Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Berlusconi livre de âncora incômodo

A televisão começou na Itália somente em 1954. Entende-se essa demora porque a Segunda Guerra Mundial terminara nove anos antes, e o país ainda estava se reerguendo de sua destruição moral e material.

O Estado ocupou-se da implantação e assim surgiu a RAI (Radiotelevisione Italiana). Com ela apareceu uma nova forma de interação social: como poucos podiam comprar o aparelho, estes eram colocados nos bares, especialmente nas cidades pequenas, como forma de atrair fregueses. Tornou-se um hábito, depois do jantar, ir ao bar assistir à televisão. As pessoas que antes se trancavam em casa passaram a encontrar-se e a discutir idéias, velhos juntando-se a crianças, algo inimaginável em casa.

Havia outro detalhe: para poder levar a estatal RAI avante, o possuidor de um aparelho pagava uma taxa a que se chamou ‘cânone’, que continua sendo cobrada até hoje. Para se ter uma idéia do montante, paga-se algo como 300 reais por ano, e o número de televisões no país gira em torno de 20 milhões (para uma população de 60 milhões).

Atualmente, a RAI dispõe de três canais. Não se beneficiam do ‘cânone’ suas concorrentes privadas, entre as quais a mais importante é a Mediset, de propriedade do presidente do Conselho de Ministros, Silvio Berlusconi, também com três canais.

Fadiga de material

Quem está acostumado com a televisão brasileira percebe que os programas italianos são sofríveis – os de auditório, nem dizer –, as novelas são importadas do Brasil e logo fazem sucesso. Em compensação, há muitos documentários de excelente qualidade. Os telejornais são abundantes, em média quatro diários por emissora, fora os regionais. Na grande maioria, tecnicamente não são bem feitos: os apresentadores não usam o teleprompter, a evolução de um mesmo assunto, durante dias, apresenta as mesmas imagens, rotineiramente anuncia-se uma coisa e aparece outra e, não raramente, o apresentador discute no ar com sua equipe.

Foi para fazer um telejornal de bom nível que Silvio Berlusconi contratou há 12 anos o jornalista Enrico Mentana. Com uma pequena equipe, partiu do nada, criou o TG5 (canal 5), do qual, além de diretor, era apresentador, e em pouco tempo conseguiu o 2° lugar em audiência, logo abaixo do TG1 da RAI, mas muitas vezes superando-o.

Quando Berlusconi assumiu o poder, Enrico deixou bem claro que não abriria mão do pacto tácito feito com os telespectadores: ‘Estar a serviço do público, e não a deste político ou daquele empresário’.

Tudo estava correndo bem, Mentana com seu jornal independente, o TG5 em seu estilo de elogiar os acertos e criticar os erros. Berlusconi tem permanência inédita na política (seu primeiro mandato é de 1948), e governa há três anos e meio sem uma crise de gabinete. Mas, como estamos na Itália, esse ‘longo’ governo começou a apresentar ‘fadiga de material’.

Um ‘tirinho’

Na quinta-feira, dia 11 de novembro, quando o jornal foi ao ar, Enrico Mentana tinha duas notícias muito importantes: o morte do líder palestino Yasser Arafat e o primeiro ano do atentado ao acampamento italiano em Nassiria, que deixou dezenas de mortos. Assim, o jornalista deixou para o fim um furo de reportagem. Com os olhos brilhando de emoção, informou: ‘O extraordinário serviço que acabaram de ver é o último que me foi dado a comentar. O meu trabalho na TG5 termina aqui’. E continuou contando a milhões de espectadores: ‘Na sexta-feira passada os diretores da Mediaset convocaram-me para dizer que queriam mudar a direção do telejornal. Como empresa, é um direito seu; no entanto, é óbvio que me desagrada; me dói muito’.

No dia seguinte, deu uma entrevista a Antonio Dipollina, do jornal la Repubblica. Muito elegante, disse que vinha sendo fritado há algum tempo pelo pessoal do Palazzo Chigi (sede do governo); dizia-se que, se o TG5 continuasse assim, as eleições estariam perdidas. Deu a entender que sua demissão foi uma exigência política superior. Berlusconi não a teria feito pessoalmente, pois em teoria está desligado do grupo: mandou que o filho a fizesse.

Não saiu atirando, mas não resistiu a dar um ‘tirinho’: quando perguntado sobre que conselho daria ao substituto, usou um apotegma atribuído a Aristóteles, introduzindo-lhe pequena modificação: ‘Amicus Pelato, sed magis amica veritas’ – no original, ‘Amicus Plato, sed magis amica veritas’, ou seja, ‘Amo Platão, mas amo mais a verdade’. ‘Pelato’ em italiano quer dizer careca, fazendo assim clara alusão a Berlusconi.

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Jornalista