Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia não deve proteger empresas ligadas à corrupção chinesa

Houve um tempo em que as pessoas deste lado do Pacífico eram incentivadas a acreditar que as reformas econômicas da China pós-Mao transformariam um país de 1,4 bilhão de almas, em sua maioria infelizes, num lugar democrático, justo e bem organizado. Afinal, sempre acontece assim: os mercados abertos fazem sociedades abertas e livres. Uma equação simples.

Por isso, foi sensacional quando centenas de bancos e empresas multinacionais investiram em operações na China. Tornar a China democrática era, quando se procurava ir ao fundo da questão, o que todos os CEOs queriam. Você sabia disso: você lia sobre isso nos jornais.

Ao ler agora sobre as últimas reformas da China, anunciadas há poucos dias após um plenário do Comitê Central do Partido Comunista, não se percebe referência a esta velha ambição. Claro que também não há referência à história – e, com certeza, não há menção alguma de que a velha ambição tenha sido apenas uma aspiração.

A matéria sobre este assunto seria insuportável. Sem querer levantar temas inflamáveis entre os leitores de minha coluna anterior sobre como o New York Times disfarça a verdade com aspas, a matéria exigiria que as reformas fossem transformadas em “reformas”. A história é que os EUA e a maioria de sua população são extremamente dependentes, senão viciados, do mesmo sistema de controle e exploração asfixiante que dizem lamentar.

Mercados confiáveis

Eis aqui tudo em uma frase: atualmente, somos todos apparatchiks do Partido Comunista. E vai chegar a hora em que teremos que reconhecer que já o somos desde a época de Deng Xiaoping, na década de 80. Por que não vejo nada a esse respeito nos jornais que leio?

As reformas recém-anunciadas pelo presidente Xi Jinping são consideradas a melhor notícia desde as toalhas plásticas de limpeza Saran (será que também são feitas na China?). Especialistas e sinólogos as comparam às grandes mudanças iniciadas por Deng Xiaoping dois anos após a morte de Mao, quando já era seguro defender abertamente a história de enriquecer.

Ainda esperamos um documento minucioso listando as reformas de Xi. Até agora, temos alguma liberalização de preços, alguma redução nas restrições de investimentos, algum aumento de concorrência entre empresas estatais etc. Tudo isso – e agora, a frase que provoca um calafrio na imprensa de finanças – com a intenção de “permitir ao mercado que desempenhe um papel decisivo na alocação dos recursos”, como explicou a declaração do Comitê Central. Não conheço mercados particularmente confiáveis em alocar recursos – talvez seja o caso de se perguntar a alguém que mexa com compras e fusões de empresas e depois a um professor –, mas podemos deixar isso de lado por um momento.

Relações com a China só mudam marginalmente

Algumas medidas sociais foram planejadas. Migrantes urbanos receberão tratamento igual quando chegarem às cidades em busca de trabalho. Lavradores poderão vender suas terras quando desistirem dos vilarejos para se juntarem ao fluxo rumo às cidades. O item que os leitores terão tomado conhecimento é a liberalização da política de um único filho, que era uma das primeiras reformas – desculpem-me, “reformas” – de Deng Xiaoping.

Vejamos esta lista, ainda que incompleta. O que temos aqui vindo da mesa do camarada Xi? O correspondente em Pequim não o ajudará nesta questão. De cima para baixo, há os ajustes tecnocráticos com a intenção de fazer o sistema capitalista autoritário da China funcionar melhor (ou “melhor”). Trata-se da questão óbvia dos ajustes de mercado. A maioria das novas disposições sociais é uma mera resposta à escassez de mão de obra que, se não for enfrentada, deixará as fábricas sem matéria-prima e provocará um aumento nos salários.

As reformas mudam as instituições; elas implicam uma mudança fundamental na direção de uma sociedade. Aquilo que a nossa imprensa divulgou são apenas “reformas”. Oferecem maneiras mais eficientes de explorar e controlar as pessoas dentro da economia social do jeito que é hoje. São mecanismos, e não reformas. E é por isso que gozam de uma aprovação unânime no Ocidente. As relações com a China são tão boas que só podem mudar marginalmente.

“Se publicarmos a matéria, seremos expulsos”

É quase como se Xi e seus camaradas do Comitê Central quisessem destacar esta questão da maneira mais rígida possível. Junto com as “reformas” econômicas, veio uma outra, grande, do lado administrativo. Pequim irá criar uma “Comissão Nacional de Segurança” para concentrar o poder sobre a segurança interna, a inteligência exterior, a política externa e a política militar. Provavelmente, Xi Jinping comandará essa agência. Meu detalhe preferido: o modelo é uma mistura de nosso Conselho Nacional de Segurança e a Agência Nacional de Segurança. Há quem se orgulhe disso.

