Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fotografando fora da bolha branca do apartheid

João Silva estava entre a meia dúzia de fotógrafos que fizeram reputação registrando a queda do apartheid na África do Sul. Embora tenha ido cobrir conflitos em outros lugares – Iraque, Afeganistão etc –, ele continua vivendo e trabalhando na África do Sul, inclusive fotografando as pessoas de luto em frente à casa de Nelson Mandela, na sexta-feira (6/12).

João Silva relembra os momentos de suma importância que levaram à eleição, assim como os posteriores, do primeiro presidente negro da África do Sul, numa conversa com Shreeya Sinha, da editoria internacional [do New York Times]. A conversa foi editada.

O que trouxe você à África do Sul?

João Silva – Meus pais imigraram para a África do Sul quando eu era criança. Crescer na África do Sul, para mim, como para qualquer outra criança imigrante, significou aprender uma cultura. Naquela época, era um país polarizado. Enquanto criança crescendo na África do Sul, você ficava muito protegido do mundo exterior e, portanto, não tinha uma noção concreta do que estava politicamente acontecendo no país.

Qual era a compreensão que você tinha do apartheid?

J.S. – A sociedade era completamente segregada na África do Sul. Você vivia em bolhas. Eu próprio posso dizer que vivi num mundo de bolhas brancas. Portanto, enquanto crescia, na escola, nunca vi falarem disso na mídia pública. Quando me revoltei e escapei, encontrei minhas fronteiras políticas e tomei conhecimento de que aquele homem [Nelson Mandela] existia. E de que aquele governo hipócrita e opressivo também existia. São despertares políticos que naquela bolha branca política não existiam. Meus pais não falavam do assunto. Eu não sabia quem era Mandela. Eu vivia na minha bolhinha branca e isso era exatamente o que o governo queria que o país fosse. Portanto, eu fui uma vítima disso, se é que podemos dizer vítima. Eu não fazia a menor ideia – meus amigos e eu praticávamos esportes, íamos a discotecas, essas coisas que adolescentes fazem. Parece esquisito, mas foi assim para a garotada que cresceu durante o apartheid, sob o domínio da supremacia branca, e favoreceu-me. Não fui oprimido de forma alguma – fui beneficiado.

Seu campo de treinamento foi a África do Sul. O que fez com que você pegasse uma câmera e começasse a fotografar? Como foram os primeiros anos?

J.S. – Nos meus vinte e poucos anos, escolhi a fotografia e comecei a usá-la como ferramenta para mostrar o mundo à minha volta e o que eu sentia. Como repórter fotográfico, documentei o fim do apartheid e da violência que se tornou vinculada a ele. Não havia opções concretas. E o mundo à minha volta era o apartheid que chegava ao fim e toda aquela violência era o resultado da liberação dos partidos políticos – em grande parte, instigada pelo governo. Eu fotografava para um jornal local, um desses jornais gratuitos em que não há, realmente, um interesse maior em saber o que está acontecendo nas comunidades negras – tratava mais do que acontecia nas comunidades brancas. Eu tinha que escapar daquilo e documentar o que sentia que era a realidade da África do Sul. E dei comigo sendo testemunha de toda essa selvageria pelo país afora. Durante quatro anos até que o apartheid chegasse realmente ao fim e mesmo depois, pois na realidade a violência continuou em algumas áreas por pelo menos um ano.

E o que aconteceu quando Mandela foi libertado?

