Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ataque em Paris resume riscos enfrentados por jornalistas

As estatísticas são alarmantes. 61 mortos. 70 mortos. 74 mortos. 47 mortos. 44 mortos. 74 mortos. Os números representam a quantidade de jornalistas mortos a cada ano entre 2009 e 2014. Mais de 1.100 foram mortos em consequência de seu trabalho desde 1992 – e estas estão entre as estimativas mais conservadoras.

A revista Charlie Hebdo e a França estão de luto pelo assassinato de 10 jornalistas e dois policiais neste início de ano. Desgraçadamente, e com certeza, haverá outros à medida que o ano transcorra. Quando jornalistas são assassinados, a ferida deveria ser sentida por toda a nossa sociedade. Seria este recente atentado que, finalmente, iria despertar todo o mundo para o fato de que um ataque a um jornalista é um ataque contra todos nós?

Por mais revoltante que pareça, o atentado fatal contra a redação do principal semanário satírico de Paris não é um caso isolado, e, sim, um exemplo supremo da realidade brutal, e frequentemente violenta, que atinge milhares de jornalistas profissionais pelo mundo todo.

Converse com jornalistas no Iêmen, na Síria, no Iraque, no Paquistão, no México ou em inúmeros outros países e verá que a revolta e o medo que tomaram a França é parte da rotina. O fato deste atentado ter ocorrido num país que, apesar de envolvido com os problemas de sua identidade multicultural, não deixa de estar empenhado em acreditar na diferença e na diversidade – liberté, égalité, fraternité – é um golpe trágico contra aqueles decididos a comemorar esses valores.

O que há de excepcional neste caso é que o clima de ódio que alimenta os ataques contra jornalistas do mundo todo chegou ao coração das redações europeias.

A amargura, o ódio e o sectarismo

Enquanto lamentamos nossa dor e à medida que os motivos se desdobram e a história se desenvolve, espero que fique profundamente registrado nas mentes dos europeus comuns até que ponto nossas liberdades se tornaram precárias; e que seria um absurdo que qualquer pessoa, em qualquer lugar, fosse assassinada por exercer o direito à liberdade de expressão. Seja em Paris, em Sana’a ou em Bagdá, sem exceção.

Só com solidariedade podemos esperar resistir a atentados como este. Mas a realidade – baseada na ausência de reação nos inúmeros outros massacres de jornalistas ao longo dos anos – é que, até acontecer em nosso quintal, muitas vezes nem é divulgada, apenas considerada como uma ameaça.

O atentado de quarta-feira (7/1) atinge a estrutura da democracia e as sociedades que se pretendem democratizar pelo mundo todo. Um ataque a uma publicação como o Charlie Hebdo – destemido, imperturbável, decidido em sua sátira política mordaz e em seus comentários sociais penetrantes – pretende ser um ataque aos valores em que nossas sociedades se apoiam. Que não sejamos mais condenáveis para os outros quanto para nós próprios é uma filosofia que manteve a Europa em paz desde a II Guerra Mundial e, de alguma maneira, tornou-se a medida essencial ao nosso progresso. Aprendendo a respeitar as diferenças e não proporcionando exceções à regra “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.” Talvez nunca uma frase tenha tido tamanha intensidade.

Este atentado também parece rasgar o continente ao longo de algumas linhas de demarcação cada vez mais tênues. Qualquer tipo de pensamento fundamentalista – de direita, de esquerda, econômico, cultural ou religioso – irá procurar explorar a provável fragmentação da Europa e conduzir o seu povo de volta ao caldeirão da amargura, do ódio e do sectarismo que pontuou nossa história.

Temos um dever para com os que morreram

A Europa sobrevive justamente devido à sua diversidade, às suas diferenças. Qualquer dogma – religioso, econômico, político ou outro qualquer – que procure impor uma visão única da sociedade europeia, principalmente por meios violentos, está destinado a ser rejeitado.

E quando essa crença vacila, quando os ataques esgotam as soluções, a imprensa tem uma responsabilidade de lembrar aos europeus seu passado e de projetar um futuro em potencial de acordo com os valores pelos quais tantos lutaram e morreram antes do nascimento do moderno continente.

Atentados como o de quarta-feira têm por objetivo explorar os medos que fazem as diferenças na formação religiosa e cultural. Não devemos deixar que isso aconteça. Devemos ter o cuidado de não reagir com pedidos de uma legislação mais rigorosa que pode ser prejudicial às próprias liberdades que uma imprensa crítica propõe proteger. As lições de nossos primos norte-americanos e as consequências do Ato Patriota do 11 de setembro como resposta ao terror deveriam lembrar-nos que as ameaças às nossas liberdades podem vir de muitas direções. Devemos reservar um tempo antes de reagir, mas primeiro vamos reservar um tempo a esta última investida contra a nossa liberdade.

Não podemos prever nem impedir as ações de fundamentalistas enlouquecidos, mas podemos controlar inteiramente nossa reação a seus atos devastadores. À luz desta mais recente tragédia devemos recusar o medo que ela pretendia disseminar. As vítimas tornaram-se mártires, não em nome de um profeta, de uma causa ou de uma crença religiosa distorcida, mas por uma visão deformada de nosso próprio mundo. Temos um dever para com aqueles que morreram por resistir a essa visão. Eles viveram em nome da liberdade e morreram defendendo-a da maneira mais verdadeira.

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Andrew Heslop é diretor da unidade de Liberdade de Imprensa da Associação Mundial de Jornais e Publishers (WAN-Ifra). Este artigo foi publicado simultaneamente em diversos jornais do mundo.