Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Folha de S. Paulo

CENSURA
Folha de S. Paulo

ANJ condena decisão judicial contra jornal

‘A ANJ (Associação Nacional de Jornais) condenou ontem, em nota, a decisão do desembargador Dácio Vieira, do TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios), que proibiu a publicação, pelo jornal ‘O Estado de S. Paulo’, de reportagens que contenham informações resultantes da Operação Boi Barrica, da Polícia Federal.

A operação investiga quatro supostos crimes atribuídos ao empresário Fernando Sarney, filho do senador José Sarney (PMDB-AP). O empresário foi à Justiça para impedir que o jornal continuasse divulgando as reportagens e obteve decisão favorável, na última sexta-feira, no tribunal do DF.

A nota da ANJ foi assinada por Júlio César Mesquita, membro do conselho de administração da empresa que edita ‘O Estado de S. Paulo’, na função de vice-presidente da ANJ e responsável pelo Comitê de Liberdade de Expressão da entidade.

‘A ANJ considera que o fato se reveste de inegável interesse público e que é inaceitável que pessoas ligadas à atividade jornalística recorram a um expediente inconstitucional, conforme recente decisão do Supremo Tribunal Federal, para subtrair ao escrutínio público operações com graves indícios de ilegalidade’, diz a nota, referindo que a família Sarney, ‘entre outros negócios, controla um grupo de comunicação que inclui jornal, rádio e televisão’.’

 

Janio de Freitas

Segredos da Justiça

‘NO BRASIL não há censura à imprensa, determina a Constituição, mas o jornal ‘Estado de S. Paulo’ foi proibido por liminar de transcrever qualquer trecho da Operação Boi Barrica, que a Polícia Federal move sobre atividades do empresário Fernando Sarney. Censura que se segue à proibição de que o colunista da Folha José Simão publique o nome da atriz e ‘modelo’ Juliana Paes. Censura que se segue a numerosas decisões de censura incidentes sobre jornais interioranos. Censura que se estende a livros, com a proibição de uma pacífica biografia porque o biografado Roberto Carlos, em mais uma de suas investidas judiciais, esperava do autor censuras espontâneas.

Aos juristas cabe a discussão específica do convívio imposto à Constituição, pelo Judiciário, com a censura autoritária. Mas aos cidadãos, sobre os quais recaem os efeitos generalizados da censura, ainda são permitidas algumas perguntas a propósito.

Se for justificável o segredo de Justiça que acoberta determinados trabalhos policiais e respectivos processos, que critérios o regem? O conhecimento desses critérios, afinal de contas, não deve estar ao alcance de todos como parte da garantia de que a Justiça seja a mesma para todos? E até para que os critérios não sejam mais um segredo de Justiça. No processo judicial da Operação Boi Barrica, por exemplo, já que o Judiciário decide que a cidadania não deve saber das constatações e figurantes, e o batiza com o segredo de Justiça, por que a decisão?

Nunca sendo os segredos obras perfeitas, nem sendo proibida a publicação de que o processo judicial existe, o segredo de Justiça vira mistério e o mistério vira suspeita. Como já se deu com o processo decorrente da Operação Boi Barrica.

No caso da censura concedida ao pedido de Fernando Sarney, o invocado segredo de Justiça e a proibição ao jornal têm vários agravantes. É evidente, para começar, que a censura não se limita ao ‘Estadão’, porque implica sua extensão a todo jornal que publique o material censurado naquele. É, portanto, censura geral da imprensa por decisão do Judiciário que deve proteger a Constituição e a liberdade de imprensa.

Além disso, é censura inútil, por chegar muito tarde para Fernando Sarney e para a contribuição, sem igual, que deu ao problema vivido por seu pai no Senado e na opinião pública. Hoje não se duvida de que a repentina candidatura de José Sarney à Presidência do Senado, depois de tanto negá-la, derivou, como um ato paternal, das investigações que se agravavam contra Fernando Sarney e suas atividades variadas.

À parte a derrubada ou permanência da liminar de censura, é outra aberração -no mínimo- que fosse concedida por um desembargador, Dácio Vieira, dado publicamente como ex-consultor jurídico no Senado e devedor de sua nomeação para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal a um movimento de apoio conduzido, entre senadores e outros políticos, pelo então influente Agaciel Maia.

O segredo de investigações policiais é fácil de compreender; o de Justiça é um segredo.’

