Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Eu existo entre quatro paredes’, diz autor de ‘Gomorra’

Desde 2006, o jornalista e escritor italiano Roberto Saviano vive sob ameaça. Autor do best-seller Gomorra, que expõe o poder da Camorra, a máfia napolitana, ele tem proteção policial pesada, muda-se constantemente de casa e não frequenta lugares públicos. O livro virou filme, Saviano tornou-se conhecido no mundo inteiro, mas o sucesso foi danoso para ele, que hoje vive “preso”, escondido, jurado de morte.

Em artigo escrito para o jornal britânico The Guardian, Saviano conta como é sua vida sob proteção policial.

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Quando eu era um jovem escritor em Caserta, um subúrbio de Nápoles, sentia cada vez mais raiva. Travava-se uma guerra entre dois clãs da máfia pelo controle do território e a violência respingava nas ruas. Eu queria dizer ao mundo como era essa zona de guerra: as famílias das vítimas rasgando as roupas, o cheiro da mijada de um homem que sabia que ia morrer e não controlava seu medo, pessoas mortas na rua porque se pareciam com a vítima planejada. Cheguei a conhecer trabalhadores empregados pelas indústrias dirigidas pela Camorra. Cheguei a conhecer os mensageiros, os olheiros que trabalhavam para o clã. Lia despachos do tribunal, reportagens, transcrições de julgamentos. Juntei essas histórias, histórias do meu bairro, e publiquei um livro chamado Gomorra. Alguma coisa nele mexeu com a moçada. Tornou-se um best-seller instantâneo – foram tantas as pessoas que o compraram que a Camorra não podia ignorá-lo.

Pouco depois do livro ser publicado, em 2006, alguém deixou um folheto na caixa postal de minha mãe. Eu morava em Nápoles, mas ela ainda estava em Caserta. O folheto mostrava uma fotografia minha, com uma pistola encostada na cabeça, e a palavra “Condenado”. Pouco depois, fui convidado a dar uma palestra numa solenidade pela inauguração do novo ano letivo na cidade de Casal di Principe, reduto do mais poderoso clã da Camorra, com um dos mais altos índices de assassinatos da Itália. Do palco, onde estava, identifiquei publicamente os líderes da Camorra, o que a população local, muito intimidada, não fazia. Disse-lhes que deviam ir embora. O porta-voz do parlamento italiano estava lá, com seus guarda-costas. Terminado o evento, disseram-me que era muito perigoso voltar para Nápoles em transporte público e, por isso, levaram-me. No dia seguinte, o jornal local denunciou minha intervenção como um insulto à Camorra. Alguns dias depois, uma pessoa me seguiu pelas ruas de Nápoles e entrou no ônibus atrás de mim. Ele disse: “Você sabe que eles vão fazer você pagar pelo que você fez na Casale [Casal di Principe], certo?”

Menos de dois meses depois, quando voltava a Nápoles de um festival literário, dois policiais me esperavam na estação ferroviária. Quando já me levavam, num carro blindado, disseram-me que haviam sido destacados para me dar proteção. Naquele inverno, o detalhe da segurança era redobrado depois que haviam surgido boatos, a partir do presídio, que a Camorra planejava matar-me. O chefe da máfia era Salvatore Cantiello, então preso, e o que diziam era que quando ele me viu no noticiário da TV teria dito: “Vai falando porque logo logo você não vai falar nunca mais.”

Dez jornalistas italianos vivem sob a proteção da polícia

Durante os últimos oito anos, viajei para toda a parte com sete guarda-costas treinados em dois carros à prova de balas. Passo minhas noites em casernas de polícia ou quartos de hotel anônimos e raramente passo mais do que algumas noites no mesmo lugar. Já faz mais de oito anos que não pego um trem, não ando numa lambreta nem dou uma volta para tomar uma cerveja. Tudo é cronometrado, por minuto; nada é deixado ao acaso. Fazer alguma coisa espontaneamente, simplesmente porque tenho vontade de fazê-lo, seria ridiculamente complicado.

