Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A responsabilidade de quem sai do script

Os meios de comunicação são sempre pioneiros a lançar os juristas a intrigantes problemas, de solução complexa. A falta de uma lei de imprensa nos moldes mais rígidos como a de 1968, entendida inconstitucional pelo STF, somente dificulta que se encontrem parâmetros mais precisos, o que faz a tarefa ainda mais desafiadora.

Os reality-shows são agora o exemplo mais sonante para corporificar o velho embate, na mídia, entre responsabilidade do indivíduo e responsabilidade da mídia – algo como o dever profissional de zelar pelos meios de comunicação. Para os limites deste texto vamos enunciar um problema-padrão, com o menor número de circunstâncias e bastante pasteurizado, a fim de propiciar a reflexão e, ao mesmo tempo, evitar precipitadas interpretações identitárias. Dois problemas secundários, de mais fácil resposta, nos servem apenas para comparação. Vamos a eles.

Situação Principal

Um reality show seleciona dez pessoas para competirem, trancafiadas numa casa. Os critérios para seleção dos participantes são elementos de sua personalidade: profissão, ímpeto, comunicabilidade, aparência física etc. Os selecionados, maiores e capazes, aceitam o desafio, cientes de que serão submetidos a duros testes de caráter, e que suas reações serão filmadas sem interrupção. Aquele que se consagrar, pela vontade da audiência, vencedor de todas as provas, será premiado com um milhão de reais, somados aos indiretos benefícios da fama.

Um dos participantes é selecionado, talvez entre outros motivos, por seu comportamento impetuoso e seu corpo musculoso. Um jovem que aprendeu artes marciais, mas não profissionalmente.

Inicia-se o programa. Semanas depois, em uma festa promovida dentro da casa vigiada, ele visivelmente abusa do álcool. E, em uma discussão que começara com alguma desavença acerca de uma prova do programa, avança sobre outro participante, homem, e lhe desfere um soco que o tomba ao chão. A segurança do programa intervém, mas já é tarde: o agredido sofrera fratura craniana e uma lesão cerebral que lhe impede movimentos, inclusive a fala.

Situação Comparativa 1: Um repórter cinematográfico filma o suicídio de um homem, em protesto contra o governo de seu país. O repórter poderia impedir a morte, mas preferiu documentá-la,  porque assim consegue mostrar ao mundo o horror daquele regime.

Situação Comparativa 2: Um segundo programa de dedica a instalar câmeras ocultas em restaurantes em que haja suspeita de funcionários desviem dinheiro. Um agente-ator do próprio programa, disfarçado de cliente, paga sua conta em cash ao garçom, exatamente para não criar registro do consumo. Como se suspeitava, o garçom se apropria do dinheiro e não o declara ao restaurante. Sua ação é toda captada pelas câmeras ocultas.

Nossa principal tarefa, aqui, é, por nossa hipótese, dar argumentos para desvendar se o personagem-agressor da Situação Principal deve responder criminalmente pela lesão que causou. Para isso, segue uma análise com algum método.

Como preliminar, note-se que não existe, no problema proposto, qualquer situação que retire ao agressor, de imediato, a responsabilidade penal. Sua embriaguez na festa não desculpa o delito, porque ele bebera por vontade própria; menos ainda ele agira por legítima defesa. Tampouco fora colocado em uma situação extrema de necessidade ou inconsciência, que o impedisse de, a qualquer momento, pedir para abandonar o programa. Quer dizer, na casa vigiada, seu “confinamento” era algo bastante relativo.

Ausentes essas situações que permitiriam imediata declaração de irresponsabilidade diante da lei, há que se descer a um ponto mais sensível.

No Direito penal, a pergunta de o que faz reprovável um comportamento é, sob o nome de “culpabilidade”, uma das que mais ocupa a literatura especializada, portanto eu não me atrevo a desvendá-la aqui. Mas se pode concordar com a ideia, bastante ampla, de que a lei só pode considerar reprovável uma conduta (a agressão, por exemplo), se ela ocorre em um padrão de normalidade ou naturalidade de circunstâncias. Daí nosso grande dilema não fica difícil de enunciar, transformando-o em algo mais ético que jurídico. Basta ver que o agressor vivia uma situação artificial, mas a lei que se lhe quer aplicar não tem nada de fake. Ele não está na iminência de ser transferido a uma cadeia cenográfica, mas a um presídio real, com grades – agora sim – intransponíveis.

Daí, sem perder de vista nossa hipótese, generaliza-se a pergunta: a lei penal se aplica, sem adaptação, aos atos do reality-show? Como não é de se estranhar no mundo do direito, há para ela ao menos duas respostas razoáveis.

