Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ameaças não devem pautar trabalho jornalístico

O mundo é, cada vez mais, um lugar perigoso para jornalistas. Organizações como o Estado Islâmico – mas não só ele – passaram a usar os profissionais de imprensa que conseguem sequestrar como moedas de troca e ferramentas para seus jogos de propaganda.

Desta forma, jornalistas e seus empregadores são obrigados a descobrir como lidar tanto com os riscos enfrentados por quem cobre zonas de conflito como com a cobertura das atrocidades cometidas com seus próprios colegas.

Em artigo publicado na Columbia Journalism Review, Samantha Libby, do Comitê para a Proteção dos Jornalistas, avalia as mudanças que os profissionais de imprensa e as organizações de notícias foram obrigados a adotar diante de ameaças cada vez mais cruéis e imprevisíveis.

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Passaram-se 11 dias entre o primeiro vídeo da organização terrorista Estado Islâmico (EI) revelando a detenção do jornalista japonês Kenji Goto e um segundo vídeo, supostamente expondo o seu assassinato. Esses dias difíceis foram pontuados por três declarações do grupo de militantes que conseguiu ganhar a atenção do mundo. Nelas, o EI exigia a libertação de Sajida al-Rishawi, uma mulher-bomba iraquiana que aguardava execução na Jordânia, em troca de Goto; o grupo também prometeu não matar Muath Al-Kaseasbeh, um piloto jordaniano que mantinha preso, se Sajida al-Rishawi fosse solta. De início, as autoridades jordanianas concordaram com a troca.

Por um breve momento, parecia remotamente possível que Kenji Goto fosse sobreviver. Enquanto o mundo aguardava notícias sobre seu destino, a violação da liberdade de imprensa continuou pelo mundo todo em seu ritmo acelerado.

Foi encontrado o corpo decapitado de José Moisés Sánchez Cerezo, um jornalista mexicano que desaparecera em 2/1. Um jornalista russo prestes a completar uma pena de 18 meses foi condenado a mais três anos de prisão, sob acusações de insulto, suborno e enganar deliberadamente as autoridades. Cinco jornalistas foram mortos numa emboscada no Sudão do Sul. O jornalista que deu a notícia da morte do promotor argentino que investigava uma suposta blindagem do caso da bomba que explodiu, em 1994, num centro cultural judaico, deixou o país, temendo por sua vida. Foi divulgado o desaparecimento de um jornalista no Iêmen e outros foram atacados ou presos nos dias que se seguiram aos protestos na capital, Sana’a. O jornalista Seymur Hazi foi condenado, no Azerbaijão, a cinco anos de cadeia por vandalismo, o que, segundo seus advogados, foi orquestrado pelas autoridades em reação a suas reportagens críticas. E o Comitê para a Proteção dos Jornalistas divulgou que mais de uma dúzia de jornalistas foram presos ou atacados no Egito por ocasião do quarto aniversário do levante que depôs o ex-presidente Hosni Mubarak, em 2011.

Como os acontecimentos desses 11 dias demonstram, esta é uma época de perigo sem precedentes para jornalistas, e o Estado Islâmico não é o único motivo. Em janeiro de 2015, pelo menos 16 jornalistas foram mortos em decorrência de uma relação direta com seu trabalho – e, com exceção de Kenji Goto, todos trabalhavam em seus países. Em outras palavras, no primeiro mês deste ano, o CPJ já havia documentado mais de um quarto do número total de mortes de jornalistas registrado em 2014 – e isso não inclui espancamentos, detenções, ameaças e desaparecimentos. Esses abusos cometidos contra a liberdade de imprensa – a maioria dos quais não provocou uma campanha mundial com hashtags, ou cobertura de primeira página, ou espaço no horário nobre da TV – em grande parte quase não foram noticiados, se comparados à execução pública de Kenji Goto. Nós fomos Charlie e fomos Kenji. Mas será que fomos também Moisés Sánchez e Seymur Hazi e Damián Pachter?

Moedas de troca

Não é segredo que as organizações de apoio e defesa de perseguidos dependem muito das informações jornalísticas para despertar a consciência. Além dos veículos tradicionais, e cada vez mais, as organizações de vigilância usam redes sociais para estimular cidadãos ativistas e disseminar sua mensagem. Esses métodos de disseminação de conteúdo apoiam-se num modelo chamado “nomeando e envergonhando”. Grupos de direitos humanos, governos e órgãos internacionais tradicionalmente publicam suas pesquisas e investigações, na esperança de persuadir governos desrespeitosos a mudar suas práticas.