Depois de oito anos com guardas armados, as ameaças contra a minha vida praticamente não são notícia. Meu nome está tão frequentemente associado com morte e assassinato que praticamente não é mais registrado. Depois de todos estes anos sob proteção do Estado, quase me sinto culpado por ainda estar vivo.

Esta vida é uma merda – é difícil descrever como é ruim. Eu existo entre quatro paredes e a única alternativa é dar palestras. Ou estou na Academia do Nobel, na Suécia, participando de um debate sobre liberdade de imprensa ou estou num quarto sem janelas, numa caserna da polícia. Luz e escuridão. Não há meio termo. Às vezes, eu olho para o divisor de águas entre minha vida antes e depois de Gomorra. Existe um antes e um depois para tudo, inclusive para a amizade. Para os que perdi, que se afastaram por achar que era muito difícil ficar perto de mim, e para os que encontrei – com muita esperança – nos últimos anos. Existem os lugares que eu conhecia antes e os que conheci desde então. Nápoles tornou-se proibida para mim, um lugar que só posso visitar em minhas lembranças. Viajo pelo mundo afora, pulando de país para país, como se fosse um tabuleiro de xadrez, pesquisando para meus projetos, buscando os restos esfarrapados da liberdade.

Eu estava em Nova York, trabalhando este artigo, quando ouvi as notícias sobre o Charlie Hebdo. Foi extremamente doloroso para mim. Eu não conhecia o editor, Stéphane Charbonnier, mas sabia que ele vivia sob proteção de guarda armada, como eu. Tinha conhecimento da situação e dos riscos que ele corria.

Com o tiroteio de Paris, a Europa voltou a descobrir que escrever pode ser perigoso. Nós tínhamos esquecido. Talvez os italianos tivessem esquecido, mas pelo menos não nós, que escrevemos sobre a máfia. Dez jornalistas italianos vivem atualmente sob a proteção da polícia depois de serem ameaçados pela máfia, como Lirio Abbate, cujos guarda-costas encontraram uma bomba embaixo do seu carro depois que ele escreveu um livro sobre o chefe da Cosa Nostra, Bernardo Provenzano. A liberdade de expressão não é um direito que nos seja concedido para sempre – se o negligenciamos, é como uma planta que murcha se você esquecer de regar.

Não têm medo de mim; têm medo de meus leitores

Teve uma coisa que Charbonnier disse em 2012 que me tocou: “Não tenho medo de represálias. Não tenho filhos, não sou casado, não tenho um carro nem tenho dívidas. Pode parecer pretensioso, mas prefiro morrer de pé do que viver de joelhos.” Para muita gente, escrever é apenas um emprego que você tem, sem consequências. Mas, para outras, não é.

Se Gomorra fosse apenas mais um livro lido por alguns milhares de pessoas, a Camorra nem teria notado. O motivo para a raiva deles é por eu ter dito a verdade sobre o crime organizado para uma audiência maciça. A coisa que eles mais temem é ficar sob os holofotes. Como certa vez me disse um ex-líder, os camorristi querem ser pessoas muito importantes num plano local; querem ser famosos em seu próprio território, querem ser temidos por seu poder militar. Porém, num plano nacional ou internacional, querem ser anônimos. Contar suas façanhas a uma audiência mais ampla foi um golpe duro, pois chamou a atenção do público para suas atividades ilegais.

Muitas vezes me perguntam por que a Camorra, uma organização criminosa bastante grande e poderosa, tem medo de mim. Sempre faço questão de deixar claro: eles não têm medo de mim; têm medo de meus leitores.

