Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalista que escolheu Heródoto como mestre

O mundo vai melhorar? Quem responde a esta pergunta é um calejado e famoso repórter, escritor de prestígio internacional, talvez um dos últimos de uma geração que soube cumprir, com fidelidade, sem medo e desprendimento, o papel de jornalista. Nele havia muito do romantismo à antiga, tanto quanto fizeram os colegas, no desempenho de missões, cujas aventuras ficaram registradas na história, passando do jornal para o livro. Ryszard Kapuscinski, nascido em 1932, em Pinsk, hoje, parte da Bielo-Rússia (então pertencente à Polônia), morreu, não faz muito, deixando uma rica obra, fruto de experiências em suas incursões como jornalista.

Quanto à pergunta acima, o jornalista tinha a convicção de que o mundo vai melhorar, apesar de submetido a uma onda de violência, a começar por guerras como a do Iraque, e ameaças de reedição em território iraniano – país que desafia as grandes potências na construção de armas atômicas. Há uma bomba que pode explodir na América Latina com o presidente Hugo Chávez, ao contrariar o que resta de democracia na Venezuela, censurando e estatizar os meios de comunicação que não rezam pela cartilha ‘bolivariana’, ao mesmo tempo que insiste em desafiar o poderio bélico dos EUA.

‘Mais solidariedade’

Kapuscinski, um especialista na cobertura de atentados (27, ao todo) em diversas partes do planeta, ainda viveu para ver, em 2006, agressões com armas de guerras pesadas, que brilhavam no céu para matar na terra, entre o Líbano e Israel. Apesar do envolvimento, como repórter, nessas beligerâncias, não passava de um otimista: ‘Essa minha esperança é, obviamente, uma abstração, mas é preciso acreditar em alguma coisa.’

Pela maneira de pensar, de agir, pela coragem e uma vontade de viajar sempre para lugares distantes ou agitados por revoluções, golpes de Estado, predominância de violência sob todos os aspectos, Kapuscinski se deixava atrair também pela cultura, exotismo e miséria de um povo. Tudo em nome da notícia, com responsabilidade. Foi correspondente, no início da carreira, do jornal Sztandar Mtdych (em Varsóvia, capital da Polônia), e depois, da agência polonesa de notícia Polska Prasowa e de outros jornais.

Percorreu países diferentes, em condições adversas, inclusive sem conhecer o idioma dos lugares. Aí é que reside a coragem e a perspicácia do repórter… Ter um olhar curioso, inteligência, cultura e sensibilidade para descrever o que viu. Consigo transportava a obra História, de Heródoto de Halicarnasso (Grécia, século V antes de Cristo), mapas, anotações e alguns livros. Heródoto ficou conhecido como o ‘pai da história’. Há quem o defenda como nosso primeiro repórter, vindo a se constituir na grande inspiração de Kapuscinski. Consultava-o sempre. Queria seguir-lhe os passos. E com ele, através da história, aprendia e tirava dúvidas.

Com tais instrumentos de trabalho atravessou fronteiras e passou pela Índia, China, África, Oriente Médio e até onde o tapete mágico permitiu. Quando se encontrava no Congo, foi testemunha ocular de uma convulsão social que virou um caos. Amedrontado com as prisões, os espancamentos e assassinatos indiscriminados, ficou a imaginar o que fazia ali… Concluiu que, naquele momento, o seu lugar não poderia ser outro e indagou-se: ‘O que aguardo? Por que permaneço aqui?’ E respondeu: ‘Não sei, um pouco de sorte, um pouco mais de solidariedade humana daqueles que me rodeiam.’

Repórter maior

Em qualquer lugar em que ocorressem conflitos sociais, lá estava o polonês, atento, com caneta e papel, sempre voltado para os exemplos de Heródoto, que, em tais circunstâncias – e apesar de se prevalecer da memória, costume da época, com adeptos como Plantão e Aristóteles, entre outros – não desprezava a escrita, que o consagraria através da obra História.

Terminava de ler o livro Minhas viagens com Heródoto / Entre a história e o jornalismo, de Ryszard, no qual conta toda a experiência como repórter e se revela um admirador, sem restrições, de Heródoto, quando, num intervalo da leitura, consultando a internet, soube do seu falecimento. O polonês foi um dos maiores repórteres do seu tempo.

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Professor universitário e jornalista