Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ‘selfie’ de Obama e a versão brava de Michelle           

Nem o presidente Obama está acima de tirar um autorretrato no lugar menos apropriado possível. Enquanto aguardava o funeral de Nelson Mandela, na África do Sul, Obama fez uma pose para uma foto com os primeiros-ministros David Cameron, da Grã-Bretanha, e Helle Thorning Schmidt, da Dinamarca. Talvez fosse de mau gosto para esses líderes mundiais fazer pose e pavonear-se, mas eles são apenas humanos. Ficamos desamparados quando temos tamanho poder fotográfico na palma da mão.

Na imagem, já amplamente divulgada, Michelle Obama está sentada à esquerda do presidente, olhando ao longe. Em duas outras imagens, a primeira-dama olha na direção do presidente enquanto este fala com a primeira-ministra dinamarquesa e depois olha em frente. A mídia (assim como todo mundo) reagiu, tentando enquadrar Michelle Obama como “zangada”, ou “de censura”, quando ela talvez nem estivesse dando atenção a seu marido falando bobagens com seus amigos líderes mundiais.

No Washington Post: “A primeira dama parece séria – poderíamos dizer que ‘desaprova’?” No New York Daily News: “Michelle Obama estava sentada a uma certa distância, como se desaprovasse a foto digital.” No Business Insider, alguém ironizou: “Aquele olhar mata.” O título do Huffington Post, atrevido, declara: “Michelle Obama não se conforma com isso.” No blog político Wonkette, de Washington: “Michelle Obama ficou p… da vida.”

Expectativas sobre as mulheres negras

E os sabichões continuam, atribuindo narrativas historicamente racializadas àquilo que pensa e sente Michelle Obama num momento sincero. Colocando de lado como é triste que essa pauta seja sequer divulgada como “pauta”, não temos como avaliar por que Michelle Obama não está sorrindo e posando e se apresenta da maneira que, aparentemente, as pessoas esperavam que se apresentasse durante o funeral de um dos líderes mundiais mais amados de nossa época. Será que ninguém notou que, nessas imagens, ela é a única pessoa que faz exatamente o que se espera num funeral?

Parte da resposta é, com certeza, irônica. Depois da maravilhosa olhadela que Michelle Obama deu a John Boehner durante o almoço da segunda posse do presidente, todos nos divertimos imaginando o que aquele político poderia ter dito para provocar reação tão intensa. Mas o que estou dizendo aqui não é que não haja espaço para piadas, mas com demasiada frequência são mulheres negras, ou caricaturas de mulheres negras, que servem de palavra-chave.

Mais do que qualquer outra coisa, a reação a essas imagens recentes de Michelle Obama diz muito sobre as expectativas que se colocam sobre as mulheres negras para o público e como a ausência de um estado emocional é interpretada como irritação. A mulher negra é sempre apresentada como defendendo agressivamente seu território. Ela revela sua desaprovação. Ela não pode simplesmente ser o que é.

O ‘selfie’ serviu de espelho

Talvez a primeira-dama esteja irritada com seu marido ou com outra pessoa qualquer, talvez esteja indiferente, talvez esteja pensando na longa viagem de volta para casa ou talvez, apenas talvez, esteja refletindo sobre a vida e o legado de Nelson Mandela. Jamais saberemos.

Entretanto, a internet especula sobre a mentalidade de Michelle Obama, sobre seus motivos e a situação de seu casamento porque se um homem negro, casado, sempre visado – ainda que sendo o comandante-em-chefe –, é visto sorrindo ao lado de uma mulher branca atraente, bem, isso é o fim do casamento. O demônio feminino branco ataca de novo! A primeira-dama não tem como vencer. No mês passado, Michelle Obama era um “pesadelo feminista”. Agora está irritada e à beira de acabar com seu casamento. Só podemos imaginar como será o dia de amanhã.

E, é claro, há uma outra imagem que simplesmente não está sendo compartilhada com a mesma frequência ou entusiasmo – de Michelle Obama sentada, com seu marido e a primeira-ministra dinamarquesa, rindo e fazendo sorrisos abertamente. Somos seletivos naquilo que queremos ver. Esta imagem está sendo ignorada porque não é adequada à narrativa que queremos. Existe também uma imagem, compartilhada pela escritora Goldie Taylor, de Laura Bush nem um pouco divertida enquanto seu marido conversa com uma linda mulher sentada na fileira atrás deles. Estaria ela desaprovando? Estaria preocupada com seu casamento? Não “se conformaria” com a conversa? Ou estaria apenas sentada?

Embora na maioria dos casos o autorretrato permita voltar a câmera para nós próprios, o autorretrato do presidente Obama no funeral de Nelson Mandela serviu de espelho, refletindo os preconceitos que as pessoas às vezes nem sabem que têm.

******

Roxane Gay é jornalista e escritora