 

PREÇO ZERO
Elio Gaspari

Boa notícia: ‘Free’ chegará às livrarias

‘CHEGA NAS PRÓXIMAS semanas às livrarias ‘Free – O Futuro de um Preço Radical’, de Chris Anderson, editor da revista ‘Wired’. A palavra inglesa ‘free’ quer dizer livre, mas também significa grátis.. Sua tese é fascinante: dado que os custos da memória dos computadores, do armazenamento e da transmissão de informações tornaram-se desprezíveis, o século 21 assistirá ao crescimento da economia das coisas sem custo, como o Google, a Wikipedia e os softwares abertos. (Em 1960, um transistor custava US$ 100, foi vendido a US$ 10 e hoje custa zero (na verdade, US$ 0,000015).

Quem reage ao preço de R$ 0,00 argumentando que ‘não existe almoço grátis’ ganhará com ‘Free’ uma rica aventura intelectual. Ele não prova que o almoço exista, mas mostra quando e como ele aparece.

Na hora em que a Microsoft, a maior empresa de comercialização de programas de computadores resolve se associar ao Yahoo!, um instrumento de busca e serviço de e-mail gratuito, fica claro que até Bill Gates resolveu ganhar dinheiro oferecendo algo que custa nada. O Google vale hoje US$ 20 bilhões, ervanário superior ao da soma de todas as montadoras de automóveis e companhias aéreas dos Estados Unidos.

O famoso ‘um é dois, três é cinco’ não tem muito a ver com o ‘Free’. A telefônica que dá o celular e vende o serviço é apenas parte de sua história. O mesmo sucede com a banda brasileira Calypso, que vende seus CDs na rede de camelôs para promover seus shows. (A turma da Calypso voa pelo país no seu próprio avião.) Os melhores momentos de ‘Free’ estão nas exaustivas descrições do lucrativo mercado da gratuidade.

Um caso exemplar, repassado por Anderson. Três pesquisadores montaram duas mesas no saguão de um prédio público, oferecendo dois tipos de chocolates. Numa puseram as deliciosas trufas suíças Lindt a 15 centavos cada uma. Na outra, os proletários Kisses, da Hershey, a 1 centavo. Funcionou a racionalidade e 73% dos fregueses preferiram as trufas. Em seguida, baixaram o preço dos chocolates em um centavo. A conta inverteu-se irracionalmente: 69% preferiam os Kisses grátis. Nas suas palavras: ‘Há o mercado do zero e há o outro, o dos demais preços’.

‘FREE’ CUSTARÁ R$ 59, SEM VERSÃO GRÁTIS

A edição eletrônica do livro ‘Free’ foi oferecida de graça aos americanos durante algumas semanas. Agora o livro de papel custa US$ 27 (R$ 52) e uma versão digital sai por US$ 10 (R$ 19). No Brasil, o volume custará R$ 59,90 (US$ 31), e a editora Elsevier-Campus ainda não decidiu se colocará na rede uma versão digital grátis, ou mesmo paga, a um preço mais baixo. Dói pensar que uma exaltação da economia do grátis (ou dos produtos baratos) do século 21 só seja comercializada no Brasil como se fosse um impresso do século 15.

Depois de atravessar a Revolução Industrial investindo na mão de obra escrava e de entrar na alvorada do mundo dos computadores pessoais com uma reserva de mercado retrógrada e cartorial, o Brasil corre o risco de perder o passo da economia digital. As grandes operadoras de telefonia ficam com os benefícios dos custos baixos das comunicações de voz sobre IP. O mercado editorial ainda não conseguiu oferecer versões digitais de seus livros. As assinaturas de jornais e revistas americanos e europeus estão a preço de banana. Giram em torno dos US$ 10 (‘Financial Times’ e ‘Herald Tribune’) e US$ 15 (‘Wall Street Journal’ e ‘Le Monde’).

Desse jeito, o andar de cima nacional acabará impondo uma tributação indireta a quem só lê em português. Mau negócio para ele.’

 

ZIMBÁBUE
Folha de S. Paulo

País acerta volta de TVs internacionais e alivia restrições

‘Outro setor em que o governo de unidade vem dando mostras de distensão é o de mídia. Na última semana, o Zimbábue acertou o retorno da emissora britânica BBC, banida do país desde 2001 por realizar uma cobertura supostamente enviesada pró-Ocidente. O mesmo está sendo considerado sobre a americana CNN. Recentemente foi também permitido o funcionamento da Associação de Jornais do Zimbábue e foram afrouxadas as proibitivas restrições à importação de papel para jornais.’

