tranco conceitual, que produziu a maior chacoalhada no jornalismo brasileiro desde a Última Hora, de Samuel Wainer. Mas também o financeiro. Por maior que fosse seu sucesso, o Jornal da Tarde dava prejuízo.

Com frequência penso que, menos que um novo negócio, o que orientava Ruy Mesquita na aventura da construção do JT era o prazer de fazer um jornal que ia mexer na alma da imprensa brasileira. O certo, seja como for, é que o Mesquita que segurou ambas as barras foi o doutor Ruy.

Traçar um perfil dele consumiria muito mais espaço do que disponho aqui. Mas algumas passagens do nosso convívio – sempre discreto e sem intimidades, como costuma acontecer entre empregados e patrões – talvez ajudem a revelar um pouco de seu caráter e de seu jeito de ser.

No começo dos anos 70 o Brasil, governado pelo general Garrastazu Médici, vivia o mais brutal momento da ditadura. A cada dia crescia a lista dos “desaparecidos políticos”, eufemismo com que o regime se referia aos opositores mortos sob torturas. O jornal era submetido a censura prévia por um funcionário do governo que despachava dentro da redação. Apesar disso, sugeri ao redator-chefe Murilo Felisberto (Mino Carta deixara o JT para criar a revista Veja) uma pauta ousada: eu queria fazer, in loco, uma reportagem especial sobre a Revolução Cubana. Murilinho sorriu ironicamente e me aconselhou a submeter a proposta diretamente ao dono do jornal.

Não sei se ele estava brincando, mas levei a sério a recomendação e, na primeira oportunidade, entrei na sala do doutor Ruy e pedi autorização para solicitar um visto de entrada em Cuba. Para minha surpresa, ele recebeu a proposta com naturalidade, mas cético quanto aos resultados. De trás da grande mesa de trabalho onde se apinhavam publicações estrangeiras, livros e pilhas de reportagens e editoriais escritos em laudas amareladas, deu uma baforada no cachimbo e respondeu, olhando por sobre os óculos pendurados na ponta do nariz:

– Em primeiro lugar, não creio que o governo cubano te conceda um visto ao saber onde você trabalha. Eles nos detestam. Se concederem, não acredito que a censura deixe sua reportagem sair. Mas se você conseguir superar esses dois obstáculos, o Jornal da Tarde publicará o que você escrever.

Mão estendida

Os cubanos acabaram me concedendo o visto, mas como doutor Ruy vaticinara, isto só aconteceu em 1975, quando eu já havia deixado o jornal. Nesse ano a Presidência da República era ocupada general Ernesto Geisel, tido como “aberturista” e “liberalizante”, mas a ditadura continuava perseguindo e matando seus adversários. No segundo semestre o regime promoveu uma razia contra o PCB, o ainda ilegal Partido Comunista Brasileiro, e em outubro a alça de mira dos órgãos de segurança apontava para o chamado “núcleo jornalístico” do partidão em São Paulo.

No dia 24 daquele mês, uma sexta-feira, um major e um capitão do DOI-Codi de São Paulo, vestidos à paisana, bateram à minha procura no 15º do prédio da avenida Paulista. Ali funcionava uma pequena editora montada por Samuel Wainer, Domingo Alzugaray e Luís Carta para lançar o semanário Aqui São Paulo, cujos números experimentais eu dirigia. Enquanto Wainer e Alzugaray enrolavam os militares na sala da diretoria, um lívido Luís Carta veio até minha mesa e sussurrou:

– Pegue suas coisas e vá embora: dois oficiais do Exército vieram te prender. Desça pelas escadas para evitar que você cruze com eles no elevador.

Contra mim pesava a acusação, eu viria a saber depois, de fazer parte da célula dos jornalistas do Partido Comunista Brasileiro. Imputação fantasiosa, já que nunca fiz parte dos quadros do partidão. Mas o instinto recomendava que o melhor era fugir, e acabei me escondendo em Guaranésia, no sul de Minas. Na manhã seguinte o jornalista Vladimir Herzog, também acusado de militar no PCB, seria assassinado no DOI-Codi paulista.

Mergulhados em um ambiente de absoluto terror depois da morte de Vlado, nenhum dos procurados que ainda estavam em liberdade – até então havia oito jornalistas presos – sabia o que fazer. Partir para o exílio? Entregar-se aos militares? Permanecer escondido?

É nesse momento que o doutor Ruy reaparece na minha vida. Ao saber da situação em que me encontrava, ele procurou Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas. Sem, em nenhum momento, perguntar o que fosse sobre meu suposto envolvimento com o PCB, pediu que Audálio transmitisse uma mensagem à minha família:

– Se o Fernando quiser se apresentar, eu o acompanho pessoalmente, como já fiz com Marco Antonio Rocha.

Editorialista do JT, Marco Antonio Rocha, o Marquito, também procurado pelo DOI-Codi, passara dois dias escondido na casa do doutor Ruy, no bairro do Pacaembu, até ser levado por ele e por Audálio ao II Exército. O dono do jornal continuou:

– Se for essa a decisão do Fernando, direi que ele ainda trabalha no Jornal da Tarde e o entregarei diretamente ao comandante do II Exército. Não sei se isso significa alguma garantia, na atual conjuntura, mas pelo menos a incolumidade física dele passará a ser responsabilidade pessoal do general Ednardo D'Ávila Mello. Se ele preferir se exilar, procure saber em que a empresa pode ajudá-lo.

Não se tratava apenas de um gesto de coragem, em meio ao breu de uma ditadura implacável. Mesmo correndo os riscos que aquilo implicava, doutor Ruy estendia generosamente a mão a alguém cujas ideias – ambos sabíamos disso – pouco ou nada tinham a ver com as dele.

Só voltei a vê-lo muitos anos depois. Ao sair de um restaurante em São Paulo, parei para cumprimenta-lo na mesa em que jantava com familiares. Ao ouvir dele um elogio à biografia de Assis Chateaubriand, que eu publicara meses antes, aproveitei a oportunidade para sugerir um projeto que eu sonhava realizar fazia alguns anos:

– E que tal se eu escrevesse um livro sobre a história do Estadão e da família Mesquita?

Parte essencial

Nascido ao final da entrevista que eu fizera para o livro Chatô, o rei do Brasil com Júlio Neto, diretor do Estadão e irmão mais velho do doutor Ruy, o projeto do livro acabou não prosperando. A reação de Ruy Mesquita me animou. “Não me parece uma má ideia”, respondeu, com um raro sorriso. “Fale sobre isso com meus filhos”.

Ele e os filhos eram entusiastas do projeto, mas entre os demais membros da família havia resistências ao meu nome. As negociações prosseguiram até que chegamos a um consenso: para facilitar as coisas, o melhor seria cada uma das partes indicar um negociador para tentar definir as condições da concordância familiar para que o livro andasse. Por uma dessas brincadeiras do destino, o negociador proposto pela família era o mesmo que eu indicara para falar em meu nome: Manuel Alceu Afonso Ferreira. Advogado do Estadão e dos Mesquita fazia muitos anos, Manuel Alceu era meu amigo e havia atuado, por sua iniciativa e pro bono, como meu defensor em um processo judicial que tratava de direitos autorais.

No fim, e por razões que não veem ao caso, o livro morreu antes de nascer. Mas minha esperança de escrever esta história só morreu agora, com o doutor Ruy.

Mais importante do que meu projeto, no entanto, a morte do doutor Ruy leva embora um pedaço essencial do jornalismo brasileiro da minha geração.

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Fernando Morais é jornalista e escritor, autor de A Ilha, Olga, Corações Sujos, entre outros