Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Eric Schmidt e o exercício furado de futurologia

A máquina de costura foi o smartphone do século 19. Basta passar os olhos pelo material promocional dos principais fabricantes de máquinas de costura daquela época distante e você irá reparar nas muitas semelhanças com nosso discurso grandioso e vertiginoso. O catálogo de 1864 da Willcox & Gibbs, a Apple daquele tempo, inclui recomendações entusiásticas emocionadas com os poderes civilizatórios da nova máquina. Uma delas a chama “instituição cristã”, outra celebra sua utilidade nos esforços missionários na Síria, e uma terceira, depois de a louvar como uma “máquina honesta”, manifesta a esperança de que “todo homem e mulher que possua uma irá torná-la padrão dos princípios e deveres”. A brochura da Singer em 1880 – modestamente intitulada O gênio recompensado; ou a história da máquina de costura – leva essa retórica ainda mais longe, apresentando a máquina de costura como a plataforma definitiva para disseminar a cultura norte-americana. O charme da máquina é universal e seu impacto é revolucionário. Até sua divulgação comercial é pura poesia:

“As máquinas Singer navegam por todos os mares; ao longo das estradas pisadas pelos pés do homem civilizado, esta incansável aliada da grande irmandade do mundo segue em seu encargo de utilidade. Sua melodia animadora não é menos compreendida pela robusta matrona alemã do que pela esguia moça japonesa; é inteligível à camponesa ruiva russa, assim como à señorita mexicana de olhos escuros. Não precisa de intérprete, esteja ela cantando nas neves do Canadá ou nos pampas paraguaios; a mãe indiana e a moça de Chicago fazem hoje à noite o mesmo ponto de costura; os pés incansáveis da loura Nora, irlandesa, pisam os mesmos pedais que a menina chinesa de cabelo acastanhado; e assim, máquinas americanas, cérebros americanos e dinheiro americano trazem mulheres de todo o mundo para um único e universal parentesco e irmandade.”

Sapatos inteligentes

“Máquinas americanas, cérebros americanos e dinheiro americano” daria uma bela legenda para The New Digital Age [“A nova era digital”], o novo livro – e de tirar o fôlego – de Eric Schmidt, diretor-presidente do Google, e de Jared Cohen, diretor de Google Ideas, uma excentricidade institucional conhecida como lugar de pensar e fazer. Schmidt e Cohen têm em comum muitas das aspirações – globalismo, humanitarismo, cosmopolitismo – a que se refere a brochura da Singer, embora não sejam tão ligados em poesia. A linguagem do livro é uma estranha mistura do otimismo sisudo da propaganda soviética (“Mais Inovação, Mais Oportunidade” é o subtítulo de um subcapítulo típico) e do cosmopolitismo de imitação do semanário The Economist (você está a par de shanzhai, sakoku ou gacaca?).

Há uma espécie de tese no livro de Schmidt e Cohen. É a de que, embora o “fim da história” ainda esteja iminente, primeiro temos que nos interconectar inteiramente, de preferência com smartphones. “A melhor coisa que alguém pode fazer para melhorar a qualidade de vida pelo mundo afora é operar a conectividade e a oportunidade tecnológica.” A digitalização é algo como uma versão mais agradável, mais amigável da privatização: como dizem os autores, “se o acesso for concedido, as pessoas fazem o resto”. “O resto”, presume-se, significaria tornar-se mais laico, mais ocidentalizado e democraticamente orientado. E, naturalmente, mais empresarial: aprendendo a interromper, a criar inovações, a criar uma estratégia. (Se você alguma vez se perguntou como soa o evangelho da teoria da modernização quando traduzido para a linguagem do Vale do Silício, este livro é para você.) Aparentemente, a conectividade pode curar todos os problemas da modernidade. Sem medo da globalização ou da digitalização, Schmidt e Cohen vibram com os dias vindouros quando você “poderá conservar um advogado de um continente e um corretor imobiliário de outro”. Aqueles que se preocupam com empregos perdidos e salários mais baixos estão simplesmente negando o “verdadeiro” progresso e as inovações. “Os críticos da globalização irão condenar esta erosão de monopólios locais”, escrevem eles, “mas ela deveria ser bem-vinda, pois é assim que nossas sociedades irão avançar e continuar inovando.” Finalmente, o livre comércio encontrou dois defensores eloquentes.

O que realmente nos espera na nova era digital? Schmidt e Cohen reconhecem que é difícil dizer. Graças à tecnologia, algumas coisas acabarão sendo boas: por exemplo, sapatos inteligentes que nos beliscam quando estamos atrasados. Outras acabarão sendo ruins: por exemplo, drones (aviões não pilotados) particulares. E, no meio, haverá uma porção de coisas insossas. Essas partes indefinidas são apresentadas com frases cuidadosamente elaboradas: “apesar dos ganhos potenciais, haverá consequências num prazo mais longo”, “nem toda… propaganda… é justificável… mas os riscos são concretos” etc. A seu favor, deve ser dito que Schmidt e Cohen sabem cercar suas apostas: este livro poderia ter sido escrito por um economista de três mãos.