O Estado Islâmico também utiliza essas ferramentas, como muitas pessoas comentaram, com grande eficácia. A estratégia do grupo inclui declarações a governos com metáforas fortes, especialmente os uniformes cor-de-laranja que lembram aqueles usados pelos presos de Guantánamo. Para o Estado Islâmico, os jornalistas são moedas de troca, ou para provocar o pagamento de resgate por governos que estejam dispostos a fazê-lo, ou, para países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que se recusam publicamente a pagar resgates, como pontos de apoio para transmitir declarações políticas ou exigir trocas de presos.

O Estado Islâmico não se limita a matar correspondentes estrangeiros. Seus membros também matam jornalistas locais, numa retaliação direta a suas reportagens. No dia 4 de maio de 2014, dois meses depois de seu sequestro, Al-Moutaz Bellah Ibrahim, correspondente da organização de mídia independente Sham News Network e repórter freelancer, foi morto pelo EI. Ibrahim tinha feito longas reportagens sobre a presença de militantes islâmicos na Síria e estava envolvido com um grupo que se chamava “Raqqa [nome de uma cidade síria] está sendo massacrada em silêncio” e que deixava evidentes as normas cruéis impostas pelo Estado Islâmico, criticando-as abertamente. Para o CPJ, o assassinato de Ibrahim não deve ter sido filmado e foi, em grande parte, ignorado.

O CPJ pode documentar essas execuções e dar nome ao assassino, porém, enquanto organização, não pode envergonhar os assassinos. Isto por dois motivos principais. Em primeiro lugar, ao contrário de alguns governos repressivos, o EI parece ter pouco ou nenhum interesse em se fazer passar por um membro respeitável da comunidade global. A dificuldade em fazer mudar o comportamento de atores que não são um Estado não é um problema novo para as organizações que apoiam e defendem grupos ou pessoas perseguidos. Do Boko Haram aos cartéis mexicanos, esses grupos representam uma ameaça mortal para jornalistas. Desde 1992, essas organizações foram responsáveis pela morte de 31% dos jornalistas assassinados em decorrência de seu trabalho.

EI quer pautar a liberdade de imprensa

O segundo motivo é que a importância do choque é parte integral da estratégia de comunicação do Estado Islâmico. Uma parte do fascínio que deixa o mundo estupefato com eles é o fato de não terem vergonha. Uma coisa que distingue o Estado Islâmico de outros atores (que não são Estados) igualmente violentos é a eficácia com que empacota os assassinatos de jornalistas estrangeiros para servirem de negociação ou de ferramentas de mensagens por si próprios. Sua marca é a violência. Recentemente, quando tentava explicar a uma amiga por que o assassinato de tantos outros jornalistas foi praticamente ignorado devido à presença do Estado Islâmico na mídia, ela fez a seguinte reflexão: “É como se eles quisessem ser o McDonald’s do terrorismo.” Lembro-me de quando nos reunimos com o restante da equipe do CPJ para fazer o planejamento da defesa de Steven Sotloff, depois que ele foi ameaçado no vídeo que o Estado Islâmico fez do assassinato de James Foley. Depois de considerarmos várias ideias em potencial, o vice-diretor Robert Mahoney disse, finalmente, o seguinte: “Nosso trabalho, na defesa dos perseguidos, é apelar para uma natureza humana melhor, mas não vejo aqui natureza melhor alguma.”

Qual seria o papel de um grupo de defesa dos direitos humanos que documenta e dissemina abusos praticados se o Estado Islâmico já documenta e dissemina seus próprios abusos de uma maneira sistemática e profissional?

Os assassinatos de James Foley, Steven Sotloff e Kenji Goto forçaram a indústria jornalística a fazer uma reavaliação há muito esperada. Algumas medidas internas, produtivas, já começaram, como discutir em profundidade a política de reféns dos Estados Unidos, ou, paralelamente, como as organizações jornalísticas já estão começando a fazer, codificar orientações para o contrato e a segurança de jornalistas freelancers. Outras questões foram polêmicas. Os governos deveriam pagar os resgates? A opção pelo silêncio na imprensa seria realmente eficaz? Essas são opções que podemos fazer entre nós e podemos pressionar nossos governos por mudanças. Mas essas ações não são tomadas diretamente com os responsáveis pelo crime.

