Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O trabalho de combate do ‘Kyiv Post’

Era a noite de 22 de janeiro. Christopher J. Miller, um dos editores do Kyiv Post, estava na Maidan, principal praça de Kiev e centro dos protestos. Enquanto ele entrevistava um transeunte, uma bala ricocheteou num prédio e atingiu o homem no queixo. Teve sorte e não foi ferido com seriedade. Três manifestantes morreram em janeiro e, por ocasião dos agora infames ataques de franco-atiradores de 20 de fevereiro, 105 ucranianos morreram. Em 22 de fevereiro, o governo caiu e o presidente Viktor Yanukovych, acusado de uma chacina, fugiu para a Rússia de Vladimir Putin.

As ruas de Kiev eram um local arriscado. Mas o Kyiv Post continuava firme, como nos últimos 18 anos. “No dia 20 de fevereiro, os assassinatos por franco-atiradores aconteceram por volta da hora do café da manhã”, diz Brian Bonner, editor-chefe do Post. “Pouco depois, tínhamos bastante gente nas ruas, mas não na hora dos tiros. Tivemos inúmeros repórteres contando os corpos à medida que hotéis, agências de correios e as próprias ruas se tornavam necrotérios improvisados. O pessoal da nossa equipe usou capacetes, coletes à prova de balas ou máscaras de gás, se preferissem. Muitos não quiseram… Nossos jornalistas tiveram que fugir da polícia de choque quando desempenhavam tarefas e evitar bandidos contratados pelo governo (os titushki) que tomavam conta das ruas espancando pessoas.” (Os melhores momentos do vídeo da cobertura da praça Maidan pelo Kyiv Post podem ser vistos aqui.) “A combinação de uma presença maciça de nossas equipes e reportagens feitas in loco explica por que saímos horas na frente dos despachos das agências e de todo mundo. Então, ocorreu um problema com nosso website, que só voltou mais de 10 horas depois. Um grande desastre para a Ucrânia seguido por um pequeno desastre para o Kyiv Post.”

Grande parte dos jornais pertence a meia dúzia de oligarcas

Aquele dia, como numa casca de noz, descreve os altos e baixos do Kyiv Post.

Por anos a fio, o Kyiv Post funcionou com dificuldade, porém, assim mesmo, faz uma diferença jornalística notável. Sobrevive com um orçamento mensal de apenas 60 mil dólares (R$ 132 mil), com uma equipe de 16 jornalistas e mais 14 nos outros setores da empresa. A equipe, em sua maioria, é ucraniana e inclui quatro expatriados, todos norte-americanos; o diretor-presidente, Jakub Parusinski, é polonês.

A história do jornal é inspiradora e um desafio de coragem para jornalistas ocidentais que se queixam de seus próprios trabalhos pesados.

Como diz Jacqui Banaszynski, uma jornalista vencedora do prêmio Pulitzer que visitou a Ucrânia três vezes para trabalhar com jornalistas do Post nos últimos quatro anos: “A maioria do pessoal desta equipe tem mais um ou dois empregos. Não têm a lei, ou a tradição, ou dinheiro a seu lado. Nem sequer têm uma língua a seu lado. Em sua maioria, falam ucraniano e russo como línguas maternas e agora têm que navegar o mundo do inglês. E [Brian Bonner] os manda atrás das matérias mais difíceis, sobre governo e corrupção”. “Tomamos cerveja à noite e eles resmungam e reclamam, como fazem os jornalistas por toda a parte, mas sempre comparecem”, diz Jacqui, que leciona Jornalismo na Universidade do Missouri. “Eu gostaria de poder transmitir esse compromisso para cá, onde damos de ombros e dizemos ‘A vida é dura’, e temos tanta coisa. Lá, trabalho com pessoas que têm apenas coração e talento.”