A hipótese dos dois mundos

Vinda do mais poderoso intermediário do mundo, toda essa conversa sobre o desaparecimento de intermediários é realmente bizarra.

Há outras mudanças importantes pela frente. Em primeiro lugar, uma “revolução do smartphone” e uma “revolução de dados” (que não deve ser confundida com a “nova revolução da informação”) já estão aí. Em segundo lugar, “viradores de jogo” e “desenvolvimentos turbulentos” nos irão saudar a cada esquina. Seu cabelo, por exemplo, jamais será o mesmo: “os cortes de cabelo serão finalmente automatizados e com a precisão de máquinas”. A outra boa notícia do futuro – experimente depois de uma noitada – é que “não haverá despertador em sua rotina matinal [porque] você será acordado pelo aroma de café recém-passado”. A mudança decorrente da tecnologia é inevitável. Exceto, é claro, quando não é (“você não pode tomar por assalto um Ministério do Interior por telefone celular”); porém, talvez isso também seja uma questão de tempo.

O objetivo de livros como este não é prever, mas tranquilizar – mostrar ao homem comum, que é incapaz de desenvolver por si só uma compreensão profunda daquilo que tem pela frente, que as elites mais preparadas da tecnologia detêm o controle com sagacidade. Portanto, os grandes tranquilizadores Schmidt e Cohen não têm problema algum em reconhecer as muitas desvantagens da “nova era digital” – sem essas desvantagens para aliviar, quem teria necessidade desses confiáveis guardiões do bem-estar público? Portanto, sim, a internet é uma “fonte para um bem formidável, assim como um mal potencialmente terrível” – mas deveríamos nos dar por satisfeitos em saber que as pessoas certas estão na direção. Incerteza? É inevitável, mas contornável. “A resposta não é previamente determinada” – uma renúncia necessária num livro de futurologia – e “o futuro terá a forma pela qual os Estados, os cidadãos, as empresas e as instituições tratam de suas novas responsabilidades”. Se isso não conseguir tranquilizar, os autores anunciam que “acima de tudo, este é um livro sobre a importância da orientação de uma mão humana na nova era digital”. A “mão orientadora” em questão, mais do que provavelmente, será de uma corporação e vestirá um traje a rigor.

Os conceitos originais apresentados em The New Digital Age têm sua novidade derivada do que poderia ser descrito como a hipótese dos dois mundos: a de que existe um mundo analógico aí fora – onde, por exemplo, pessoas compram livros escritos por Eric Schmidt e Jared Cohen – e um mundo virtual correspondente, onde pode acontecer todo tipo de coisas estranhas, perigosas e subversivas. Ou, como dizem os autores, “um [mundo] é físico e desenvolveu-se ao longo de milhares de anos e o outro [mundo] é virtual e, em grande parte, ainda está no processo de formação”. Como “numa ampla maioria, nos encontraremos vivendo, trabalhando e sendo governados, cada vez mais, por dois mundos ao mesmo tempo”, novos problemas irão emergir e exigir soluções originais.

Uma nova realidade parasítica

A fé inabalável que têm na hipótese dos dois mundos leva Schmidt e Cohen a repetir a história de sempre, de que existe um espaço virtual livre de leis e regulamentos. Sua opinião da internet como “o maior espaço sem governo do mundo” estava muito na moda na década de 90, mas em 2013 parece um pouco obsoleta. Basta ver por seu empregador, o Google. A empresa sabe muito bem que, apesar de toda a conversa sobre virtualidade, ainda tem contas bancárias que podem ser congeladas e empregados que podem ser presos. De que adianta, então, ser o rei do “maior espaço sem governo do mundo” se seus ativos e funcionários são reféns dos caprichos de governos no espaço físico? Alguém no Google acredita na existência de um “mundo online que não é regido por leis terrestres”? Onde é esse mundo e, se existe, por que o Google ainda não se estabeleceu por lá? Por que o Google continua tendo que enfrentar tantos problemas, com todas essas malditas “leis terrestres” – na Itália, na Índia, na Alemanha, na China? Da próxima vez que o Google entrar em conflito com as “leis terrestres” de alguém, sugiro que Cohen e Schmidt experimentem sua hipótese de dois mundos em tribunal.