J.S. – Eu era freelancer e trabalhava num arranha-céu urbano em Joanesburgo, no bairro de Hillbrow, que é uma área muito densa. Morava num apartamento e, de repente, começaram a surgir pessoas nas ruas comemorando a libertação de Nelson Mandela. Mesmo naquela época do apartheid, Hillbrow era um bairro em que havia muita mistura; era muito cosmopolita. Só consegui fotografá-lo vários meses mais tarde. Acho que o fotografei pela primeira vez no verão de 1991. Enquanto crescia, na escola, ou mesmo já adulto, as imagens de Mandela eram proibidas pelo governo do apartheid. Ninguém sabia realmente como ele era. Quando finalmente o fotografei, havia muitas, muitas fotos dele nos jornais porque, embora ele tivesse sido solto alguns meses antes, era a primeira vez que se podia vê-lo. Foi uma coletiva de imprensa na casa de Winnie Mandela. Foi do lado de fora, numa mesa comprida, no pátio. Todos aqueles rostos atrás da mesa e eu tentava identificar Mandela porque ainda não o tinha visto. É claro que era fácil identificá-lo, pois ele estava sentado no centro da mesa. Essa foi a primeira vez e infelizmente não pude passar muito tempo com Mandela. Fotografei-o em inúmeras ocasiões, mas naquela época o que centrava minhas atenções era a violência que continuava. Muitas vezes fotografei Mandela em locais que eram voláteis. Havia um potencial para a violência em consequência de sua presença. Em parte, isso se devia ao fato de que o Partido da Liberdade, do qual ele era fervoroso militante, atraía a violência.

Recentemente, encontrei uma folha com negativos coloridos dessa época e quatro desses fotogramas são vinculados. Em dois deles, há fotos de Nelson Mandela e nos fotogramas seguintes há imagens de alguém que está sendo seriamente ferido. Isso, para mim, é representativo daquele tempo e de como ele era volátil. Num momento, você estava cobrindo Nelson Mandela, com todo aquele tumulto, e subitamente você se tornava testemunha da morte de alguém ou presenciava o que se seguia a alguém ter sido morto.

Com que frequência você o fotografava? Ele mudou durante esse tempo todo?

J.S. – Em termos relativos, o período que passei com Mandela foi curto. De 1990 ao final de 1994, só o fotografava em ocasiões específicas. Minha carreira prosseguia e passei a viajar cada vez mais para o exterior. O meu foco passou a ser, principalmente, o Afeganistão e o Iraque. Fotografei-o algumas vezes depois de 1999. Em 2008, percebi como tinha envelhecido e como parecia mais frágil, pois haviam passado muitos anos desde que eu o tinha visto e isso foi horrível. Tenho uma foto dele sendo ajudado por Jacob Zuma que guardei por muito tempo porque sabia que Mandela estava ficando velho e vendo-o assim tão frágil era incrível. Ele é a imagem de um homem caminhando rumo à liberdade. Mas, assim como todo mundo, ficamos velhos e morremos. Em 2008 percebi pela primeira vez essa fragilidade e desde então não o fotografei.

Como é que era ficar próximo a ele?

J.S. – Ele era incrivelmente carismático. Gostava de gente, sentia-se à vontade com as pessoas. Adorava ficar perto de crianças. Era um homem muito fácil de abordar. E naquela época, quando ele ainda não era presidente, para um fotógrafo não havia todas essas restrições à sua volta. Você podia chegar bem perto e fotografá-lo de uma distância mínima, íntima. Dá para ver isso nas imagens. Ele preenche o fotograma por estar tão perto. Com uma grande angular, então, ele ficava à vontade em frente à câmera do mesmo jeito que ficava à vontade com pessoas. Acho que era o sonho de um fotógrafo.

O que ele significa para você?

J.S. – Ele trouxe a liberdade. É quase um messias. Eu era uma criança naquela bolha branca. Não me preocupava com o sofrimento dos negros africanos porque era um garoto que vivia numa bolha. Ele se tornou um ícone da rebelião, um ícone da libertação. Desde então, está aqui comigo. Minha carreira prosperou desde que ele foi solto – 1990. Comecei a fotografar um ano antes e agora vejo-o ir embora. É como se fosse um círculo completo, sabe?

E agora?

J.S. – Com ou sem ele, a África do Sul enfrenta desafios. Temos uma enorme desigualdade entre ricos e pobres. Se não for enfrentada pelos poderes políticos, a pobreza irá destruir este país. Se não houver vontade política para tratar dos pobres, é como uma bomba-relógio. De muitas maneiras, a África do Sul tornou-se uma questão de classe: os que têm e os que não têm. Acho que a África do Sul tem muitos desafios pela frente, mas eles existem com ou sem Mandela. Viveremos de acordo com as expectativas? Expectativas de quem?

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>> Veja aqui fotos de João Silva

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Shreeya Sinha é editora de Mundo do New York Times