E agora chegamos ao que está faltando nos relatórios de Xi e suas “reformas”. Não há referência alguma à nossa cumplicidade, a nosso interesse no êxito de Xi Jinping à medida que ele fortalece e expande o poder centralizado de maneira a que uma ditadura de partido único possa sobreviver a uma abertura cuidadosamente atenuada dos setores mais lucrativos de sua economia social. É devido à nossa cumplicidade que a imprensa exagera o caso chinês: as “reformas” têm que surgir como reformas.

Em manchete, o Financial Times fala (16/11) de “esperanças por uma década de mudanças radicais”. Com todo o respeito por um jornal que costumo ler, isto é um disparate enganoso.

Dois incidentes recentes na imprensa lançam uma luz curiosa. Há dez dias, uma longa matéria relatava como Matt Winkler, o controvertido (continuemos sendo educados) editor-chefe da Bloomberg News, descartara uma investigação de um ano sobre vínculos de corrupção entre um magnata chinês e importantes autoridades do Partido Comunista. “Se publicarmos a matéria, seremos expulsos da China”, teria dito Winkler por telefone, segundo um dos correspondentes, entre Nova York e Hong Kong. Winkler nega tudo, e é o que deveria fazer. (Em nome da transparência: este colunista escreveu um comentário, certa vez, para a organização de Winkler e recebeu uma variante do mesmo tipo de tratamento.) Se algum leitor puder pensar num exemplo mais baixo de depravação frente ao poder chinês e aos lucros auferidos a partir dele, queira enviar seu comentário ao final deste artigo.

Fluxo de fundos ilegais

E a coisa fica mais curiosa. A história de Winkler foi vazada para e divulgada por ninguém menos que o New York Times, que a publicou na primeira página (9/11). E ainda mais curioso. Cinco dias depois, o Times publicou – acreditem – sua própria investigação sobre como o banco JP Morgan Chase mais ou menos subornou a filha de Wen Jiabao, que na época era primeiro-ministro, para fazê-la avalizar garantias para o grupo China Railway, uma das maiores estatais chinesas.

O artigo do Times era de David Barboza, correspondente do jornal em Xangai. (Mais transparência: Barboza e eu já fomos colegas.) É um excelente trabalho; o gráfico que mapeia as muitas e imaginativas formas de corrupção da família Wen deve ter custado milhares de dólares e muita sola de sapato e vale por tudo o que conseguiu juntar na matéria. Pelo que sei, Barboza continua a viver e trabalhar em Xangai. Seu texto é notável (e diabolicamente cronometrado para se seguir à revelação de Winkler). Um sinal de reconhecimento. Mas há algo faltando, fazendo uma inverdade por omissão.

O fluxo de fundos ilegais de bancos e corporações ocidentais é fundamental para a corrupção chinesa e para aqueles que se beneficiam dela, de ambos os lados. Sigam a lógica: [a corrupção] é um dos motivos (entre muitos outros, claro) para que a China seja uma das sociedades mais injustas do mundo em termos de distribuição de renda. O banco JP Morgan fez quase tudo do mesmo jeito, exceto por uma coisa: foi pego.

Lei contra Práticas Corruptas no Exterior

Não vejo nada de radical na tese acima descrita. É uma réplica precisa daquilo que eu costumava chamar o contrato social da Guerra Fria quando vivia no Sudeste Asiático. Os povos aceitam vários graus de tirania, de silêncio político e de corrupção entre as elites, sempre com financiamento externo, para continuar funcionando. Em troca, recebem um mínimo de conforto material – televisores, geladeiras etc, em geral pela primeira vez na vida. Eu sintetizo esse acordo como “cale a boca e mude de canal”. Você se lembra de alguns dos nomes: Marcos, Suharto, Park Chung Hee, o fantástico Kakuei Tanaka e seu escândalo da Lockheed. Na verdade, acho que Kaku-san fez dinheiro brotar em árvores antes de terminar seu trabalho.

Resumindo: a China de Xi Jinping não representa uma reforma neste antigo acordo entre os dois lados do Pacífico. Some-se o seu nome à lista. E nunca saia de casa sem suas aspas.

Nota de rodapé: no meio da semana, o Wall Street Journal divulgou que o banco JP Morgan teria retirado seu aval de uma oferta de 2 bilhões de dólares feita por uma instituição chamada China Everbright Bank, em Hong Kong. Isso é um caso raro, em se tratando de bancos comerciais. Parece que o JP Morgan contratou um jovem chamado Tang Xiaoping antes de cortar o bolo. O pai de Tang é o presidente do China Everbright Group, estatal que é proprietária do Everbright Bank. Esse é um dos vários tópicos que as autoridades norte-americanas estão investigando à luz da Lei contra Práticas Corruptas no Exterior. Você se lembra? O Congresso aprovou-a depois que a Lockheed foi flagrada subornando Tanaka, que na época era primeiro-ministro (meados da década de 70). Que bela marca de nossos pés deixamos do outro lado do Pacífico.

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Patrick L. Smith é jornalista e escritor. Foi chefe da sucursal do Herald Tribune em Hong Kong e depois em Tóquio, de 1985 a 1992.