Cohen e Schmidt argumentam – sem qualquer traço de ironia – que “o jornal impresso, o telefone, o rádio, a televisão e a máquina de fax representam revoluções tecnológicas, mas todos exigiam intermediários… [A revolução digital] é a primeira que torna possível a quase todo mundo possuir, desenvolver e disseminar conteúdo em tempo real sem ter que depender de intermediários”. Presume-se que iremos disseminar “conteúdo em tempo real” de cérebro para cérebro, pois essa é a única maneira de evitar intermediários. Vinda de executivos do mais poderoso intermediário do mundo – aquele que dá forma a como encontramos informação (para não falar na expansão do Google para campos como as redes de fibra) –, toda essa conversa sobre o desaparecimento de intermediários é verdadeiramente bizarra e falsa. Isso poderia ter sido mais exato na década de 90, quando todo mundo era incentivado a ter seu próprio servidor de e-mail – mas os autores parecem não ter acompanhado a advento da computação em nuvem e a subsequente capacitação de uma meia dúzia de intermediários da informação (Google, Facebook, Amazon). Nada tem de surpreendente que Cohen e Schmidt entrem em contradição com seu próprio evangelho da desintermediação quando mencionam como seria fácil enfraquecer o WikiLeaks rastreando empresas como a Amazon e a PayPal.

Na simplicidade de sua composição, o livro de Schmidt e Cohen tem uma natureza fortemente marcada por fórmulas – talvez eu devesse falar em algoritmos. O algoritmo, ou processo de pensamento, funciona da seguinte maneira: primeiro, toma-se uma declaração sem controvérsias sobre algo que importa no mundo concreto – o tipo de coisa que os membros do Conselho de Relações Exteriores comentam durante seus almoços; em seguida, acrescente a isso à palavra “virtual”, de modo a fazê-la parecer mais ousada e de vanguarda. (Se “virtual” ficar cansativo, você pode alterná-la com “digital”.) Em terceiro lugar, faça uma especulação maluca – o ideal seria com alguma coisa completamente desconectada daquilo que já é conhecido hoje. A nova realidade de Schmidt e Cohen, supostamente sem precedentes, ficaria inteiramente parasítica, e derivativa, da velha realidade.

Duas categorias de especulações

O problema é que você não pode inventar novos conceitos simplesmente acrescentando adjetivos aos velhos. O futuro descrito em The New Digital Age é apenas o passado qualificado como “virtual”. O livro é todo sobre sequestros virtuais, reféns virtuais, esconderijos virtuais, soldados virtuais, instituições virtuais, condição de Estado virtual, multilateralismo virtual, confinamento virtual, soberania virtual, vistos virtuais, crimes de honra virtuais, apartheid virtual, discriminação virtual, genocídio virtual, militarismo virtual, governança virtual, planos de saúde/seguros virtuais, históricos juvenis virtuais e – a minha preferida – coragem virtual. A questão complicada de gravidez virtual continua sem solução.

Na nova era digital, tudo – e nada – irá mudar. A palavra “sempre” aparece tantas vezes neste livro que a “novidade” desta nova era não pode ser garantida: “Os governos sempre encontrarão maneiras de usar vantajosamente novos níveis de conectividade”; “é claro que sempre existirão as pessoas super-ricas cujo acesso à tecnologia será ainda maior”; “haverá sempre alguém com más intenções que divulga informações que resultarão na morte de pessoas”; “haverá sempre algumas empresas que permitem que seu desejo por lucros substitua sua responsabilidade para com os usuários”; “a lógica da segurança sempre triunfará sobre as preocupações privadas”; “haverá sempre tipos malévolos de pessoas para quem a dissuasão não irá funcionar”. Sempre, sempre, sempre: o novo futuro digital parece muito diferente; só que não é.

Mas mesmo essa permanência não é garantida porque a nova era digital é, em si própria, uma pletora de eras. É “uma era de engajamento cidadão exaustivo”, “uma era de guerra cibernética conduzida pelo Estado”, “uma era de expansão”, “uma era de hiper-conectividade”, “a era dos protestos digitais”, “uma era de ciberterrorismo”, “a era dos drones” e – quem iria imaginar? – “a era do Facebook”. Indecisos sobre como é fluido ou permanente o mundo de hoje, Schmidt e Cohen deixam para trás os sapatos que beliscam e os cortes de cabelo automatizados e entregam algumas previsões mais sérias. A maioria delas encaixa-se em duas categorias: a primeira, a especulação sobre aquela coisa verdadeiramente bizarra que parece legítima unicamente devido à crença dos autores na hipótese dos dois mundos; e a segunda, a especulação sobre coisas absolutamente normais e que dificilmente podem ser chamadas de novas e, consequentemente, não precisam de profetas. (O que há de melhor para garantir a reputação de alguém como futurista do que prever algo que já aconteceu?)