Minha vida, antes e depois

Antes. Longas caminhadas sem fim pelos subúrbios até que me ocorresse uma matéria, depois uma corrida desabalada em minha lambreta para chegar em primeiro lugar à cena do crime, antes de mexerem no corpo. Chegar lá antes da família, com seus terríveis gritos de dor. Eu ia de lambreta das cenas de crime para os tribunais e para os presídios. Acompanhava a luta pelo poder entre os líderes da Secondigliano e o clã Di Lauro, além de um grupo dissidente conhecido como Os Espanhóis porque seu líder havia transferido o centro das operações para a Espanha, onde vivia escondido. Era como se fosse um correspondente de guerra: dois ou três assassinatos por dia, incêndios provocados – que faziam explodir bombas nas residências. Era inacreditável que algo assim pudesse ocorrer no meio da Europa.

Depois. Viver com guarda-costas mudou tudo; é muito complicado tentar trabalhar com uma escolta armada a reboque. Se estou na Itália, tenho que decidir o que vou fazer com três dias de antecedência. Vivo permanentemente num intervalo de três dias, o que faz com que me sinta atrasado para tudo. O que quer que eu queira fazer, comunico aos guarda-costas e eles decidem qual a melhor maneira de fazê-lo.

Se quero viajar ao exterior, tenho que comunicar ao departamento de segurança do governo com uma antecedência de algumas semanas, até meses, informando com precisão onde vou e qual a minha programação – onde vou ficar, que lugares irei visitar, as pessoas que irei encontrar. Aí tenho que esperar a autorização para viajar – e saber se o país que pretendo visitar me considera bem-vindo. Uma vez nesse país, leva alguns dias até estabelecer uma ligação com a escolta policial local. De início, há uma sensação de que sou uma pessoa inconveniente, de que sou um peso, um problema a ser administrado, principalmente quando há um evento público.

Não confio em mais ninguém. Fico com medo de me aproximar de alguém e deixar abertas minhas defesas. Sempre acredito que alguém me vai decepcionar. É a paranoia normal do prisioneiro.

Há novos amigos, lugares novos, novas rotinas, mas também há um novo Roberto Saviano. As circunstâncias o mudaram; ele é diferente da pessoa que era antes e dos amigos que tinha então. Talvez seja uma pessoa pior. Mais fechado, mais indiferente por estar constantemente sendo atacado. E mais voltado para si mesmo, pois tornou-se um símbolo.

Consegui aquilo com que sonha todo escritor, o sonho que a maioria de meus colegas não ousaria imaginar. Um best-seller internacional. Uma audiência enorme. Mas todo o resto desapareceu: a possibilidade de ter uma vida normal, a possibilidade de ter uma relação afetiva normal. Minha vida foi envenenada. Sou asfixiado por mentiras, por acusações, por difamação, por uma porcaria sem fim. No final, você fica cicatrizado.

Consegui ver o dia nascer num terraço

Desde 2006, minha vida tem sido uma busca contínua por um lugar para viver, um lugar para escrever. Vivi em inúmeras casas, em inúmeros quartos. Nunca vivi em lugar algum por mais do que alguns meses. Quartos pequenos, todos eles; alguns, minúsculos. E todos eles escuros. Gostaria de ter tido um quarto maior, mais iluminado. Adoraria ter tido uma varanda, um terraço: queria tanto um terraço quanto, quando era mais novo, a oportunidade de viajar. Mas eu não tinha direito a escolher, não podia decidir onde iria viver. Não tinha como procurar uma casa: dois carros à prova de balas e sete guarda-costas tornam difícil você sair por aí sem chamar a atenção. Assim que eu conseguia algum lugar para morar, tão logo as pessoas soubessem onde eu morava, qual rua, qual número, eu tinha que mudar.

Em Nápoles, foi impossível achar uma casa. Os carabinieri que eram meus guarda-costas tentaram ajudar-me a achar um lugar para alugar por meio de seus contatos. Era fácil até a proprietária descobrir que era para mim. Assim que me viam, era “Desculpe, não posso, tenho filhos” ou “Acabei de alugar para outra pessoa”. E lá ia eu para a caserna da polícia. Continuo procurando um lugar só para mim. No meio tempo, vivo nesses quartos nus, como celas de convento, com todos os movimentos controlados.

