Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Há vida, Fernanda Young

(Foto: Reprodução Facebook)

Eu não sou amigo de Fernanda Young, nem a conheci pessoalmente. Sequer sou um leitor, como pode se designar aquele que se beneficia de sua arte. Mesmo assim, sinto profundamente sua morte, lamento a perda do mundo que ela encarnava e me parece incontornável a sensação de fragilidade a partir de seu desaparecimento.

Sua morte é brutal como toda aquela que nos advém sem aviso ou prévia. Ninguém poderia aguardá-la e essa instância do inesperado é sempre desconcertante. Tal como a morte de Cássia Eller, em 2001, e o assassinato de Marielle Franco, em 2018, Fernanda Young nos deixa e leva consigo um universo que sua existência fez florescer. Mulheres que, cada qual ao seu modo e cada uma em sua área de atuação, personificaram, com suas presenças, uma resistência a este Brasil conturbado, violento e paradoxalmente maçante. Elas eram o inverso de uma diva e de seu caráter indelével de alienação; não obstante, fincaram suas vidas e suas artes (não vejo nenhum exagero em minhas palavras ao denominar de arte o ofício de Marielle no Rio de Janeiro) de tal modo em nosso mundo que assemelham-se a estrelas luminosas.

Young era capaz de falar da beleza do pentelho à tragédia consciente do voto em Aécio Neves, tendo como pano de fundo a cafonice enraizada na elite brasileira contemporânea. Uma louca? Idéias esparsas e desconexas? Certamente, Young não se enquadrava nesta sociedade patriarcal, preconceituosa e vulgar que vivemos há séculos no Brasil. Se ultrapassarmos essa primeira camada de preconceito contra uma cultura gingada que nos assola e nos empobrece a cada dia, seremos capazes de ver alguém que fez de sua vida uma obra de arte, onde o erotismo, o político e a escrita articulavam entre si, resultando em uma potente forma de portar-se no mundo.

Em um país que parece morrer de velhice, para usar palavras de Sartre sobre a obra de Faulkner, em que formas de vida caducas, pobres e violentas voltam a governar a vida dos brasileiros, a potência musical de Cássia Eller, a força política de Marielle Franco e, agora, o destemor de Fernanda Young nos fazem muita falta.

Mas a brutalidade da vida, que nos surpreende e nos choca com seus movimentos ciclotímicos, possui seu reverso. Se sua vida terminou inesperadamente aos 49 anos de idade, seu exemplo se fará presente cada vez que uma menina conseguir romper a barreira da mediocridade e se fizer sonhadora. Da mesma forma que podemos ouvir as canções de Cássia e tomarmos fôlego para lutar mais um pouco por uma sociedade mais justa, do mesmo jeito que a lembrança da força de Marielle nos permite ainda sonhar com um país mais igual, Fernanda Young viverá naquilo que lhe foi mais trabalhoso e mais seu: sua trajetória, da mulher independente à escritora visceral.

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Marcelo S. Norberto é professor e pesquisador do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Autor de O drama da ambiguidadea questão moral em O Ser e o Nada (Editora Loyola/2017). Atua nas áreas de Filosofia Francesa Contemporânea, Ética e Filosofia Política.