“Independência virtual” não significa coisa alguma

A primeira categoria é cheia de revelações aparentemente provocativas que se auto-esvaziam após uma segunda análise. Avalie apenas uma subfamília dos conceitos “virtuais”: “soberania virtual”, “condição de Estado virtual”, “independência virtual”. Para que servem, exatamente? Eis a explicação dos autores:

“Assim como os esforços separatistas no sentido de criar uma condição de Estado física são objeto de uma forte resistência por parte do Estado anfitrião, tais grupos enfrentariam oposição semelhante a suas manobras online. A criação de uma Chechênia virtual poderia cimentar uma solidariedade étnica e política entre seus simpatizantes na região do Cáucaso, mas com certeza iria piorar as relações com o governo russo, que consideraria tal atitude uma violação de sua soberania. O Kremlin poderia responder à provocação virtual com uma reação física de repressão, levando tanques e tropas para sufocar os tumultos na Chechênia.”

Para começo de conversa, este parágrafo expõe a falta de familiaridade de Schmidt e Cohen com o conflito. Os rebeldes chechenos e seus veículos de mídia já operam vários websites. Na realidade, o mais importante deles, o Kavkaz Center, foi obrigado a transferir seus provedores através de vários países para garantir que pudessem funcionar sem uma interferência excessiva por parte das autoridades russas, estabelecendo-se, por fim, na Escandinávia. Mas só porque a Chechênia da imaginação dos rebeldes tem um website, isso não significa que estejamos assistindo à “Chechênia virtual” da imaginação de Schmidt e Cohen. Mesmo que a Chechênia tivesse seu próprio domínio na internet e os rebeldes o pudessem tomar, não significaria muita coisa. Os rebeldes já tomaram reféns em teatros e hospitais sem grandes consequências – e nós deveríamos acreditar que eles ganhariam um poder considerável apoderando-se de banais ativos digitais?

E daí, se os rebeldes proclamassem sua “independência virtual”? Em termos de vitórias da propaganda, na prática não tem valor algum. Também poderiam anunciar que, após décadas de uma luta violenta, os chechenos comuns podem finalmente respirar em liberdade, o que não é propriamente um avanço significativo em termos de liberdade humana. Do ponto de vista geopolítico, uma declaração de “independência virtual” não muda coisa alguma, inclusive porque o conflito entre Rússia e Chechênia é, no fundo, em torno de um pedaço de terra – uma realidade física. A menos que esse pedaço de terra seja garantido, a “independência virtual” não significa coisa alguma.

O “mundo virtual” não anula situação geopolítica

Tudo isto é rudimentar e qualquer pessoa com um conhecimento superficial de geopolítica poderia decifrá-lo após um momento de uma reflexão cuidadosa. Mas uma reflexão sóbria é muito menos divertida do que uma especulação maluca e Cohen e Schmidt – esquecendo que os rebeldes chechenos têm um provedor anfitrião no exterior há mais de dez anos – fazem um devaneio em futurologia sobre a Chechênia e a Mongólia:

“Simpatizantes dos… rebeldes chechenos poderiam utilizar o espaço da internet da Mongólia como base a partir da qual mobilizariam, fariam campanhas online e construiriam movimentos virtuais. Se isso acontecesse, o governo da Mongólia sofreria, com certeza, pressões da… Rússia, não apenas diplomáticas, mas porque sua infraestrutura nacional não foi construída para resistir a um ataque cibernético… Procurando… preservar sua própria soberania física e virtual, a Mongólia pode achar necessário acatar… uma ordem russa e filtrar o conteúdo da internet associado a questões mais delicadas. No caso de tal transigência, os perdedores seriam os mongóis, cuja liberdade online seria retirada em consequência de potências externas com interesses próprios.”

Pobres mongóis! Mas haveria motivo para essa preocupação? Como já foi dito, vários países – principalmente na Escandinávia – serviram de anfitriões para os websites dos rebeldes chechenos durante muito tempo. Desnecessário dizer que a Rússia não desfechou uma guerra contra eles e os suecos e os finlandeses também não parecem ter tido sua liberdade suprimida. Estaria o Kremlin exercendo pressão sobre esses governos? Com certeza – mas a diplomacia sempre funcionou desse jeito. Por que fazer incursões por uma futurologia abstrata se a experiência e os dados empíricos já estão disponíveis? Mas essa evidência iria sabotar a ideia de que existe um domínio especial da política chamado “virtual”, onde o poder funciona de outra maneira. A verdade é que, com exceção da vídeo-propaganda, as plataformas digitais foram de pouca ajuda para os rebeldes chechenos: não é preciso criar fantasias sobre a Mongólia; basta olhar para a Chechênia.