Minha bagagem consiste de uma bolsa para meias, cuecas, camisetas e calças; outra para camisetas e casacos; uma para remédios, escova e pasta de dentes e carregadores de celular; uma bolsa para livros e papéis. E o laptop. E pronto. Isso é minha casa.

Boa parte do que escrevi nos últimos anos, inclusive este texto, foi escrito em quartos de hotel. Quartos de hotel monótonos, sem características, todos tão idênticos que eu acabei detestando. São quartos de hotel escuros, com janelas que você não consegue abrir. Visitei países – às vezes, lugares que sempre quis conhecer – e tudo o que vejo é o quarto do hotel e o horizonte de uma cidade através da vidraça escura de um carro à prova de balas. A maioria dos países que visito não ousa permitir que eu dê uma volta, nem mesmo com os guardas armados que destacam para acompanhar-me. Normalmente, mudam-me para outro hotel após uma noite. Por mais aparentemente civilizados que sejam, por mais calmos e pacíficos, por mais distante que eu esteja da máfia e por mais seguro que me sinta, tanto mais eles me tratam como uma bomba que pode explodir em suas caras a qualquer momento.

Na Itália – e particularmente em Nápoles – fico quase sempre na caserna dos carabinieri, com o cheiro da cera das botas, os comentários barulhentos do jogo de futebol na TV, os grunhidos quando são chamados de volta ao serviço ou quando o time oponente marca um gol… Sábado e domingo são dias mortos. Dias passados na barriga vazia de uma baleia. Ouvem-se gritos do lado de fora, percebe-se o ruído de pessoas passando, você sabe que é um dia de sol, que o verão começou. Lembro-me de uma vez, no começo de minha vida à prova de balas, que acordei na caserna, no meio da noite, estava escuro e eu não reconheci o lugar. Não tinha noção de onde estava. Desde então, isso já me aconteceu muitas vezes – acordo de noite, com um susto, e não sei onde estou. Da última vez que estive em Nápoles, fiquei numa caserna que já tinha sido um mosteiro. Tem um terraço, de onde você pode ver o mar. Consegui ver o dia nascer na baía mais bonita do mundo.

Vivendo com medo

Muitas vezes me perguntam se me arrependo de ter escrito Gomorra. Normalmente, tento responder a coisa certa: “Como homem, sim; como escritor, não.” Mas essa não é a verdadeira resposta. Durante a maior parte do tempo em que estou acordado, eu odeio Gomorra. Detesto. No início, quando eu dizia às pessoas que me entrevistavam que se soubesse o que vinha pela frente jamais teria escrito o livro, elas ficavam decepcionadas. Se fosse a última pergunta da entrevista, eu saía dali com um gosto amargo na boca, sentindo que ficara faltando alguma coisa. É claro que eu compreendia que deveria ter dito que faria tudo de novo. Mas, entretanto, foi tanto o tempo que passou que eu acho que tenho o direito de compartilhar meus arrependimentos e reconhecer que sinto falta do tempo em que era um homem livre. Seja o que for o que eu gostaria que fosse minha vida, o fato é que escrevi Gomorra e pago o preço por isso diariamente.

Em março de 2008, dois anos depois de Gomorra ter sido publicado, a máfia aumentou as ameaças contra mim. Durante o histórico superjulgamento conhecido por Spartacus – no qual 24 membros do clã Casalese foram acusados de assassinato, extorsão, corrupção de autoridades públicas e manipulação de eleições –, um advogado de dois dos chefões da Camorra leu em voz alta um documento que me ameaçava, assim como à jornalista Rosaria Capacchione, alegando que era unicamente devido às nossas reportagens que eles tinham sido presos. Dessa forma, o clã enviava uma mensagem clara: se eles fossem considerados culpados, nós nos tornaríamos alvos. Os dois chefões, Antonio Iovine e Francesco Bidognetti, foram condenados após o julgamento de 12 anos do Spartacus. Antes que terminasse, os réus e seu advogado foram acusados de fazer ameaças no documento que foi lido no tribunal. Quando o caso terminou, em novembro do ano passado, os chefões foram absolvidos, mas o advogado, Michele Santonastaso, foi condenado por “fazer ameaças ao estilo da máfia”.