O coração e o talento aparecem nas páginas do Post. O site Kyiv Post Exclusives mostra uma porção de textos de boas reportagens, bem escritos e unindo os pontos. O site também conta com uma boa dose de vídeos, e agora, em particular, documenta a atual crise. Folheando as primeiras páginas da semana do jornal impresso, percebemos a cobertura numa maior profundidade. Apesar do aumento das pressões para tomar partido à medida que os protestos aumentavam, Brian Bonner diz que o Post resistiu e conseguiu manter contatos para as reportagens dentro do governo.

Atualmente, boa parte do mundo jornalístico da Ucrânia está em convulsão. Segundo Bonner, em grande parte os jornais pertencem a uma meia dúzia de oligarcas e muitos praticam a autocensura. Agora, com a reabertura da sociedade, a imprensa de língua ucraniana vem sendo reformada.

Quem é quem e o que é o quê

Durante toda esta crise, assim como todas as que a precederam, o Kyiv Post permaneceu em seu marco zero. Nos primeiros anos que se seguiram ao colapso da União Soviética e desde então, foram muito poucos os jornalistas não-ucranianos que passaram algum tempo em Kiev. Os jornalistas vieram em 1991 – e depois foram embora. Em 2004, vieram devido à Revolução Laranja – e depois foram embora. Vieram e foram embora durante os seis meses de protestos e revolta na praça Maidan, durante o assassinato dos manifestantes, na fuga do presidente Yanukovich e para a tomada da Crimeia pelos russos. Agora, equilibram-se olhando para o leste, à medida que a Rússia avança dos dois lados de sua fronteira com a Ucrânia.

O perfil do Kyiv Post vem crescendo de forma assombrosa. No dia em que a Rússia invadiu a Crimeia, seu site foi visitado por 470 mil pessoas. Há duas semanas, no dia do referendo na Crimeia, o site recebeu 232 mil visitas únicas. Na audiência digital, de uma maneira geral, o crescimento mensal, segundo Brian Bonner, foi de 11,3 milhões para 17,4 milhões de pessoas. As visitas únicas cresceram de 3,1 milhões para 4,2 milhões. Atualmente, o número de seguidores no Twitter é de 36.900.

A língua do Post é exclusivamente o inglês (após uma tentativa mal sucedida de usar a língua ucraniana em 2010-11), tanto para o jornal semanal quanto para o website, constantemente atualizado. O website teve grande serventia como ponto de informação durante a crise e seu valor aumentou quando Bonner decidiu, em 2008, agregar cobertura da Ucrânia. “Queremos criar uma escala para notícias sobre a Ucrânia em língua inglesa e oferecer às pessoas os links que desejarem”, diz ele. “As pessoas podem procurar no Google, mas vai levar o dia todo e a noite toda. Como já o fazemos, não têm que fazê-lo.” A maior parte da agregação é por meio de links; os cortes no orçamento obrigaram a cancelar as assinaturas com a Reuters e a Associated Press.

Devido às suas reportagens originais e à agregação, o site é usado por uma corrente contínua de jornalistas globais que visitam o país e tentam conseguir entender rapidamente quem é quem e o que é o quê; desta forma, o Post acaba sendo citado na cobertura de veículos internacionais. (Veja várias citações do New York Times aqui.)

“O modelo de negócios” tem um sentido diferente

Jacqui Banaszynski conheceu Brian Bonner em 1984 no jornal Pioneer Press, da cidade de St. Paul, onde fui chefe de redação de 1986 a 1997. Bonner juntou-se à equipe dela oito anos depois. “Ele era um repórter de polícia durão”, lembra ela. “Jogava pôquer com os policiais na sexta-feira à noite e no sábado já os chamava à responsabilidade.”

Ela lembra um passeio a pé por Kiev. Ela perguntava onde era a Ópera – quase sempre uma obsessão, naquela região – e Bonner respondia “Nunca fui lá”. “Depois, ele apontava para um edifício de 24 andares e dizia: ‘Ali em cima tem gente que é financiada pelo grupo assim-assim e em seus bolsos há provas de que são corruptos.’ Era um passeio de negócios e corrupção do governo”. Esses talentos de detetive e a capacidade de navegar tanto por culturas não americanas quanto pelo mundo digital puseram-no numa posição única para influenciar a cultura da mídia na Ucrânia.

