Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma rara lição de reportagem

Heródoto, que viveu há 2.500 anos, tem muito a nos ensinar sobre jornalismo. O jornalista Ryszard Kapuscinski recupera estes fundamentos numa época em que vivemos num ambiente moldado por uma mídia que infunde a ilusão e as aparências dos acontecimentos, o exercício permanente do simulacro, das inverdades, da hipocrisia, da falsidade, da manipulação virtual. Mas quando você diz que esteve lá, que foi testemunha dos acontecimentos, os leitores se convencem de que estão participando diretamente dos fatos, se transformam em testemunhas da realidade.

Ryszard Kapuscinski morreu aos 74 anos, no último dia 23 de janeiro. Sua vida de escritor sempre esteve dividida entre a atividade de repórter da Agência Polonesa de Notícias (PAP), que ele mesmo caracterizava como um tipo de escravidão voluntária, e o que o New York Times denominou, no obituário que publicou semana passada, de jornalismo literário. Ryszard publicou vários livros neste gênero, como Imperium, The Soccer War e The Emperor. Em outubro de 2003, este notável jornalista deu uma palestra em Berlim, na Alemanha, com o título ‘Heródoto e a arte de noticiar’ verbo este aqui entendido como a prática de reportar os fatos a partir do local exato do turbilhão dos acontecimentos.

O primeiro repórter

Em sua exposição, Ryszard recupera o exemplo de Heródoto – escritor grego autor de História, no qual relata a guerra entre a Grécia e a Pérsia –, que ele considera o primeiro repórter da história, o pai e mestre do gênero de jornalismo conhecido como reportagem. Heródoto, segundo Ryszard, trabalhava com três fontes básicas: a primeira são as viagens, não no sentido turístico, mas uma verdadeira expedição aos acontecimentos, o que requer uma preparação criteriosa, planejamento cuidadoso e espírito de pesquisa para levantar e coletar material informativo a partir de entrevistas e observações pessoais diretamente nos ambientes em que se deram os fatos.

Heródoto, explica Ryszard, além de ser o primeiro repórter da história, também pode ser considerado o primeiro ‘jornalista global’: procurou estudar todas as culturas conhecidas em sua época. Seu raciocínio partia do princípio de que somente se poderia conhecer sua própria cultura, revelar suas profundezas, quando se estivesse familiarizado com outras tantas, a partir das quais pudesse refletir e comparar, procurando lançar luzes sobre a realidade. De que maneira Heródoto conseguiu desenvolver seu método comparativo e de confronto com o reflexo no espelho de outras culturas? Heródoto ensinou aos seus o dom da modéstia contra a arrogância e a superioridade em relação aos não-gregos. Dizia ele: ‘Vocês acham que foram os gregos que criaram os deuses? Não, não foram. Na verdade, os gregos se apropriaram dos deuses egípcios. Vocês acham magníficos o sistema grego e sua estrutura? Sim, mas os persas desenvolveram muito melhor o sistema de comunicação e de transportes.’ Assim, Heródoto procurou consolidar sua principal mensagem ética na reportagem, o sentido de proporção e moderação.

Sensibilidade ao detalhe

A segunda fonte, segundo Heródoto, são as entrevistas com os personagens dos eventos a serem reportados, com o objetivo de recolher as opiniões, suas histórias, seus conhecimentos. Aqui, ele destaca a capacidade que o repórter deve ter de procurar não somente um único ponto de vista sobre os fatos, mas o cuidado com que deverão ser ouvidos, com respeito e dignidade, vários envolvidos num episódio determinado. Heródoto leva em conta, neste caso, a fraqueza da memória humana, indo atrás de diferentes relatos, freqüentemente contraditórios, sobre um mesmo fato. Procura o repórter ser o mais objetivo possível, deixando para o leitor decidir sobre as diversas versões apresentadas, de forma multifacetada, rica, viva e palpável.

Heródoto mostrou-se um repórter incansável, segundo Ryszard. Não teve dúvidas em viajar centenas de milhas por mar, ou no lombo de cavalos por terra, para ouvir uma outra versão importante sobre um mesmo fato. Ele precisava conhecer, a qualquer custo, a mais autêntica opinião que pudesse se aproximar da realidade objetiva. E a terceira fonte, destacada pelo sábio grego, é o trabalho próprio do repórter: ler tudo o que foi escrito para produzir o texto final, os gráficos e referências necessárias para a edição da reportagem.

