Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A (re)descoberta francesa do Brasil

Os eventos culturais organizados no contexto do ano do Brasil na França, de março a dezembro deste ano, resultaram na profusão de pautas especiais sobre o país na imprensa francesa. As pequenas edições de bairro, os jornais gratuitos, as grandes publicações e as redes de televisão vêm aproveitando a ocasião para reavaliar e redescobrir o ‘país do futebol’.

O impacto da notícia ‘Brasil’ – uma constante nos periódicos daqui, e não só em contextos noticiosos que mostram o Brasil como líder dos países emergentes – vem sendo grande na mídia francesa. Maior que o da China, destaque da programação cultural do ano passado. Em março deste ano, por exemplo, mês de lançamento do evento brasileiro, a embaixada do país em Paris encontrou mais de 2 mil registros de páginas sobre o Brasil – em todas as mídias –, contra apenas 113 menções no mês anterior.

Jornalistas brasileiros e franceses atribuem a importância da pauta verde-amarela à relação de longa data e à ‘fascinação recíproca’ entre os dois países (nas palavras de Axel Gyldén, repórter especial da revista semanal L’Express, em artigo publicado em 21/3). ‘Em geral, existe uma simpatia muito grande da França pelo Brasil, principalmente por causa da tradição cultural e da educação’, afirma Reali Jr., correspondente do Estado de S.Paulo e da rádio Jovem Pan em Paris. ‘Basta lembrar o caso da antropologia francesa, com Claude Lévi-Strauss.’

Para Reali, o momento atual reflete a melhor imagem do Brasil no exterior nos últimos 30 anos. ‘O olhar da imprensa estrangeira refletia, como agora, o que estava acontecendo no país. A repercussão do regime militar foi extremamente negativa na França’, diz o jornalista. ‘O processo de redemocratização e a sua consolidação, com o governo Lula, aumentaram a simpatia para com o regime político brasileiro.’

Axel Gyldén, da L’Express, acredita que a ótica estereotipada sob a qual o Brasil era observado no passado vem sendo substituída, nos últimos cinco anos, por pautas novas. ‘Clichês como o sol, a beleza, as mulheres, a douceur de vivre, o Carnaval, mas também a violência, vêm perdendo espaço para o segmento da cultura, que não era coberto antes’, comenta. ‘Fiquei surpreso, principalmente, com os programas de televisão, que começaram a falar em assuntos como a história do Brasil – D. Pedro, Aleijadinho e as cidades históricas de Minas.’

Não é raro encontrar personagens como cantor e compositor Seu Jorge (que mereceu ampla cobertura por ocasião do lançamento de seu novo CD, no ano passado) e Bebel Gilberto nas páginas dos jornais franceses.

‘O que é o Brasil?’

A cobertura extensiva de alguns veículos reflete o modus operandi dos colegas franceses, renomados pelo conhecimento abundante dos assuntos mais diversos e pela busca incansável da exatidão. Aceitou-se o desafio de tratar um assunto tido como complexo devido à diversidade – ou ‘mistura’ – que compõe o Brasil. ‘É muito difícil dar conta do que é o Brasil’, afirma Gyldén. ‘Mesmo com uma edição especial de 30 páginas, não acho que conseguimos abordar tudo o que queríamos.’

No fim de março, a L’Express publicou uma seção especial cujos ângulos principais são a ‘renovação profunda’ e as ‘mutações formidáveis’ nos campos político, econômico, social e diplomático do Brasil. Em 32 páginas, o especial mostra a situação política atual, traz uma matéria sobre o Rio de Janeiro e um texto sobre a exposição ‘Brasil Índio’, até agora sucesso de público (desde a abertura, em 23 de março, quase 54 mil pessoas visitaram a mostra). Uma matéria sobre os ‘reis da soja’ no Mato Grosso, retratando o Brasil como ‘superpotência agrícola’, e um perfil de Abílio Diniz (‘um eterno jovem’) dão conta do aspecto econômico da edição.

Mesmo abordando temas que podem ser encarados de maneira ‘positiva’, nem tudo são flores no discurso da revista. No texto de abertura, por exemplo, a publicação cita a ‘desordem que reina nos registros do estado civil do país’ por causa dos escândalos de corrupção envolvendo o programa Bolsa Família. Problemas como a situação dos negros e a guerra de traficantes nas favelas do Rio foram escolhidos para fazer o contraponto crítico aos artigos mais ‘otimistas’.

Com o mesmo intuito polarizador, a edição de estréia da Match du Monde – publicação bimensal da revista Paris Match – dedicou 78 páginas ao Brasil. A manchete principal identifica o ‘país do futuro’, no qual os ‘próximos desafios do planeta’ serão decididos. A foto de capa traz uma Marisa Monte sorridente, pronta a montar numa bicicleta, e rodeada por crianças felizes numa rua de paralelepípedos.

A atenção do leitor se volta, então, para a chamada da matéria principal, que mostra que ‘a música’ – assunto normalmente privilegiado pela mídia francesa que cobre o Brasil – ‘tem um país’. No miolo, um amplo espaço é dedicado aos músicos brasileiros, tanto aos da geração dos ‘genes da música’ – como Bebel Gilberto, Maria Rita e Mariana de Moraes – quanto aos grandes nomes da MPB. Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, este último com uma matéria especial, mereceram páginas duplas.

O mérito da edição fica por conta da diversidade da pauta, povoada por brasileiros de destaque como Oscar Niemeyer, Lula, Sebastião Salgado e Gisele Bündchen. O leque vai de uma matéria especial sobre a tribo Korubos, na Amazônia, passando por uma entrevista com Claude Lévi-Strauss, um texto sobre a Fundação Ayrton Senna, e chega a um panorama da favela Santa Marta, no Rio (na mesma linha da cobertura da L’Express). Ao mesmo tempo em que revelam características desconhecidas da história do Brasil, as demais matérias investigam – e confirmam, a exemplo de um texto ácido da jornalista brasileira Regina Guerreiro – estereótipos como o culto ao físico.

Clichês ainda existem

Se, em sua maioria, a cobertura francesa do Brasil é reflexo de um trabalho de apuração cuidadoso, os clichês que norteiam a noção geral do país ainda ocupam espaço em manchetes de revistas femininas, por exemplo, embora não representem o tom predominante dos textos sobre o país. ‘Esculpa seu corpo à brasileira’, diz uma. ‘Operação bum-bum’, revelam as páginas de outra.

Outro exemplo de clichês são textos que dão conta do Brasil como país do futebol e da festa. A L’Express abre o texto principal com a idéia de que, ‘após o Carnaval, a festa continua’ com o ano do Brasil na França. Ainda que a transição funcione, uma vez que ‘é a oportunidade de observar a renovação de um país em mutação’, o texto inclui uma menção a Naomi Campbell como vedete surpresa dos desfiles do Rio – informação que, para o desenvolvimento do texto, se revela desnecessária.

Apesar dos esforços louváveis de abraçar as nuances verde-amarelas por meio de ângulos diferenciados, alguns meios de comunicação correm o risco de ficar na mesmice, principalmente nas matérias que dizem respeito a aspectos negativos do país, como a violência e as favelas. A guerra de traficantes é um exemplo. O assunto foi abordado por várias publicações e por programas de televisão. Em 11 de abril, Canal Plus levou ao ar um documentário – mesmo que a informação tenha sido ofuscada pela presença ostensiva do repórter – que tratava da disputa das gangues do Rio de Janeiro.

Mas o ano do Brasil acaba apenas em dezembro. Que, até lá, os colegas franceses aproveitem a viagem da (re)descoberta.

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Jornalista