Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Documentário sobre estupro coletivo proibido na Índia

Quase 300 mil pessoas assistiram em 4/3, no Reino Unido, a um controverso documentário sobre a história da jovem estudante Jyoti Singh, morta em Nova Delhi após um estupro coletivo, em 2012. A BBC exibiu o filme India’s Daughter (“Filha da Índia”) por conta do Dia Internacional da Mulher, comemorado no domingo (8/3). As autoridades indianas, por sua vez, proibiram a exibição do documentário no país.

Como a violência sexual ainda é um tema altamente delicado na Índia, o documentário produzido pela cineasta britânica Leslee Udwin causou grande desconforto. Segundo M Venkaiah Naidu, ministro para assuntos parlamentares da Índia, o filme é “uma conspiração internacional para difamar” o país. O ministro do Interior, Rajnath Singh, afirmou ao Parlamento que o governo não deve permitir que “qualquer organização destaque tal incidente e o utilize com propósitos comerciais”.

Leslee precisou deixar a Índia após a repercussão do caso, pois temia ser presa.

A culpa da vítima

O documentário India’s Daughter inclui uma entrevista com um dos condenados pelo crime, preso em Nova Delhi aguardando pela decisão da suprema corte à sua apelação – ele recorreu da condenação à pena de morte. (Um réu se enforcou na cela; outro, menor de idade à época do crime, foi condenado à pena máxima de três anos em um centro de detenção juvenil. Os quatro acusados restantes foram executados por enforcamento.)

Em seu depoimento, Mukesh Singh sugeriu que a vítima não teria sido morta se não tivesse resistido aos agressores e a culpou por não se comportar como uma “mulher decente”. As declarações causaram polêmica no mundo inteiro e foram consideradas degradantes.

Muitas mulheres indianas têm medo de andar sozinhas nas ruas após o anoitecer e o assédio é sempre justificado como uma reação a provocações. Embora a taxa per capita de estupros relatados à polícia indiana seja inferior à de muitos países desenvolvidos, alguns especialistas sugerem que grande parte da violência sexual não é registrada exatamente por induzir a culpa à vítima.

“Um condenado na prisão está desafiando mulheres e dizendo que elas não devem se atrever a sair depois das nove da noite”, disse Asha Singh, mãe de Jyoti. “Em nossa sociedade, essas pessoas não têm mais medo da lei. Tratam as mulheres como pratos de comida que podem ser consumidos e descartados. Elas vão acabar destruindo nossa sociedade”, queixou-se.

Mesmo sob a proibição do governo local, o documentário ainda encontra simpatizantes públicos na Índia. Shobhaa De, um colunista popular de Mumbai, escreveu que o filme deveria ser exibido obrigatoriamente em escolas, faculdades e gabinetes do governo.

Anu Aga, membro da alta câmara, foi um dos poucos funcionários governamentais a se manifestar em defesa do documentário. “Toda vez que ocorre um estupro, a culpa é sempre colocada sobre a mulher, que é acusada de não estar vestida decentemente, de ter provocado os homens”, disse ele. “Esta não é a visão dos homens em presídios. É a visão de muitos homens na Índia”.

A BBC afirmou que tomou a decisão de antecipar a veiculação do documentário devido ao interesse internacional no caso, que teve grande repercussão à época, levando a discussões sobre as políticas de segurança que a Índia oferece em relação às mulheres. “Pela nossa perspectiva, dado o forte interesse público no tema, sentimos que é importante mostrá-lo”, disse Cassian Harrison, editor do canal BBC4. “É uma vergonha que as autoridades indianas tentem censurá-lo”.

Leslee Udwin alegou que tinha permissão por escrito, tanto do Ministério do Interior quanto das autoridades penitenciárias, para realizar o documentário e entrevistar um dos condenados. Ela declarou-se “profundamente estarrecida” com a proibição de seu filme e descreveu o ato como um “desrespeito ao direito fundamental da liberdade de expressão”.

Embora tenha sido banido na Índia, India’s Daughter ainda seria transmitido na Dinamarca, Suécia, Suíça, Noruega e Canadá, bem como reexibido no Reino Unido. A estreia nos EUA ocorreria em um evento em Nova York com patrocínio de duas organizações de apoio às mulheres e a presença de celebridades notórias na defesa dos direitos femininos, como a atriz Meryl Streep.