Eu estava sentado no tribunal, em Nápoles, quando o veredicto foi divulgado. Meus guarda-costas estavam lá, assim como os de Rosaria e nossos advogados, além da equipe legal que defendia os acusados. Só os dois chefões é que não estavam no tribunal, pois acompanhavam os trâmites por meio de links num vídeo da prisão. Atrás de nós estava uma porção de câmeras de televisão e jornalistas. Havia poucas pessoas que eu conhecia – quando se vive do jeito que eu vivo, as pessoas se habituam a ver você de longe, ou apenas acompanhar sua vida pelas redes sociais. Me parecia absurdo o fato de que dois chefões da máfia tivessem sido absolvidos enquanto seu advogado tivesse sido condenado por um crime relacionado à máfia. Fiquei decepcionado, mas já não me surpreendo com nada. Havia jornalistas estrangeiros no tribunal, mas não tenho certeza se entenderam o veredicto. E não os posso culpar. De lá para cá, Santonastaso foi condenado a 11 anos por associação com a máfia, por dar ajuda e ser cúmplice e por falso testemunho, mas a cobertura que a imprensa deu foi praticamente nula. Os chefões saíram-se bem de mais uma tentativa de intimidar jornalistas ao silêncio, mas apesar de tudo esta foi a primeira condenação desse tipo e, de alguma forma, um momento histórico. Espero que essa sentença seja um primeiro passo rumo à liberdade para mim e para outros escritores que também vivam sob guarda armada e que possamos acabar recuperando nossas vidas.

Sem medo da morte

Frequentemente, as pessoas perguntam-me se não tenho medo que a máfia me mate. “Não”, respondo. E paro aí. Compreendo que a maioria das pessoas não acredite, mas é verdade. É mesmo. Tenho medo de muitas coisas, mas a morte não é uma delas. Às vezes penso no sofrimento, sobre como seria morrer de uma forma dolorosa. Mas, de uma maneira geral, e por incrível que pareça, não penso muito sobre a morte.

Há outras coisas que me assustam. Mais do que morrer, tenho medo que minha vida nunca volte a ser normal. Tenho mais medo de viver toda a minha vida deste jeito do que de morrer.

E há um outro medo, pior do que todos os outros. É o medo de perder a credibilidade. Isso aconteceu a todos aqueles que foram mortos em função daquilo em que acreditavam. Aconteceu a todos os que divulgaram crimes ou disseram verdades inconvenientes. Fizeram isso com Don Peppe Diana, o padre que foi assassinado em Casal di Principe, em 1994, por pregar contra a máfia e ameaçar não dar sacramentos a membros da Camorra. Depois de sua morte, ele foi caluniado por uma campanha que o acusava de comportamento obsceno e vínculos com a Camorra. Federico Del Prete, o sindicalista assassinado em Casal di Principe em 2002, foi ridicularizado com falsas acusações no dia de seu funeral. Também o fizeram com Giovanni Falcone, o magistrado antimáfia que foi morto pela Cosa Nostra em 1992; também o jornalista Pippo Fava foi assassinado. E, de alguma forma, eles sempre encontram quem tenha ouvidos para essas lorotas. Mal a mídia começa a cobrir minha morte e os boatos asquerosos já começam. Quando um garoto é morto numa briga ou um padre é esfaqueado enquanto reza a missa, os boatos começam a zumbir como moscas. E a roda gira. O circo da mídia não pode parar.