O livro de Schmidt e Cohen substitui de forma consistente a especulação não-empírica por um envolvimento exaustivo com o que já é conhecido. Pegue-se, por exemplo, a previsão de que estamos em vias de assistir à ascensão da “edição coletiva”, de tal forma que os Estados criarão “comunidades de interesse para editar a internet juntas, baseadas em valores compartilhados ou geopolítica”. Cohen e Schmidt dão o exemplo de ex-Estados soviéticos que ficaram “fartos com a insistência de Moscou em padronizar a língua russa por toda a região” e se juntaram “para censurar o conteúdo em língua russa de suas internets nacionais, limitando completamente, dessa maneira, a exposição de seus cidadãos à Rússia”. Assustador. O que eles deixam de dizer é que, do ponto de vista tecnológico, nada impede a Bielorrússia ou a Armênia de o fazerem atualmente. E por que não o fazem? Bom, podem não ter visto a nota sobre o advento da “nova era digital”. Mais provavelmente, sabem de onde vêm suas provisões de energia e seus subsídios econômicos. O “mundo virtual” que Schmidt e Cohen engrandecem não anula ou transforma radicalmente a atual situação geopolítica em que se encontram os ex-Estados soviéticos. A infraestrutura digital pode ter acrescentado algumas alavancas aqui e ali (e essas alavancas podem ser utilizadas por todos os lados); mas argumentar que a infraestrutura digital criou, de alguma maneira, outro mundo, com uma política absolutamente nova, relações de poder absolutamente novas e pontos de pressão absolutamente novos, é ridículo.

Governos não podem estar “ligeiramente em guerra”

O fato de que a maior parte das coisas que Cohen e Schmidt ainda predizem para o futuro – do “apartheid virtual” à “soberania virtual” – já ter sido tecnologicamente possível há muito tempo é a melhor maneira de recusar a hipótese dos dois mundos. Nada impede que um governo virtual no exílio nomeie um ministro do Interior virtual que “priorizaria preservar a segurança do Estado virtual”. Já podem fazer isso hoje. Porém, sem recursos materiais e sem uma força policial – coisas que os ministros do Interior têm no mundo físico –, nada iria mudar. A taxa de câmbio entre o poder físico e o virtual não é um por um. As relações de poder não ligam muito para as considerações ontológicas de como o mundo está: com o poder, ou você tem ou não tem.

Isso continua valendo independentemente do número de mundos que você proponha. Imagine que amanhã eu anuncio a existência de um terceiro mundo: esqueça o “digital”; a partir de agora é “digital ao quadrado”. Em seguida, eu crio um mecanismo de busca para essa expressão: vamos chamá-lo Schmoogle. E então proclamo que o Schmoogle é a coisa mais fantástica que surgiu desde o Google. (Google? Esses luditas não sabem nada sobre “digital ao quadrado”!) Suspeito que este esqueminha inteligente não me fará rico, a menos que, talvez, eu publique um manifesto radical – The New Digital Squared – para acompanhá-lo. Isso não significa que o Schmoogle está rifado. O que significa é que anunciar que o Schmoogle pertence a um novo mundo revolucionário não me leva a lugar algum. Não é o suficiente para convencer os fundadores, os usuários e os anunciantes de que o projeto caminha por si. Na realidade, tem que se criar uma nova era por completo.

Por que tantas das banais denúncias neste livro parecem ser sérias? É bastante simples: a hipótese dos dois mundos estabelece denúncias, tendências e objetos de importância – sem levar em conta sua inconsequência – baseados unicamente em sua afiliação ao novo mundo revolucionário, o qual existe apenas porque foi proposto pela hipótese. Veja outra afirmação do livro de Schmidt e Cohen: a de que “governos… podem ir à guerra no ciberespaço, mas manter a paz no mundo físico”. Aí, alguma coisa não bate. Se governos estão em guerra – uma condição bem descrita no Direito internacional – então estão em guerra por toda parte; assim como é o caso da gravidez, as pessoas não podem estar ligeiramente “em guerra”. Se os governos se envolvem em escaramuças que não chegam a ser uma guerra – condição que também é bastante conhecida dos estudantes de Direito internacional e Política –, então, não estão em guerra. As novas escaramuças são, certamente, o caso que a conectividade ampliada tornou mais fácil, mas aqui não lidamos com uma coisa nem remotamente revolucionária. A banal verdade, enterrada na hipérbole de Schmidt e Cohen, é algo como: os governos podem estropear com as redes uns dos outros de maneira bastante semelhante à que estropeavam as embaixadas uns dos outros. Mas não é uma revolução em assuntos globais.