Responsabilidade comum

(I) O primeiro posicionamento seria o de que cuidar o caso como o de responsabilidade comum, ignorando as situações artificiais do programa. Vários argumentos o sustentariam:

a) O de que o participante teria concordado com as regras do espetáculo, portanto assume o risco de suas próprias reações, tal qual ocorre, por exemplo, em qualquer competição desportiva;

b) O conflito artificial do reality não seria diverso de um problema cotidiano, ainda que com um tom elevado. Assim como, novamente em uma analogia, acontece fora do confinamento: qualquer shopping center é um ambiente de extremado fomento ao consumo, e nem por isso se deixará de reprovar quem ali cometa um furto. Menos ainda, claro, um político será desculpado por receber propina, pela simples alegação de estar em um ambiente geral e historicamente corrupto. Muito próximo a isso é o argumento que deriva da velada crença, bem ao estilo da filosofia liberal, de que,

c) o indivíduo consegue discernir suas obrigações em qualquer situação, natural ou não, em que seja inserto. Esse é, parece-nos, a lógica que a audiência aplica a esse tipo de programa: que as pessoas são invariavelmente elas mesmas e, confinadas, apenas exercem sua personalidade nas situações com que se deparam. É obrigação do indivíduo quebrar, como diria Kant, a corrente de natureza e ser causa primeira do universo, transformando o entorno e não meramente o seguindo. A noção ética não se pode alterar apenas por conta de um roteiro de provas, e a “bússola moral” do indivíduo deve sempre indicar o melhor caminho.

Caso nossa pergunta fosse lançada a uma empresa de comunicação, responderia algo também nesse sentido:

d) O programa consiste em um ambiente cotidiano, e o que faz a tv não é mais que propor uma rotina e, graças à tecnologia, captar todo o ambiente e suas relações. A repercussão do programa amplifica o resultado, mas não altera a natureza humana.

Nesse caso, a solução se aproxima muito mais daquela da Situação 1: o repórter não tem obrigação de impedir o resultado morte, porque ela é decisão exclusiva do suicida. A intervenção na auto-imolação seria, isso sim, um descumprimento de seu dever de noticiar a realidade. A responsabilidade pelo ato extremo é apenas de quem livremente o comete.

A anormalidade de um reality show

(II) O posicionamento se altera com os argumentos que sustentam a anormalidade dos conflitos no reality show de confinamento.

Se mantemos aquela premissa de que a lei humana foi criada para regulamentar situações normais de vida, basta entender como “anormais” as condições não necessariamente extremas; é suficiente, para caracterizar anormalidade, que elas sejam “artificiais”.

Nesse caso, não se aceitaria como honesto, por exemplo, o paralelo entre o reality e uma competição desportiva. O esporte, embora disponha também de regras próprias para gerar competitividade e talvez violência, não altera insidiosamente a normalidade do mundo. O programa de confinamento, por sua vez, cria uma situação de vida inexistente, muitas vezes seguindo um roteiro de dramaturgia. Ou seja, a realidade se direciona para uma reiteração de embates que, para retomar nossa ilustração, consegue alterar o norte magnético da “bússola moral” do indivíduo comum. Se assim entendemos o programa, uma reação violenta poderia ser suficiente para expulsar nosso agressor, ou colocá-lo em desgraça pessoal pela exposição negativa de sua imagem, mas jamais para acusa-lo de crime.

Nosso problema estaria, sob esses argumentos, muito mais próximo à Situação Comparativa 02: a atitude do garçom que desvia o dinheiro do restaurante, embora imoral, para o direito brasileiro não é crime. Isso, com certeza. A existência de um agente provocador, ao menos por nossa lei vigente, desconfigura a realidade do resultado.

Não me cabe impor uma resposta conclusiva a nossa Situação Principal, apenas apontar os caminhos. De qualquer forma, o reality show já é, em termos de responsabilidade, uma ideia genial do entretenimento, por conseguir criar constantes situações de conflito dramático – que antes eram monopólio da ficção – mas com histórias e personalidades reais. A jogada de mestre seria, a partir deles, criar conflitos para as páginas policiais, sem custos extra.

A única conclusão que apresento é aquela de sempre: os meios de comunicação configuram um mundo à parte para o direito, por isso sua regulamentação deve ser específica, talvez com regras que partam das próprias empresas do meio. Elas, que criam o risco dos embates e, daí, a obrigação de impedir violações.

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Víctor Gabriel Rodríguez é professor Livre Docente de Direito Penal da USP e professor visitante na Universidade de Valladolid (Espanha). Membro da União Brasileira de Escritores