Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por que as redações precisam de antropólogos

A crise financeira global foi prevista em 2006 por uma jornalista, Gillian Tett, do Financial Times. Vinte anos antes ela era uma antropóloga procurando grupos nômades no Tibete e, depois, conhecendo os rituais de casamento no Tajiquistão.

Foi com base em sua experiência como antropóloga que Gillian Tett mapeou os fluxos financeiros e os comparou com a cobertura que a mídia fazia dos mercados. Ela procurava aquilo que não era discutido na cobertura jornalística, ignorado como maçante ou irrelevante.

O antropólogo social Pierre Bourdieu chamou isso de “silêncio social”, na década de 70, e Gillian Tett elaborara essa teoria na década de 80, quando contrapunha o simbolismo cultural que observara nos vilarejos do tajiques à forma pela qual as pessoas discutiam as práticas do casamento (veja aqui uma palestra por Gillian Tett).

Posteriormente, em 2011, o Guardian publicou um estudo antropológico da região conhecida como The City, onde ficam as principais instituições bancárias em Londres, com a ajuda do jornalista holandês Joris Luyendijk, que continua escrevendo um blog sobre bancos. Mas não é só o jornalista pesquisando uma matéria que pode contribuir com esses conhecimentos; os antropólogos também podem ajudar as organizações jornalísticas a compreender suas audiências.

O uso de antropólogos pela IBM

A antropologia é, fundamentalmente, o ramo das ciências sociais que estuda as culturas e as sociedades humanas e as relações sociais que se formam dentro e através delas. O principal modelo de pesquisa da antropologia é a “observação participante”: os pesquisadores passam longos períodos de tempo com seus objetos de pesquisa em seus habitats naturais, principalmente para compreender a diferenciar o que eles “dizem” do que eles “fazem”. Além de longas entrevistas, diários dessas pessoas, mapeamento das relações e amostras estatísticas quando necessárias, essas observações são escritas na forma de uma “etnografia”.

Tanto o jornalismo quanto a antropologia pretendem observar e analisar o comportamento e a experiência humanos, ainda que de maneiras diferentes e ao longo de prazos extremamente divergentes. Ambos servem para revelar suas descobertas ao mundo exterior de forma a dar-lhe uma maior compreensão de si próprio – e do que “significa” ser “humano”.

A combinação dos dois poderia contribuir para uma maneira mais “holística” e mais rica de conteúdo ao contar histórias jornalísticas, assim como poderia desafiar boa parte dos conhecimentos recebidos e dos comentários ortodoxos, muitas vezes aceitos pelo seu valor aparente. Tome, por exemplo, a noção popular de que a tecnologia digital “aliena” os seres humanos e nos torna menos sociáveis. Ponto. Sem contexto algum. Mas uma pesquisa antropológica iria sugerir conclusões totalmente diferentes.

Esses objetivos em comum entre as duas disciplinas começam a criar muito mais interesse dentro da produção jornalística, logo atrás das indústrias da publicidade, do design e da tecnologia das comunicações, em particular. No último caso, a IBM tem sua Melissa Cefkin, e a Intel, Genevieve Bell, ambas consideradas superestrelas da Antropologia no Vale do Silício. A IBM usa o trabalho de antropólogos há muito tempo para manter informados seus serviços globais de tecnologia. A gigante da tecnologia envia os cientistas sociais para pesquisar os ambientes culturais de seus clientes de maneira a garantir que façam as ofertas adequadas.

Filtrar grandes volumes de dados

Na Grã-Bretanha e na Irlanda, a Intel vem observando nos últimos anos o uso da tecnologia entre os idosos, em busca de ideias sobre como aproveitá-la para aliviar a solidão e ajudar a administrar o bem-estar.

E não é uma coincidência se esse interesse adicional da mídia pela antropologia aplicada ocorre justamente quando a natureza da informação e a coleta de dados se tornam mais complexas.

Este ano, pelo menos um veículo jornalístico discutiu a contratação de antropólogos para dar sentido à análise lógica que coletou através de seu serviço de informações online. No mês de junho, Kevin Beatty, principal executivo da DMG Media – grupo que possui vários veículos, como o Mail Online, o Daily Mail e o Metro – explicou às pessoas presentes a uma conferência como os negócios atingem 36% da população britânica todas as semanas.

A empresa tem um “nível de penetração crescente” nas 31 milhões de pessoas que constam no banco de dados central. O publisher do Mail Online poderia aprender “50 bilhões de dados sobre 43 milhões de pessoas num período de 10 dias”, como disse Beatty, mas quem teria condições de explicar os comportamentos nos dados coletados? Os antropólogos, é claro. Na verdade, em sua apresentação, Beatty disse que empresas que trabalham com edição estavam avaliando a contratação de antropólogos.

Os antropólogos da mídia não só irão reforçar o processo de pesquisa transformando-o em matérias e eventos mundiais, em especial para os trabalhos longos e investigativos, como também irão complementá-lo com o uso de análise lógica para ajudar a filtrar grandes volumes de dados.

Audiências desafiam produtores da notícia

No próprio processo de coleta de dados, esse tipo de compreensão vem se tornando mais necessário, à medida que assistimos à crescente globalização das informações: organizações jornalísticas nacionais, como o Mail e o Guardian, cada vez abrangem mais as fronteiras internacionais na sua absorção e cobertura. E juntamente com isso vem o correspondente aumento da necessidade de mapear essas novas complexidades, desconhecidas e diferentes em seus contextos social, cultural e político – tanto para levantar as matérias quanto para gerenciar a sua produção. Os antropólogos são treinados para fazer precisamente isso.

As empresas de tecnologia usam com frequência antropólogos para ganhar penetração nas vidas de atuais clientes e clientes em potencial e ter acesso aos “números” que mostra a pesquisa quantitativa. No século 21, o conteúdo da mídia tornou-se uma extensão da tecnologia das comunicações que a propaga – uma verdadeira fusão de mídia e mensagem. Não deveriam, portanto, as empresas jornalísticas ser tão curiosas sobre a evolução do mercado quanto seus equivalentes tecnológicos?

Veja os noticiários de TV, por exemplo: já não assistimos a eles passivamente, nos envolvemos com a pós-transmissão via “comentários” postados na versão digital da matéria. A proliferação do uso do Twitter, juntamente com o smartphone e, ultimamente, o tablet, significa que as audiências agora opinam e – o que é mais interessante – desafiam os produtores da notícia em tempo real.

Rigor à coleta de informações

No contexto da convergência da tecnologia de mídia e da resistência relativamente recente ao tradicionalmente didático modelo de divulgação de notícias, a natureza do que muda no significado da “notícia” para suas audiências seria um tema digno de uma investigação antropológica para qualquer organização jornalística.

Numa escala global, a recente compra do Washington Post pelo principal executivo da Amazon, Jeff Bezos, exemplifica perfeitamente a confluência entre tecnologia e mídia e como os dois lados irão eventualmente evoluir para além do atual reconhecimento.

Para ficar a par destas mudanças, a indústria jornalística precisa de antropólogos: deveria usar a abordagem dessa ciência social para adicionar rigor à coleta de informações e ampliar a natureza e o tipo de matérias que são criadas. Em seguida, deve voltar a lente antropológica para as pessoas a quem, em última instância, serve – seus espectadores, ouvintes e leitores, numa época em que eles estão mais dispersos e geograficamente longe do que nunca antes.

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Walé Azeez e Sarah Marshall são ambos jornalistas com formação em Antropologia