Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Regulação da imprensa tem debate ‘esquizofrênico’

O Guardian tem irritado as autoridades britânicas. Na semana passada, o jornal recebeu uma espécie de ameaça velada do primeiro-ministro: caso não demonstrasse um pouco de “responsabilidade social”, alertou David Cameron, ficaria muito difícil para o governo ficar na sua e não tomar uma atitude. O premiê referia-se às matérias sobre vigilância que o diário vem publicando com informações vazadas por Edward Snowden.

As revelações divulgadas pelo Guardian sobre programas de coleta e monitoramento de dados realizados pelos governos dos EUA e Reino Unido provocaram uma campanha de queixas por parte de políticos e membros das forças de segurança. Considerado um dos maiores especialistas legais do Reino Unido, o membro da Câmara dos Lordes Alex Carlile, que atuou como revisor independente do governo para a legislação sobre terrorismo, acusou o diário de cometer um “ato criminoso”. Andrew Parker, que chefia o MI5, o serviço de inteligência doméstica britânico, afirmou que o Guardian está ajudando os terroristas.

Também na semana passada, teve início outro evento de brutal importância para o jornalismo do Reino Unido: o julgamento de Rebekah Brooks e Andy Coulson, ex-editores do tabloide News of the World, acusados de autorizar grampos ilegais de telefones e suborno de funcionários públicos em troca de informações. Rebekah também atuou como executiva-chefe do braço britânico do grupo de mídia do magnata Rupert Murdoch e é amiga de Cameron. Coulson, após deixar a News International, trabalhou como diretor de comunicação do primeiro-ministro.

Momento crucial

Em artigo publicado no New York Times, o escritor Kenan Malik avalia: “O que liga o julgamento de Brooks e Coulson à campanha política contra o Guardian é que ambos são momentos-chave no excessivo debate que ocorre no Reino Unido sobre regulação da imprensa”. Malik identifica uma espécie de “esquizofrenia” na discussão. Esquerda e direita pedem liberdade para o jornalismo que aprovam, e querem regular a imprensa que deploram. Desta forma, ambos os lados “estão ajudando a erodir as liberdades dos jornais britânicos”.

Segundo ele, tudo começou com o escândalo dos grampos no News of the World, em 2011. A indignação da opinião pública sobre a prática ilegal e abusiva acabou evoluindo para uma fúria generalizada sobre o comportamento da imprensa, classificada de “descontrolada”. O tabloide foi fechado, o governo ordenou a criação de um inquérito para avaliar os padrões da indústria e o relatório final deste inquérito concluiu que é necessário um órgão regulatório para fiscalizar a atuação da imprensa e impor punições aos abusos.

Depois de muita discussão, o governo acabou concordando em implantar as propostas do relatório, mas criando um órgão regulatório a partir de uma Carta Real, que Malik classifica de “um obscuro instrumento legal medieval”. O órgão tem adesão voluntária, mas uma legislação separada permite que o judiciário imponha multas em casos por calúnia e difamação aos jornais que se recusam a acatar suas ordens. “Isso permite que o Parlamento estabeleça uma estrutura regulatória para a imprensa ao mesmo tempo em que mantém a ficção de que os políticos não estão envolvidos no processo”, escreve.

Ameaça real

A indústria de jornais, por sua vez, está dividida. Há quem ressalte os perigos em se ter fiscalização política – ainda que seja pequena – sobre a imprensa. Há também quem pondere que não existe, no país, uma “ameaça real” à liberdade de imprensa, e desta forma uma regulação mínima não seria um risco.

“É verdade que o Reino Unido não é o Zimbábue. E que a Carta Real não vai transformar o Reino Unido em um estado policial”, reflete o escritor. “Mas, como revela o ataque ao Guardian, a interferência política no jornalismo investigativo é uma ameaça real.” E se já é assim agora, questiona ele, como será quando a nova regulação for de fato implantada?

Malik afirma que, no debate sobre regulação da imprensa, tem-se confundido questões morais e legais. O inquérito Leveson foi montado para investigar a “cultura, prática e ética da imprensa”, e debateu muitos problemas que estão profundamente ligados às redações, como publicar rumores como se fossem notícias, falhar em responsabilizar aqueles no poder por seus atos e desrespeitar a privacidade dos cidadãos. Ainda que certas práticas – como o grampo de telefones – devam ser tratadas como crimes, a maior parte das questões abordadas não pode ser remediada com um aumento da regulação ou com processos legais; são problemas que exigem uma mudança nas atitudes sociais, e não apenas dentro da indústria jornalística.

Liberdade desgastada

Mas, segundo ele, os dois lados, cegos por lealdades partidárias, falham em ver o significado real da liberdade de imprensa. A esquerda que defende o direito do Guardian de publicar verdades incômodas sobre aqueles no poder parece ignorar os perigos que as propostas do relatório Leveson apresentam ao jornalismo. Por outro lado, a direita não compreende que a razão para se opor a uma maior regulação da imprensa é justamente para que um jornal como o Guardian tenha a liberdade de publicar o que publicou.

Como resultado, os mesmos jornais que criticam as propostas de regulação do governo como uma violação inaceitável à liberdade de imprensa se alinharam com políticos e forças de segurança para criticar o Guardian. Malik cita o conservador Daily Mail, que está entre os maiores opositores às propostas de Leveson e condenou a “irresponsabilidade letal” do Guardian, chamando-o, em uma manchete, de “O jornal que ajuda os inimigos do Reino Unido”. Em vez de defender a imprensa de interferência política, o Mail defende a prisão de jornalistas do Guardian.

“O que temos hoje no Reino Unido é uma visão tribal da liberdade de imprensa. Ambos os lados defendem liberdade para os jornalistas de que gostam, enquanto querem silenciar os jornalistas que desprezam”, resume o escritor. “Nenhum lado parece entender que, no momento em que você convida políticos ou a polícia para determinar o que é ou não é jornalismo aceitável, a liberdade está desgastada para todos nós, independentemente de nossas crenças políticas”.