Mas as adversidades enfrentadas pelo Kyiv Post são comparáveis às da própria Ucrânia. Brian Bonner, que agora tem 54 anos, veio para o Post pela primeira vez no verão de 1999, trabalhou ali por algum tempo antes de fazer um trabalho para uma ONG e em seguida voltou para o Pioneer Press, onde ficou de 2002 a 2007. Em 2008, voltou para o Post como editor-chefe. Saiu do jornal por duas vezes; uma delas por ter tido uma matéria vetada (decisão rapidamente revogada quando a equipe saiu em seu apoio) e outra, quando foi afastado devido a cortes no orçamento. Durante seu mandato, a propriedade do jornal passou do fundador para um novo dono, famoso. Ofertas lucrativas para comprá-lo – e acabar com ele – foram recusadas. A receita publicitária, que vinha crescendo, foi reduzida pela convulsão política e econômica da Ucrânia. “Não teve trégua”, diz Brian Bonner. “Cada dia podia ser o último.”

Quanto ao desempenho da receita, o Post teve altos e baixos, mas os altos não ocorrem já há algum tempo. “O modelo de negócios” tem um sentido completamente diferente quando se está tentando manter viva uma organização jornalística desconexa em meio a uma revolta, corrupção e recessão econômica. No entanto, ligado na opção digital em seu escasso tempo livre, Bonner tenta descobrir qual a melhor maneira de seguir em frente.

Patrocinadores de jornalismo investigativo

Vejamos o caso das assinaturas digitais. O sistema de acesso digital ao Kyiv Post foi criado há um ano. Brian Bonner vem fazendo diferentes abordagens para o que é gratuito e o que é pago. Quando começou o movimento EuroMaidan, no outono passado, o Post pôs inteiramente de lado sua paywall, como já vinha fazendo, de maneira intermitente, quando as coisas passavam de quentes a escaldantes. É uma opção difícil para um site que quer manter acesso à informação aberta e, no entanto, precisa de dinheiro para sobreviver. Por vezes, a paywall provocou um óbvio desânimo sobre o tráfego. Mais fácil seria encontrar uma empresa ou fundação para manter o site amplamente acessível.

Atualmente, o Post conta com mais de 1.600 assinantes digitais – e os preços subiram para 50 dólares ao ano (110 reais) ou 20 dólares por mês. Oitenta e cinco por cento da audiência digital é no exterior – um terço, dos Estados Unidos, seguindo-se Canadá, Grã-Bretanha e Alemanha. A edição semanal impressa tem atualmente tiragem de 11 mil exemplares, uma queda dos 25 mil dos melhores tempos econômicos da Ucrânia. Os assinantes pagam o correspondente a 60 dólares (132 reais) por ano. Sessenta por cento dos exemplares são para empresas assinantes; as empresas ainda compram 20% dos exemplares que são entregues às sextas-feiras. Trinta por cento são distribuídos gratuitamente em restaurantes, hotéis e locais-chave do governo. Dez por cento vão para as bancas, que vendem o Post a um euro (3 reais). Os leitores do jornal impresso são ucranianos e os anúncios representam de 80 a 90% da receita.

A publicidade caiu à medida que a economia da Ucrânia entrou em pânico (veja relatório do mercado aqui), mas as conferências e os suplementos impressos ajudaram a superar parte disso, trazendo de 10 a 20% de receita.

Brian Bonner teve que cortar pessoal da equipe e serviços de agências para se equilibrar. Ele também vem desenvolvendo uma espécie de modelo híbrido para empresas lucrativas/não lucrativas do qual se podem ver exemplos nos Estados Unidos. Trabalhando em conjunto com vários patrocinadores europeus de jornalismo investigativo, o Post arrecadou quase 40 mil dólares (88 mil reais) em bolsas e doações. Esse dinheiro pagou duas reportagens investigativas temporárias, além de pequenas quantias para servidores, viagens e outras necessidades da tecnologia de informação. Diz Bonner: “Aquele dinheiro foi gasto rapidamente – temos uma enorme lista de necessidades.”

