Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Choque de capitalismo no Libération

Nada será como antes no Libération depois da saída de Serge July, ex-PDG (président directeur-général) do jornal, afastado do cargo desde o dia 13 de junho pelo acionista majoritário Edouard de Rothschild. Ao destituir o ex-maoísta que há 33 anos dirige o Libé, o banqueiro quis mostrar que é ele quem manda agora no jornal que revolucionou o panorama da mídia francesa ao rimar irreverência com inteligência.


O substituto de Serge July ainda não foi escolhido, mas, seja quem for, o jornal nunca mais será o mesmo. A idéia que os fundadores faziam de um órgão de imprensa está a milhões de anos-luz daquela que Edouard de Rothschild faz.


Os fundadores de 1973 eram o filósofo Jean-Paul Sartre e o jovem maoísta Serge July, na efervescência cultural e política de uma França recém-saída de maio de 68. O atual acionista principal é um banqueiro para quem dinheiro tem que gerar dinheiro e jornal é uma empresa como outra qualquer. E é nas mãos desse pragmático que está a sorte do jornal provocativo, corajoso, vanguardista, sempre imitado como um verdadeiro laboratório de idéias.


Já vão longe os tempos em que ricos investidores como Jérôme Seydoux ou Antoine Riboud davam dinheiro ao jornal por idealismo, para manter a independência do diário de esquerda.


Circulação em queda


Num texto publicado na sexta-feira (23/6) no próprio Libération, assinado pelo ‘Fórum permanente das sociedades de jornalistas’ – que congrega 24 sociedades de jornalistas dos principais jornais e revistas francesas e representa milhares de profissionais –, os signatários afirmam que a exigência do afastamento de Serge July por Rothschild provocou um ‘grande traumatismo’ no jornal. O texto ressalta que um jornal…




‘…não é um ativo como outro que se adquire, cede ou formata em função de realidades estratégicas. Tanto no Libération como em outras mídias, os jornalistas têm o dever e a vontade de participar de seu destino, de se colocarem no centro do debate sobre a informação, sua qualidade, sua liberdade e sua independência’.


Uma matéria do Le Monde de segunda-feira (26/6) garante que Rothschild e July finalmente chegaram a uma conclusão quanto ao montante que receberá o ex-PDG do jornal, um dos impasses gerados com esse brusco rompimento. Falou-se de algo em torno de 500 mil euros, quantia irrisória tratando-se do homem que criou o título e o dirigiu por três décadas. O banqueiro deve gastar isso em questão de minutos em leilões de arte ou nos seus cavalos de raça.


Quando Rothschild adquiriu parte das ações do jornal, em abril de 2005, tornando-se o acionista majoritário com 38,8% do capital, garantiu que Serge July seria mantido no cargo até 2012. Agora, limita-se a informar ao Le Monde que ‘um jornal é uma empresa que precisa funcionar com a adesão de sua redação e com transparência’. Ele afirmou que vai ajudar os jornalistas de Libération a controlarem o destino do jornal ‘como na sua origem’. Mas isso será possível entre jornalistas que qualificaram a chegada do banqueiro ao jornal como um ‘choque cultural’. Para a redação, a presença de July era uma garantia de que o capitalista seria mantido a uma prudente distância e o jornal continuaria controlado pelos seus jornalistas. Ledo engano.


Libé continuou a perder dinheiro depois da entrada de Rothschild e o banqueiro quer agora segurar as rédeas para estancar a hemorragia. O jornal exibe hoje sua mais baixa circulação desde 1996, tendo caído de 171 mil exemplares em 2001 para os atuais 136 mil exemplares diários, em fins de 2005.


Jornal de resultados


A crise é grave e não somente para Libération. A publicidade da imprensa diária francesa caiu 45% nos últimos cinco anos e o principal responsável por essa queda brutal foi a imprensa diária gratuita, representada por dois títulos que chegaram à França em 2002: 20 Minutes e Metro.


No país de Voltaire, a imprensa se beneficia de um sistema de subvenções públicas que representaram 800 milhões de euros de 2001 a 2006. Mas, segundo o relatório do senador Paul Loridant, os recursos não foram suficientes para estancar a perda de leitores nem a diminuição do número de títulos e a concentração do setor, dominado por dois grupos da indústria de armas: Dassault no Figaro e Lagardère, no Paris-Match e parte do Le Monde, entre outros.


Apesar de se definir como ‘nem de direita nem de esquerda’, Edouard Rothschild não deve gostar de perder dinheiro, como está provando agora. E o Libération estava lhe dando muito prejuízo. Desde o início deste ano, o jornal perdeu mais de 4 milhões de euros, mesmo depois de aplicar o amargo remédio de 50 demissões para enxugar a folha de pagamentos.


Quando, no início do ano passado, Rothschild injetou 20 milhões de euros de sua fortuna no jornal, não se via como um mecenas ajudando jornalistas de esquerda a manter um sonho da década de 1970. Por isso, resolveu reestruturar Libération como uma empresa capitalista. O ‘choque cultural’ vai resultar no fim da ‘cultura Libé‘ e no início de um jornal feito para ‘dar resultados’ – isto é, lucros aos acionistas. Triste fim.

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Jornalista