Para o CPJ, o desafio está em documentar e condenar esses atos sem canalizar muitos recursos das muitas outras – menos públicas – violações da liberdade de imprensa, muitas dessas violações em lugares onde temos a possibilidade de fazer uma diferença. Desde 1992, mais de mil jornalistas foram mortos e 90% deles eram jornalistas locais cumprindo pautas locais. É fundamental destacar que as mortes de James Foley, Steven Sotloff e Kenji Goto não são menos importantes simplesmente porque não temos condições de negociar com o Estado Islâmico, e sim, assinalando-as como um indicador de que a maneira pela qual os jornalistas são mortos ameaça por em segundo plano as mortes de inúmeros outros. Na maioria dos casos, o CPJ e outros grupos que lutam pela liberdade de imprensa são as únicas vozes que falam em nome das vítimas. Não podemos permitir que o Estado Islâmico determine a pauta da liberdade de imprensa. Se eles forem bem-sucedidos, irão desviar nossa atenção das ameaças diárias e onipresentes contra jornalistas do mundo inteiro.

Uma verdade que contraria as mentiras

Existem dois pontos de ação. O primeiro deles é o de que, embora continuemos a documentar as atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico, não permitamos que eles definam suas vítimas. Se querem reduzir os jornalistas a uma imagem final de uma pessoa se ajoelhando, num uniforme cor-de-laranja, com uma faca no pescoço, cabe-nos lembrar dessas pessoas pelo que realmente foram. Separando cenas desinfetadas dos vídeos de propaganda terrorista pode poupar os espectadores do horror, mas nada faz para contrabalançar a natureza fundamentalmente desumanizadora dessas gravações.

Ao invés disso, deveríamos mostrar os jornalistas trabalhando ou exibir o trabalho que produziram. Dar destaque a suas realizações é um ato de protesto contra a maneira bárbara pela qual foram assassinados. Se o Estado Islâmico pretende usar jornalistas como uma mensagem, ainda podemos contra-atacar com nossa própria mensagem. Podemos lembrá-los como jornalistas e não como manchetes.

O segundo ponto é que não podemos perder de vista os inúmeros outros jornalistas que correm risco de vida. Devemos continuar documentando os abusos à liberdade de imprensa que eles sofrem e apelar para todos os recursos possíveis para defendê-los em seu nome, pois se não fizermos, quem o fará?

No dia 3/2, o Estado Islâmico divulgou um vídeo no qual o piloto jordaniano Muath al-Kaseasbeh, que estava preso numa jaula, era queimado vivo por militantes. Depois da divulgação do filme, autoridades jordanianas disseram que, na realidade, o piloto fora morto no dia 3 de janeiro, semanas antes do aparecimento do primeiro filme do EI mostrando Kenji Goto. Se isto for verdade, essa denúncia questiona se a troca de presos proposta, para salvar Goto e al-Kaseasbeh, teria sido realmente possível. Com uma violência tão ousada, pode ser difícil para o público acreditar numa defesa fértil ou em negociações. Mas ainda existem lugares em que uma ação coletiva pode produzir mudanças.

Quando entrei para o CPJ, um blogueiro vietnamita chamado Nguyen Van Hai estava preso. Pouco depois de ser solto, ele aceitou o prêmio de liberdade de imprensa do CPJ e veio recebê-lo, pessoalmente, em 2014. Após um verão extremamente difícil, em que a nossa equipe perdeu amigos e colegas, a presença de Hai deu-nos alguma coisa para comemorar. Em seu discurso, ele disse o seguinte:

“Passei seis anos e seis meses em 11 prisões diferentes. Em cada uma delas fui testemunha da violação de muitos direitos humanos. Minha presença aqui é uma vitória dos esforços implacáveis das comunidades de blogueiros e de grupos de defesa de direitos humanos no Vietnã e no exterior, das organizações internacionais de direitos humanos e do governo dos Estados Unidos, que pressionou as autoridades vietnamitas, obrigando-as a me soltarem.”

Nem sempre conseguimos ganhar essas lutas, mas vozes como a de Hai devem ser protegidas. Não podem ser esquecidas. Elas trabalham para dizer uma verdade que contraria as mentiras que seus governos e grupos como o Estado Islâmico habilidosamente empacotaram para nós.

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Samantha Libby, do Comitê para a Proteção dos Jornalistas