Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Festas e mortes na imprensa mexicana

O contraste, incômodo e desagradável, não foi registrado, talvez nem percebido, em outros órgãos da imprensa mexicana. Mas duas semanas depois ainda paira no ar um certo mal-estar, pelo menos entre leitores mais perceptivos: ao mesmo tempo em que o tradicional matutino El Universal festejava em grande estilo seus 90 anos de existência, aproveitando o evento para ser anfitrião da 62ª reunião anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), o jornal divulgava cifras perturbadoras dos riscos do ofício jornalístico no México: de 1982 até agora, foram assassinados 53 repórteres e colunistas, 23 deles no período 2000-2006, além de três desaparecidos.

(Na América Latina, México incluído, em 2005 morreram fuzilados na rua, à luz do dia, 15 jornalistas.)

Mais: pela primeira vez no país foram atacadas a tiros e bombas as sedes de quatro jornais do interior. Tudo isso é o macabro resultado das atividades, cada vez mais intensas e ousadas, do crime organizado e do narcotráfico, não poucas vezes em cumplicidade com políticos e policiais, num clima de permanente tensão e medo e quase sempre diante da mais cínica indiferença e espantosa ineficiência das autoridades – sobretudo no norte, nas áreas fronteiriças com os Estados Unidos.

Pela tangente

De fato, em meio às várias fotos na mesma página em que aparece o atual presidente e diretor-geral do El Universal, Juan Francisco Ealy Ortiz, fazendo as honras da casa a convidados nacionais e estrangeiros em animados banquetes e coquetéis, o novo diretor da SIP, o jornalista dominicano Rafael Molina, de perfil discreto, reiterava sua disposição de ‘lutar contra a impunidade em que ficam os ataques aos jornalistas no nosso continente’. E disse mais:

‘O sistema judicial em nossos países não é efetivo, seja porque existem leis restritivas que lhe impede chegar ao fundo do assunto, ou porque nele há corrupção, ou porque os casos são descuidados pelos governos de tal forma que essa impunidade é – e será – um dos nossos maiores desafios na SIP.’

Jornalista veterano, realista de carteirinha, Molina contudo não ocultou um aspecto altamente explosivo desse sombrio panorama: a corrupção no próprio meio jornalístico.

‘Estamos acostumados a denunciar a corrupção oficial, nos negócios, na empresa privada, mas nos esquecemos da corrupção em nosso próprio meio que desgraçadamente é crescente.’

Mas, cauteloso, saiu pela tangente na hora da saia justa de uma cobrança mais contundente – o que fazer então?

‘Não me perguntem como penso enfrentar esse problema, porque ainda não sei, teria que ouvir muita gente sobre o tema, mas o importante é dar a devida importância à ética da profissão.’

Revolução e concorrência

Seja como for, o contraste – constrangimentos à parte – não tira o brilho nem a seriedade da trajetória do El Universal ao longo dos últimos 90 anos, conforme destacava há pouco um orgulhoso editorial de alto da primeira página:

‘Hoje continuamos editando o melhor jornal do México, consolidado no profissional, independente no econômico e com uma credibilidade ganhada a pulso desde que, em 1916, foi fundado por don Félix F. Palavicini.’

Descontado um ou outro arroubo retórico, próprio de grandes aniversários, o conservador El Universal é de fato hoje um dos três grandes jornais mexicanos, ao lado de outro feroz concorrente, o liberal Reforma, e o sólido tablóide de esquerda La Jornada, este há 20 anos nas bancas. Posto em circulação num domingo, 1º de outubro, quando no ar da capital ainda ressoavam os derradeiros cañonazos da Revolução Mexicana, o El Universal viveria, nas sete décadas seguintes e como todos os outros, sob o tacão da censura dos sucessivos governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que até 2000 controlou ferreamente os meios de comunicação no país, não só por meio de restrições de ordem econômica – papel comprado do governo a precinho camarada, publicidade oficial dependente de bom comportamento editorial – como pelas ameaças e sustos dados aos repórteres e colunistas mais abelhudos. Quando não o mais prático embute, ou chayote – o popular jabá – em troca de silêncio ou amaciamento de fatos e omissão de nomes envolvidos.

Entre os anos 1960 e 1990, El Universal, um jornalão cinzento e desfibrado, embora lido e respeitado por leitores de uma classe média ascendente, lembrava o nosso velho e já desaparecido Diário Popular, cheio de ‘avisos de ocasión’ – os classificados do tipo ‘precisa-se de cozinheiras’. (Ainda hoje, um dos pontos fortes da empresa são seus cadernos comerciais de imóveis, empregos, veículos, classificados em geral.)

Com a eleição do oposicionista Vicente Fox, em 2002, desbancando a tirania e a corrupção do PRI e toda sua máquina administrativa, o El Universal se beneficiaria muito da liberdade de expressão permitida pelo novo governo, agora democrático. Mas necessitava, urgente, de uma profunda reforma gráfica e editorial para enfrentar o recém-chegado Reforma, que, há dez anos, municiado com fartos recursos do norte do país e dotado de grande agressividade comercial, entrou com tudo na Cidade do México, apresentando um belo projeto gráfico e contratando as estrelas do jornalismo local.

A essa altura, o El Universal não mais contava com a concorrência do combativo Excelsior, que depois de empastelado pelo ex-presidente Luís Echeverría, em 1976, jamais recuperou o prestígio editorial.

Fiel aos termos de seu editorial de aniversário – ‘Estamos em permanente renovação para atender as novas linguagens jornalísticas, adquirir tecnologia de ponta e responder, em suma, às exigências que nos vão apresentando os novos tempos’ – o jornal, sob o comando de Ealy Ortiz e equipe, reagiu à altura e hoje nada fica a dever nem ao Reforma e muito menos a órgãos de imprensa estrangeiros.

Seu novo e moderno projeto gráfico e o amplo espaço pluralista dado a gente de prestígio do jornalismo, da política, da cultura local e dos meios universitários, conferem ao El Universal – com uma circulação média de 200 mil exemplares diários – um lugar de prestígio que o torna leitura obrigatória entre as cabeças pensantes do país.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México