Previsões malucas

O que querem dizer Cohen e Schmidt quando escrevem que, “assim como alguns Estados alavancam os recursos militares uns dos outros para garantir mais espaço físico, também outros Estados constituirão alianças para controlar mais território virtual”? Se assumirmos que “território virtual” é um conceito válido – com um grande “se” – isto soa verdadeiramente horripilante. Porém, examinando mais de perto, o que Cohen e Schmidt estão dizendo é que os Estados irão cooperar em questões tecnológicas – como já vêm fazendo há séculos – e que isso poderia ter alguma repercussão nos assuntos militares e não-militares. O que é tão refrescante nessa revelação? Avalie a previsão de que, em breve, o mundo “verá a primeira pessoa a buscar asilo na internet”. E veja só: “um dissidente que não pode viver livremente com uma internet autocrática e a quem é recusado o acesso às internets de outros Estados, irá optar por procurar se refugiar fisicamente em outro país para ganhar liberdade virtual em sua internet”. Não tenho dúvidas de que alguém, algum dia, poderá tentar essa desculpa – dificilmente seria o motivo mais estranho para pedir asilo – mas iria algum governo razoável conceder realmente asilo com base nisso? Claro que não. Mais uma vez, a correspondência mecânica de Schmidt e Cohen entre o físico e o virtual confere ao virtual – neste caso, “espaço virtual” – uma singularidade que ele não possui. Se a censura da mídia for um motivo suficiente para conceder asilo, então toda a população da China é elegível; afinal, seus jornais, rádios e televisões são censurados, assim como seus blogs. Mas tente escrever um livro sobre pessoas que “buscam asilo de rádio”.

Portanto, o que é realmente novo sobre a nova era digital? Sua novidade vislumbrada – “única” é um termo especialmente querido a Schmidt e Cohen – decorre unicamente de sua capacidade de esconder o vazio teórico do uso que fazem do “virtual”. Um título mais apropriado para este livro seria A Era Mais ou Menos Nova e Mais ou Menos Digital.

Mas o que está em jogo aqui é mais do que semântica. A falsa novidade é invocada não só para fazer previsões malucas, mas também para sugerir que todos temos que fazer sacrifícios – uma mensagem bastante alinhada com a retórica do Google para questões como privacidade. “De quanto temos que abrir mão para fazer parte da nova era digital?”, perguntam Cohen e Schmidt. Bem, se essa era nem é nova, nem é digital, não temos que abrir mão de muita coisa.

Desperdício de dinheiro

A coisa mais desagradável neste livro é que ele dá pouca atenção a projetos e tecnologias já existentes que Schmidt e Cohen apenas percebem como visões. Avalie esta joia de parágrafo:

“Se você sente tédio e quer tirar férias de uma hora, por que não ligar sua caixa holográfica e visitar o carnaval no Rio de Janeiro? Cansaço? Vá passar um tempo na praia, nas Ilhas Maldivas. Está preocupado porque seus filhos são muito mimados? Mande-os passar um tempo passeando por uma favela em Mumbai. Ficou frustrado porque a cobertura feita pela mídia dos Jogos Olímpicos foi num fuso horário diferente? Compre um passe holográfico por um preço razoável e assista à apresentação da equipe de ginástica feminina ao vivo, bem à sua frente. Por meio de interfaces de realidade virtual e possibilidades de projeção holográfica, você poderá ‘acompanhar’ essas atividades à medida que elas acontecem e sentir a experiência como se você estivesse realmente ali.”

Acho que já temos uma tecnologia para assistir aos Jogos Olímpicos: chama-se NBC. E, equipado com um projetor, uma tela grande e óculos de 3-D, você já pode assistir à apresentação da equipe de ginástica feminina bem na sua frente. Na nova era digital, talvez você não tenha que apagar a luz. E viva a digitalização! Quanto à praia nas Ilhas Maldivas, não se preocupe. Provavelmente, nem Wolf Blitzer – o principal especialista em holografia do mundo – perde tempo, à noite, vendo um pôr-do-sol holográfico na sala de sua casa. E quanto ao paternal conselho revolucionário, quem iria punir crianças mimadas com uma viagem holográfica à Índia? Que Schmidt e Cohen comecem por fazer isso com seus próprios filhos.

Schmidt e Cohen despacham seus exemplos peculiares em doses tão grandes que os leitores que não tenham familiaridade com a mais recente literatura sobre tecnologia e a nova mídia podem, acidentalmente, achá-los inovadores e persuasivos. Na verdade, entretanto, muitos dos exemplos – principalmente aqueles de terras estrangeiras e exóticas – são completamente isolados de seu contexto. É bom saber que inovadores do laboratório de mídia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) planejam distribuir tablets para crianças na Etiópia, mas por que não nos dizem que esse projeto segue nos passos de um outro, One Laptop Per Child (um laptop por criança), que foi um dos maiores fracassos, em termos de utopia tecnológica, da última década? Omitindo esse fato, o projeto dos tablets para a Etiópia parece muito mais promissor – e revolucionário – do que realmente é.

