Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Morreu um amigo meu

‘Para compreender a História, você deve preservar uma certa forma de inocência. Meu único segredo foi o de aproveitar o meu tempo, e sobretudo o tempo de viver com as pessoas … e depois saber esquecer de mim mesmo’. (Henri Cartier-Bresson)

Há pessoas e artistas que são referência na vida e no trabalho da gente. E como começar um texto que possa ao mesmo tempo render tributo e dar conta da importância de uma trajetória?

Talvez seja o caso de primeiro refletir sobre o meio de expressão desse artista, a fotografia. A fotografia pode ser muito complicada. Há câmeras de vários tipos com lentes angulares, normais, teleobjetivas. Há também filtros, filmes variados, fotômetros, valores de diafragmas e obturadores. Ou ainda, cartões de memória, pixels por polegada, extensões de arquivos, compactados ou não, etc. Isso tudo se aprende.

A fotografia pode ser muito simples, sua força está na composição, na forma como se escolhe recortar a realidade com as ferramentas da intuição e da nossa visão de mundo. Fotografias são traduções pessoais, são segredos, ocorridos em frações de segundos, oferecidos publicamente. A fotografia quando é simples não é fácil de ensinar.

Morreu um fotógrafo amigo meu. Amigo é aquele que está repetidamente no pensamento da gente. Uma pessoa na qual nos inspiramos, e com quem necessariamente rivalizamos. Sim, porque um amigo é importante quando achamos que ele tem qualidades que devemos também ter, até para poder merecê-lo. Um amigo, amigo mesmo, podemos ficar longo tempo sem encontrá-lo pessoalmente, tendo sempre a certeza de que de uma hora para outra isso irá acontecer.

Claro que ele não sabia que eu era seu amigo, se por outra razão não fosse, porque sempre vivi no sul do Brasil e ele na França. Bem verdade que quando morei por quatro anos em Paris não ousei fazer-lhe visita, apenas enviei-lhe uma carta no dia do seu aniversário, acompanhada de um livro com minhas fotografias. Meu amigo era um fotógrafo especial.

Como nenhum outro

Na verdade ele era uma espécie de caçador de imagens – metáfora que ele mesmo usava. Gostava de estar na espreita, antevia uma geometria possível para preencher um retângulo e passava a esperar o ‘instante decisivo’ para poder fixar nesse formato, de forma harmônica, suas traduções da realidade. Ele era tímido e intempestivo, daqueles que podem a tudo renunciar de um momento para outro, mas era obstinado também, detalhista. Um fotógrafo generosamente interessado pela humanidade. Talvez tenha sido essa a maior qualidade do Henri Cartier-Bresson flâneur do mundo.

O Bresson, que morreu com 95 anos e há 30 não mais fotografava, foi referência para várias gerações de fotógrafos. Ele tornou-se profissional em 1946, foi fundador de uma das principais agências de fotojornalismo, a Magnum, em 1947. Fotografou a liberação de Paris, os funerais de Gandhi, a China, Cuba, Índia etc. Bresson foi o primeiro fotógrafo ocidental a ter em 1955 autorização para fotografar na URSS.

Alguém disse que meu amigo, com sua Leica, ‘fotografava como um gato, sem incomodar’. Bresson afirmava, ‘eu não tenho nem mensagem nem missão, eu tenho um ponto de vista’. Quando era questionado sobre a qualidade artística das suas fotografias ele dizia não saber o que era fazer arte, e usava como metáfora o amor, ‘quando se faz amor a gente não fica pensando o que é o amor’.

Quando penso fotografia logo lembro daquela foto do Bresson do menino com duas garrafas de vinho numa esquina da Rua Mouffetard. Uma vez escutei pelo rádio a seguinte homenagem a um artista falecido: ‘Meu amigo era um verdadeiro artista, pois ele sabia como ninguém encantar a matéria ordinária’.

Meu amigo Bresson sabia como nenhum outro encantar o mundo.

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Fotógrafo, doutor em Antropologia pela Universidade de Paris 7 e professor do Instituto de Artes da UFRGS