Nunca irei esquecer o que disse o ex-marido de Anna Politovskaya, a jornalista russa assassinada, no dia de sua morte: “É melhor assim: é melhor morrer do que perder a credibilidade. Anna não teria suportado isso.” Disseram-me que eles já vinham preparando uma armadilha para ela. Pouco antes de ser assassinada, tentaram sequestrá-la. Pretendiam drogá-la, fazer filmes pornográficos com ela, espalhá-los pelo mundo e desacreditar sua campanha pela liberdade de informação. É isso que me deprime: o medo de que eu possa ser desacreditado, de que eu não possa me defender, nem o que escrevo. Às vezes, sinto que isso já está acontecendo, que as pessoas que dizem ‘Ele está mentindo, ele está fazendo um plágio, está nos difamando’ acabam tendo mais importância do que minha própria pesquisa, minhas próprias tentativas de investigar como funcionam as coisas. Acusam-me constantemente de tentar ganhar dinheiro às custas da máfia, de insultar Nápoles, de inventar coisas. É uma maneira de baixar o volume daquilo que estou dizendo. “Sabemos de tudo isso, já se escreveu sobre isso” é uma das coisas que dizem. Se eles dissessem “Nada disso é verdade”, saberíamos que eram meros porta-vozes da máfia. Mas quando dizem “Já ouvimos isso antes” é uma maneira mais sutil de me boicotar. Não sou atacado apenas pela Camorra, mas também por partes da sociedade civil, e mesmo por jornalistas, que têm vergonha de nunca terem se manifestado contra a máfia e que seu silêncio os torne cúmplices.

Pessoas próximas a mim dizem-me para não me preocupar, pois é apenas inveja. Considerando tudo o que aconteceu, aguentar esse tipo de críticas não é um preço assim tão alto. Quando escrevi Gomorra, era tão novo que não tinha tido tempo para ser corrompido ou contaminado, para comprometer meus ideais. Para pedir favores e ficar devendo algo a alguém. A maioria das pessoas teve que se vender, a certa altura – isso não aconteceu comigo. E isso é imperdoável.

Não posso me dar ao luxo de perder tempo pensando nas pessoas que querem me atacar. Se eu reagisse, as coisas só iriam piorar. A única coisa que posso fazer é centrar a atenção em meu trabalho e em minha audiência, que – quase mais do que a minha escolta armada – me protege. O fato de ter uma audiência garante a minha liberdade, apesar de todas as restrições. Levando tudo em consideração, minha existência é privilegiada. Meu perfil público me expõe a críticas cruéis, mas também me protege.

Penso no enorme número de pessoas que vive na Itália como eu, sob proteção de uma guarda armada fornecida pelo Estado: somos 585. Pessoas cujos nomes ninguém conhece enfrentam ameaças sozinhas e sem proteção alguma durante todos os dias de suas vidas. Penso nas pessoas que, embora sendo alvos conhecidos, não tinham proteção alguma. As mortes na redação do Charlie Hebdo deveriam fazer com que sentisse culpada qualquer pessoa que esteja tentando mudar o mundo. É mais fácil dizer que foram os humoristas que o provocaram do que olhar no espelho e confrontar a imagem de nossa própria inércia.

Desde que escrevi Gomorra, aumentou a compreensão do que significa a máfia e na Itália vários governos sucessivos têm investido no combate ao crime organizado. Já não se pode fingir que não se sabe o que está acontecendo e a opinião pública não larga o assunto. Se me apertassem, eu diria que a percepção do problema mudou radicalmente. Trata-se do poder de um livro de não-ficção, o tipo de livro que tentei escrever. Contar histórias com o rigor de um jornalista e o estilo literário de um romancista.

Há uma frase de Truman Capote a que sempre recorro: “Mais lágrimas foram derramadas por orações ouvidas do que pelas que não tiveram resposta.” Se tenho um sonho, é o de que as palavras tenham o poder de trazer a mudança. Apesar de tudo o que me aconteceu, minha oração foi ouvida. Mas tornei-me uma pessoa diferente daquela que imaginava. Este processo foi doloroso, tive dificuldade em chegar a um acordo com ele até que eu aceitasse que nenhum de nós controla nosso próprio destino. Só podemos escolher o desempenho do papel que nos é concedido.

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Roberto Saviano é jornalista e escritor