“Imaginem as implicações destas vigorosas plataformas de aprendizado com aplicativos móveis ou tablets para um país como o Afeganistão”, declaram Schmidt e Cohen. Mas, na realidade, não é tão difícil imaginar, uma vez que o contexto apropriado tenha sido criado. Tomando por base o histórico do projeto One Laptop Per Child, estas plataformas de aprendizado serão um desperdício de dinheiro. Não há nada de errado em fazer previsões, mas quando se opta por fazer previsões no escuro, sem a ajuda do que já é conhecido do presente e do passado, fica difícil levar essas previsões a sério. Por que especular, como fazem Schmidt e Cohen, sobre o papel positivo que as mídias sociais e os telefones celulares poderiam ter desempenhado durante o genocídio em Ruanda, quando sabemos do papel que desempenharam durante os conflitos étnicos no Quênia, em 2007, e na Nigéria, em 2010? Seu papel foi longe de ser positivo.

Conectividade não é uma panaceia

Um mínimo de pesquisa teria poupado este exercício de futurologia irresponsável, mas, vivendo no futuro, Cohen e Schmidt não se preocupam muito com o presente, o que provavelmente os leva a exagerar sua própria originalidade. Assim, rasgam elogios aos benefícios que a linguagem cifrada oferecerá às ONGs e aos jornalistas, capacitando-os a enviar reportagens em segurança de regiões distintas e, assim, transformando o jornalismo e as reportagens sobre direitos humanos. “Tratar repórteres da maneira que se faz com fontes confidenciais (protegendo identidades, preservando conteúdo) não é uma ideia nova”, proclamam, “mas a possibilidade de escrever esses dados em linguagem cifrada, e de usar uma plataforma online para facilitar a coleta de informações anônima, só se tornou possível agora.” Isto revela o pouco que eles conhecem do mundo dos repórteres e dos funcionários de ONGs que trabalham em lugares como Birmânia, Irã e Bielorrússia. Em 2003 – há dez anos, uma eternidade, em termos futuristas –, a Benetech, uma entidade sem fins lucrativos da Califórnia, lançou um software para código aberto chamado Martus que faz precisamente aquilo que Cohen e Schmidt estão fantasiando: permite a jornalistas e funcionários de ONGs que acrescentem dados, em segurança, a bancos de dados dotados de linguagem cifrada. Em 2008, vi um desses softwares nos escritórios rudimentares de uma ONG que estava rastreando abusos de direitos humanos na Birmânia a partir de um local remoto, no Sudeste Asiático. Apesar de viajarem pelo mundo todo – eles foram à Coreia do Norte para ver o futuro! –, Cohen e Schmidt têm uma compreensão bastante limitada do que se passa fora de Washington e do Vale do Silício.

Ingenuamente, Schmidt e Cohen prometem que, devido aos amplos tesouros de informação coletados com “dispositivos tecnológicos, plataformas, bancos de dados”, “todo mundo terá acesso ao mesmo material de fonte”. Portanto, discussões sobre o que aconteceu numa guerra ou em qualquer outro conflito – a própria interpretação – tornam-se questionáveis. Ainda me lembro das discussões sobre a guerra entre a Rússia e a Geórgia em 2008. Havia provas interessantes – inclusive fotos feitas por telefones celulares, mas o mesmo quadro desencadeava respostas completamente diferentes por parte de blogueiros da Geórgia e da Rússia: dependendo daquilo que era descrito, era mais provável que um dos grupos desafiasse a autenticidade do “material de fonte”. Mais fotos – mesmo que tenham a indicação digital da hora que entusiasma Cohen e Schmidt – não irão resolver o problema da autenticidade. “As pessoas que tentam perpetuar mitos sobre religião, cultura, etnia ou qualquer outra coisa irão brigar para manter suas narrativas acima entre um mar de ouvintes recém-informados”, dizem eles. Sendo assim, deveríamos fazê-lo nos Estados Unidos: seria um prazer nadarmos em nosso “mar de ouvintes informados” – seja sobre evolução, aquecimento global ou o fato de Obama não ser muçulmano.

Na mesma veia panglossiana, Schmidt e Cohen preferem fazer devaneios de contos de fadas sobre o fantástico impacto da nova mídia nos adolescentes do Oriente Médio do que envolver-se com esses adolescentes em seus próprios termos. “Os jovens no Iêmen podem questionar os mais velhos de sua tribo sobre a prática tradicional das noivas-criança caso determinem que um amplo consenso de vozes pela internet é contrário”, anunciam. Talvez. Por outro lado, os jovens no Iêmen podem tirar e compartilhar pelo celular fotos de amigos que acabaram de ser mortos por drones. A conectividade não é uma panaceia para a radicalização; muitas vezes é sua própria causa. Ou deveríamos acreditar que, na nova era digital, potenciais terroristas irão optar por “terrorismo virtual” e enviar mensagens incômodas (spam) ao invés de fazer bombas?

