Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

“Éramos felizes contra a ditadura”

Botei no Google a frase “Éramos felizes contra a ditadura”, que marcou a luta dos espanhóis republicanos contra a ditadura de Franco, e deu mais resultados apontando o contrário, isto é, depoimentos de gente dizendo que “era feliz na ditadura”. Achei interessante esta situação e, ao mesmo tempo, reveladora. Interessante porque reveladora de um pensamento ideológico nostálgico de um tempo que, ao contrário, devíamos agradecer por termos superado.

Esta frase que marcou a redemocratização da Espanha serve sob medida para representar o estado de espírito dos muitos que aqui no Brasil lutaram contra a ditadura – o jornalista Clovis Rossi, da FSP, usou-a para qualificar os que no Brasil lutaram contra a ditadura e depois se desarticularam, cada um seguindo rumos diferentes e, muitas vezes, antagônicos. Nada que não obedeça à lógica previsível do comportamento humano de se unir em determinadas situações para, em seguida, se dispersar com a perda do objetivo comum.

O propósito desta minha busca foi tentar estabelecer conexões com a luta atual de muitos, como este Observatório da Imprensa, que proporciona espaço para a crítica da narrativa única da grande mídia.  Nada contra os jornalistas que lá trabalham, depois de sobreviver aos inúmeros passaralhos, fazendo a sua parte com dignidade e profissionalismo. Ver OI na Televisão . Narrativa esta que assumiu a hegemonia após o fim do socialismo real e da queda do muro de Berlim, mais precisamente com a ascensão ao poder de Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher na Inglaterra. Narrativa que veio, desde então, em um crescendo até a crise mundial causada pela crise da bolsa imobiliária americana de 2008, onde sofreu um sério baque porque ficou difícil explicar tamanha catástrofe econômica quando o esperado era uma “nova renascença”, uma espécie de paraíso na terra, como vaticinou o adesista de primeira hora do novo credo neoliberal, FHC. Pior, porque tiveram que ser socorridos pelo demônio Estado para que os danos não fossem irreversíveis e mais graves.

O coronelismo como sistema

Como não se criou, neste período, outra narrativa alternativa na grande mídia para estabelecer o contraditório, foi possível, após 2008, o restabelecimento do pensamento único, denominação dada por Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde diplomatique ao atual modelo de jornalismo impresso e televisivo. Narrativa que não tem o mesmo vigor de antes, mas que se impõe pela força do quase monopólio midiático em países como o Brasil. Venicio A. Lima e Cristiano Aguiar Lopes retrabalham o conceito de coronelismo que tem sua origem no estudo clássico do jurista e professor Victor Nunes Leal sobre as práticas políticas no antigo Brasil rural – coronelismo, enxada e voto. Eles acreditam que o fenômeno, nomeado como coronelismo eletrônico, envolvendo concessões de rádio e TV, guarda características e mantém traços comuns com o sistema de dominação e relações políticas originalmente estudado por Nunes Leal na República Velha que justificam seu uso.

Dizem ainda Venicio A. Lima e Cristiano Aguiar Lopes, traçando semelhanças com o conceito de coronelismo da República Velha e peculiaridades deste novo tipo de coronelismo: “O coronelismo eletrônico, por outro lado, é um fenômeno do Brasil urbano da segunda metade do século 20, que sofre uma inflexão importante com a Constituição de 1988, mas persiste e se reinventa depois ela. É também resultado da adoção do modelo de curadoria (trusteeship model), isto é, da outorga pela União a empresas privadas da exploração dos serviços públicos de rádio e televisão e, sobretudo, das profundas alterações que ocorreram com a progressiva centralidade da mídia na política brasileira, a partir do regime militar (1964-1985).

Emissoras de rádio e televisão, que são mantidas em boa parte pela publicidade oficial e estão articuladas com as redes nacionais dominantes, dão origem a um tipo de poder agora não mais coercitivo, mas criador de consensos políticos. São esses consensos que facilitam (mas não garantem) a eleição (e a reeleição) de representantes – em nível federal, deputados e senadores – que, por sua vez, permitem circularmente a permanência do coronelismo como sistema.

Um contraponto à narrativa única

Ao controlar as concessões, o novo “coronel” promove a si mesmo e aos seus aliados, hostiliza e cerceia a expressão dos adversários políticos e é fator importante na construção da opinião pública cujo apoio é disputado tanto no plano estadual como no federal.

No coronelismo eletrônico, portanto, a moeda de troca continua sendo o voto, como no velho coronelismo. Só que não mais com base na posse da terra, mas no controle da informação – vale dizer, na capacidade de influir na formação da opinião pública.”

Estamos, pois, diante de um fenômeno que recompõe, no novo cenário mais urbano da contemporaneidade, praticas velhas de manipulação política que foram reforçadas durante o regime militar. Daí a similaridade e pertinência do uso da internet, este novo espaço criado pelas novas tecnologias, como um espaço de luta por bandeiras progressistas e democráticas em um regime democrático. Éramos felizes contra a ditadura e agora, parafraseando, pode-se afirmar que, pelo menos na internet, nós, os democratas, os liberais defensores das bandeiras progressistas e democráticas (diferentes em tudo daqueles que se dizem liberais, mas que, no fundo, só se interessam pela liberdade econômica) e a esquerda em geral, “Somos felizes contra a grande mídia”, lutando contra o voto de cabresto agora eletrônico.

Este adensamento crítico, dos defensores de valores diferentes dos pregados ad nauseam pela grande mídia, na internet pode não influir com o alcance e o mesmo grau da capacidade de influência da grande mídia, hoje em situação de crise e decadência, mas se constitui em um espaço cada vez mais importante na luta por mais igualdade e liberdade e como contraponto à narrativa única da grande mídia e a blindagem que ela estabelece contra o surgimento de outras vozes discordantes no cenário nacional dominado por feudos e/ou monopólios regionais e nacionais, de empresas de serviços públicos de radio e televisão.

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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor