Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um escritor leal e fiel às suas crenças

Quanta razão tinha T.S. Eliot ao dizer que abril é o mais cruel dos meses. Na manhã desta segunda-feira, 13, uma segunda-feira de abril, foi-se embora Eduardo Galeano. E, com ele, 42 anos da minha vida.

Na última segunda-feira mesmo [13/4], alguém me perguntou qual a memória mais nítida que tenho dele. Pois não há uma, há centenas, milhares.

Poderia ser, por exemplo, a imagem dos nossos dois últimos encontros, num anoitecer de janeiro, e depois na tarde do dia seguinte, ele já bem debilitado, emagrecido, em sua casa de Montevidéu. Ou nosso primeiro encontro, na noite de um dia incerto de março ou abril de 1973, em Buenos Aires. E assim, ao longo de cada um dos meses de cada um desses anos todos e num sem-fim de lugares mundo afora, trago comigo uma presença permanente, indispensável, a presença de Eduardo, inseparável da memória que tenho de mim mesmo.

O Eduardo que foi-se embora é e será sempre uma das figuras mais cruciais e decisivas da minha formação. Foi-se embora meu irmão mais velho, foi-se embora aquele que abriu para mim as portas de um mundo muito, muito mais amplo do que eu jamais poderia imaginar. Certa vez, um jornalista espanhol descreveu Eduardo de um jeito que ele gostava, e que me parece absolutamente certeiro. Dizia esse jornalista que Eduardo via o mundo e a vida com um olho no microscópio e outro, no telescópio. Sabia enxergar com nitidez as menores coisas da vida e do mundo e, ao mesmo tempo, enxergar toda a sua amplidão.

Mãos de criança

Conheci, ao longo da vida, pouquíssima gente com a retidão, a integridade, a honestidade de Eduardo. E com a sua generosa solidariedade com os despossuídos, os relegados, os desprezados, os submetidos. Era de um rigor e de uma exigência a toda prova, com ele e com os amigos mais próximos. Podia ser implacável. E, ao mesmo tempo, tinha uma enorme capacidade de compreensão diante dos erros alheios, principalmente os cometidos por quem nunca teve nada.

Com o passar do tempo, Eduardo soube transformar os ímpetos juvenis numa serena maturidade. Mudou vários de seus pontos de vista para poder enxergar mais longe e de maneira mais ampla, sem trair nem por um só instante seus princípios.

Era, sim, de uma sinceridade sem limites, um dos raros pensadores que souberam criticar de maneira leal e permanecer fiéis às suas crenças. Seguia, com rigor extremo, uma frase do nicaraguense Carlos Fonseca Amador, um dos fundadores da antiga Frente Sandinista: “Amigo é aquele que critica pela frente e elogia pelas costas”. Assim foi ele com tudo, dos amigos mais próximos aos processos políticos que, alguma vez, corresponderam à sua visão da vida e do mundo.

Certa vez ouvi, de Darcy Ribeiro, uma frase que me veio agora, ao pensar em Eduardo. Disse Darcy que, na nossa América Latina, só temos dois caminhos: ser resignados, ou ser indignados.

Assim foi meu irmão Eduardo: um indignado permanente com as injustiças, com as humilhações de um sistema baseado na desigualdade extrema, com o descalabro que destrói o planeta. Soube entender, e há muito tempo, que o mesmo sistema de injustiça que aniquila futuros e esperanças é o que destroça a vida em todas as suas formas e dimensões.

Tinha mãos pequenas, como as de uma criança. Com elas quis abraçar o mundo, com elas quis resgatar a memória coletiva, acariciar a esperança. E fez tudo isso.

Num abril, o do ano passado, foi-se embora o Gabo. Agora, foi-se embora meu irmão mais velho, o que me abriu as portas de um outro mundo, que era meu sem que eu soubesse, e ele me ensinou a me apoderar desse mundo e me deixar ser apoderado por ele.

Nada me consola, nem neste abril nem nos que virão.

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Eric Nepomuceno é escritor e tradutor