A historinha de Josh Begley

Schmidt e Cohen chegam ao máximo da superficialidade em sua discussão da radicalização da juventude (o que era o campo de especial interesse de Cohen no Departamento de Estado, antes que ele descobrisse o glorioso mundo da futurologia). “A comunicação com jovens insatisfeitos por meio de telefones celulares é o melhor objetivo que podemos ter”, anunciam, na voz arrogante dos tecnocratas, dos magnatas que combinam os interesses de seus negócios com os interesses do mundo. Telefones celulares!

A estratégia de contra-radicalização que Schmidt e Cohen passam a articular soa como uma paródia do site The Onion. Aparentemente, a maneira adequada de amansar esses garotos iemenitas com raiva dos ataques de drones é distraí-los com – você está pronto? – vídeos de gatinhos bonitinhos no YouTube e Angry Birds em seus telefones. “A estratégia anti-radicalização mais potente terá como foco principal o novo espaço virtual proporcionando aos jovens alternativas de um conteúdo rico e distrações que os levem a não procurar o extremismo como último recurso”, escrevem Cohen e Schmidt. Isso porque, uma vez que a indústria da tecnologia produz videogames, redes sociais e telefones celulares, talvez compreenda melhor como distrair jovens e os garotos são o alvo demográfico recrutado pelos grupos terroristas. As empresas podem não compreender as nuances da radicalização ou as diferenças entre populações específicas em lugares em conflito, como o Iêmen, o Iraque ou a Somália, mas compreendem, sim, os jovens e os brinquedos de que eles gostam. Só quando detemos sua atenção podemos esperar ganhar seus corações e mentes.

Note-se aqui a substituição de termos: “nós” já não estamos interessados em criar um “mar de ouvintes recém-informados” e proporcionar aos garotos iemenitas “fatos”. Em vez disso, “nós” estamos tentando distraí-los com o tipo de trivialidades que o Vale do Silício sabe produzir tão bem. Infelizmente, Cohen e Schmidt não discutem a história de Josh Begley, o estudante da Universidade de Nova York que no ano passado construiu um aplicativo móvel que rastreava ataques de drones norte-americanos e o apresentou à Apple – que o recusou. Esta historinha diz mais sobre o papel do Vale do Silício na política externa norte-americana do que toda a futurologia entre as capas deste livro ridículo.

Arrogância eloquente

Quando alguém escreve uma frase que começa com “se as causas da radicalização são semelhantes em toda parte”, você já sabe que seu conhecimento de política é, no máximo, rudimentar. Será que Cohen e Schmidt realmente acreditam que todos esses jovens são alienados simplesmente porque são desinformados? Que suas queixas podem ser curadas com estatísticas? Que “nós” só podemos mudar isso encontrando o equivalente digital de “lançar folhetos de propaganda de um avião”? Que se conseguirmos que esses jovens conversem uns com os outros, eles próprios deduzirão tudo? “Os estrangeiros não têm que desenvolver o conteúdo; só precisam criar o espaço”, observam Schmidt e Cohen com ares de suficiência. “Instale cabos na cidade, dê às pessoas as ferramentas básicas e elas próprias farão a maior parte do trabalho.” Agora ficou claro: a voz do “nós”, na verdade, é a voz do capital de risco.

E a todo-poderosa máquina de costura? Aquele grande farol da esperança – descrito no catálogo da Singer de 1915 como “A principal contribuição dos Estados Unidos para a civilização” – não cumpriu sua missão cosmopolita. (Como as coisas mudaram pouco: alguns anos atrás, um dos cofundadores do Twitter descreveu a empresa como um “triunfo da humanidade”.) Em 1989, a Singer, numa capitulação humilhante às forças da globalização, foi vendida a uma empresa de propriedade de um canadense nascido em Xangai que faliu dez anos mais tarde. As máquinas americanas, os cérebros americanos e o dinheiro americano deixaram de ser americanos. Um belo dia, o Google também irá cair. A boa notícia é que, em parte graças a este livro superficial e megalomaníaco, as colossais ambições intelectuais da empresa serão preservadas para a posteridade, para ser estudadas como uma advertência. O mundo virtual da imaginação do Google pode não ser concreto, mas a arrogância eloquente de seus executivos, definitivamente, o é.

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Evgeny Morozov é escritor, pesquisador e editor colaborador da revista The New Republic. Seu livro mais recente éTo Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism, ed. PublicAffairs