Nunca emita uma opinião singular

O Post teve quatro diretores-presidentes nos seis anos em que Brian Bonner é editor-chefe. Em seu apogeu, o jornal arrecadava 80 mil dólares (175 mil reais) por mês, mas as contínuas convulsões a partir de 2009 abocanharam as receitas. Jed Sunden, um cidadão norte-americano, fundou o Post e construiu-o para ser uma grande e diversificada empresa jornalística, em 1995. Vendeu-o há cinco anos, quando a economia da Ucrânia desmoronou.

Mohammad Zahoor, o atual proprietário, comprou o jornal e o dirige como uma empresa apenas marginalmente lucrativa. Ele é uma figura curiosa – um oligarca com pedigree incomum: um cidadão britânico nascido no Paquistão e um bilionário que fez sua fortuna na produção de aço ucraniano. Ele frequenta a alta sociedade londrina; seu recente desejo é transformar sua esposa, Kamaliya, uma ex-miss Universo, na próxima Lady Gaga (o semanário Der Spiegel acompanhou Zahoor através de Londres). O casal Zahoor teve filhas gêmeas no ano passado e participou de um reality show da filial da Fox no Reino Unido: “Meet the Russians”. (Você achava que bilionários comprando jornais era um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos?)

A necessidade de equilibrar o orçamento atrasou o progresso digital do Post. Consequentemente, adiou o plano de Bonner para o site: melhorar sua tecnologia a um custo zero, ou quase zero. Entre os problemas: o site sai com muita frequência do ar, em horas de muito tráfego. O sistema de pagamento digital faz parte do sistema de gerenciamento de conteúdo do Post e falta-lhe flexibilidade. O sistema de comentários não funciona. Falta-lhe um banco de dados de assinantes registrados. O sistema de busca interno é ruim.

Devem existir alguns técnicos ocidentais que poderiam dar uma força gratuitamente a um importante veículo jornalístico numa democracia ameaçada.

A Ucrânia é um país difícil de entender. Mudou muito nos 23 anos de sua independência e, no entanto, em muitos aspectos não mudou. Existe uma sociedade oficial e existe a maneira pela qual as coisas funcionam. O mercado negro é um concorrente importante para os negócios das grandes empresas. Os oligarcas dominam o poder concreto.

Tive a oportunidade de visitar a Ucrânia em 2002, numa busca por minha genealogia familiar, e tive uma rápida ideia de como as coisas funcionavam. Alex, nosso guia/intérprete/guarda-costas/motorista, tentava explicar as nuances da sociedade ucraniana – se você investigasse bastante. E tome investigação… Ao lhe serem perguntadas as origens do sobrenome Doctor, que tem pelo menos quatro séculos na Ucrânia ocidental, ele respirava fundo. “É claro que descreve um médico, ou uma pessoa com estudo”, oferecia Alex. O nome derivaria daí?, perguntei. Ele fez uma pausa e, após uma hesitação, ofereceu uma definição alternativa: “Ou poderia vir do verbo transitivo diocht.” E o que significa diocht?, perguntei. “Significa passar graxa nas rodas de um vagão.” Portanto, Doctor – ou diochter, em uma das transcrições das várias línguas faladas na Ucrânia ao longo dos tempos, inclusive ucraniano, polonês e russo – “é alguém que passa graxa nas rodas dos vagões”. (Acabei apreciando ambos os derivados de Doctor; o último, um indicativo do desejo de buscar maneiras de fundar uma empresa jornalística.)

Alex não sabia que eu poderia aceitar uma redução instantânea de status, de uma pessoa estudada para quem passa graxa nas rodas, mas é aí que está a questão. Nunca emita uma opinião singular – que pode lhe criar problemas com alguma autoridade – se você puder dizer duas delas e dar espaço para manobrar. Isso é um contexto da maior importância para dirigir um site jornalístico independente, mas esse é o território em que o Kyiv Post deve navegar.

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Ken Doctor é analista de mídia