Desta maneira, Heródoto nos ensina como os repórteres podem ser investigativos e cuidadosos. Em seu tempo, os recursos eram parcos e esparsos, difíceis de organizar e coletar. Procurava estudar profundamente desde os principais escritores, poetas e filósofos, mas também as inscrições murais, os símbolos e tudo o que pudesse potencialmente revelar uma mensagem ou um novo significado. Por seu exemplo pessoal de vida e de trabalho, Heródoto mostrou que um repórter deve ser um observador atento, sensível aos detalhes freqüentemente considerados insignificantes e banais.

A tendência ao conhecimento

‘Todas as pessoas têm uma tendência natural a adquirir conhecimento’, é a primeira frase com que outro pensador grego, Aristóteles, um pouco mais novo que Heródoto, inicia sua obra Metafísica. Acrescenta que são os olhos que jogam um importante papel neste processo porque é através da visão que podemos conhecer melhor os fatos. Para um repórter, então, os olhos poderão focalizar, penetrar, noticiar o que aparentemente está invisível, ou que pode estar na outra face de um determinado fenômeno, buscando o fator essencial. A dificuldade, entretanto, é noticiar o que é fundamental e para isso é preciso freqüentemente estar no local exato dos fatos. A reportagem é construída a partir do que Aristóteles chamava de ‘tendência a adquirir conhecimento’. É a partir desse desejo humano que a paixão dos repórteres vai ao encontro da expectativa de seus leitores, da curiosidade ‘por adquirir conhecimento’ sobre o mundo.

É exatamente por isso que boas reportagens são tão populares hoje em dia. O homem contemporâneo, explicou Ryszard em sua palestra, vive num ambiente moldado por uma mídia que infunde a ilusão e as aparências dos acontecimentos, o exercício permanente do simulacro, das inverdades, da hipocrisia, da falsidade, da manipulação virtual. Mas quando você diz que esteve lá, que foi testemunha dos acontecimentos, as pessoas passam a acreditar que os relatos são autênticos. Os leitores se convencem de que estão participando diretamente dos fatos, se transformam em testemunhas da realidade.

A reportagem literária

E o que é a reportagem literária, então? Não é uma tarefa fácil defini-la ou descrevê-la, especialmente numa época em que não existe clareza sobre os diversos gêneros jornalísticos. Trabalhando como correspondente de uma agência de notícias por muitos anos, em países do chamado Terceiro Mundo, relatou Ryszard Kapuscinski, ele ficava insatisfeito com a linguagem corrente no jornalismo tradicional confrontada com a riqueza, o colorido, a variedade extraordinária da realidade das diversas culturas, costumes e crenças religiosas. A linguagem da informação que os jornalistas utilizam é freqüentemente muito pobre, estereotipada e formal. Por esta razão, certos aspectos da realidade com as quais os jornalistas têm que lidar estão além da capacidade de descrição que a linguagem técnica permite.

Foi quando Ryszard passou a considerar a possibilidade de escrever no estilo de Truman Capote, Norman Mailer e Gabriel Garcia Márquez – que ultrapassaram a fronteira da ficção e da crônica jornalística. Foram eles que acabaram introduzindo o conceito de new journalism, ou ‘novo jornalismo’. Por este termo, entendiam o tipo de texto em que acontecimentos autênticos, histórias reais, tragédias, eram descritas com uma abordagem ficcional, com uma linguagem muito pessoal dos escritores. Foi assim que a combinação destas duas diferentes técnicas de comunicação e descrição dos fatos deu nascimento à reportagem literária.

Traduzindo culturas

Neste mundo de inúmeras culturas, as pessoas de todos os países exigem que sejam tratadas como iguais, ensina Ryszard, com todo o respeito. Parte do princípio de que não existem culturas superiores a outras. O problema, conclui ele, é que conhecemos muito pouco de outras culturas, outros costumes, e nos conformamos normalmente com falsos estereótipos. Foi exatamente esta questão que Heródoto compreendeu muito bem. Ele descobriu que somente o conhecimento compartilhado é que permite desvendar a realidade e proporcionar o contato entre as pessoas, o único caminho para a paz e a harmonia, a cooperação e a troca. Com esta concepção, o repórter se entrega à sua atividade jornalística, viajando, tomando suas notas, explicando por que outros povos agem de maneira diferenciada, mostrando que outras formas de existência têm uma lógica intrínseca e que devem ser respeitadas e não se transformarem em objeto de agressão e guerra.

Desta forma é que Ryszard concebia o trabalho do repórter: não apenas jornalistas que procuram relatar um acontecimento, mas homens e mulheres missionários, tradutores e mensageiros. Nós não somente traduzimos um texto para outro, mas uma cultura para outra cultura, de maneira a torná-las mais compreensíveis, aproximando-as cada vez mais.

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Jornalista