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

Faustão troca dança no gelo e circo por rali e cachorrada

‘Estreia no próximo dia 16 o mais novo quadro do ‘Domingão do Faustão’, o ‘Rally dos Famosos’. A competição terá quatro casais de celebridades disputando provas em que terão de mostrar habilidades ao volante. O quadro é criação da equipe de Fausto Silva -que hoje, já recuperado de cirurgia para retirada de pedra na vesícula, volta a apresentar ao vivo.

Já estão confirmados no rali os atores Eri Johnson e Dig Dutra (a Maria Abadia de ‘Zorra Total’), o cantor Toni Garrido e a ex-jogadora de vôlei Leila Barros. Priscila Fantin era nome quase certo até quinta.

O quadro terá duas provas disputadas em uma fazenda em Avaré, no interior de São Paulo, e a final no Pantanal (Mato Grosso do Sul). Antes, os casais, que serão formados no palco do programa, passarão por um aprendizado em Botucatu (SP). Nas provas, enfrentarão as dificuldades de um rali comum, como estradas empoeiradas e esburacadas, lama e riachos.

Segundo Márcio Trigo, diretor da atração, os casais disputarão as provas separadamente. Nas duas primeiras, serão eliminados aqueles que fizerem o maior tempo. A expectativa é que cumpram o percurso entre 40 minutos e uma hora.

Outro quadro com famosos será o ‘Cachorrada VIP’, no final do ano. Nele, artistas e atletas disputarão um concurso de adestramento de cães.

Por causa da estreia de novos quadros, a produção do ‘Domingão’ adiou para 2010 os planos de realização de novas edições de ‘Dança no Gelo’ e ‘Circo dos Famosos’. Ainda em 2009, haverá as reestreias de ‘Quem Chega Lá?’ (para novos humoristas), ‘Se Vira nos 30’ e ‘De Cara no Muro’.

JÚRI POPULAR

O programa de Márcia Goldschmidt (foto), na Band, estreia amanhã o quadro ‘Quem Tem Razão?’, em que um júri popular dará o veredicto sobre uma disputa entre duas pessoas. Baseado nos programas americanos que imitam tribunais, o quadro será semanal e terá dois advogados, cada um defendendo um lado. Segundo a produção, os participantes assinam termo se comprometendo a seguir a sentença, que é registrada em cartório. Na estreia, a pendenga será em torno de um terreno. O júri será formado pelas 120 pessoas da plateia, que, pela primeira vez, admitirá homens.

BEIJO TRIPLO

Há duas semanas, a carioca Maria Flor, 25, grava em São Paulo a série ‘Aline’, baseada na tira de Adão Iturrusgarai, publicada pela Folha. ‘Estou amando gravar em São Paulo. Mas a gente está trabalhando muito, não sobra tempo para sair, só para comer bastante’, conta. No seriado, que a Globo estreia em 1º de outubro, ela interpreta a paulistana hipermoderna que divide os lençóis com dois namorados. Maria Flor adverte, no entanto, que não haverá beijo a três. ‘Ela beija um e beija o outro, separadamente. Um beijo triplo não seria bom de filmar’, afirma. A série, na visão da atriz, tratará da descoberta do amor e do que jovens querem fazer na vida, enfim, de ‘coisas legais que não envolvem só sexo’.

BLOCKBUSTER

Produção da Globo, ‘Os Normais 2’ tem pretensão de ser um marco no cinema nacional. De cara, o longa dirigido por José Alvarenga será lançado em 28 de agosto em 360 salas de cinema, um número absurdo para as produções brasileiras. Será o maior lançamento da chamada retomada -os filmes produzidos no Brasil a partir de 1995. Como comparação, ‘Se Eu Fosse Você 2’, maior sucesso de público recente, fez sua estreia em 300 salas.

AMEAÇA VIRTUAL

Estão contados os dias de Mano Menezes como perfil brasileiro mais popular do Twitter, rede de microblogs. Segundo um site de projeções, o ‘Fantástico’ terá por estes dias mais seguidores do que o técnico do Corinthians. Até quinta, Menezes somava 607 mil seguidores. O programa da Globo tinha 595 mil. Luciano Huck, em apenas dois meses, já aparecia em terceiro, com 433 mil. Em quarto, Rafinha Bastos ultrapassou Marcelo Tas.’

 

Bia Abramo

Eterno ‘talk show’

‘APESAR de o formato ‘talk show’ já ter sido explorado de todas as maneiras, sua permanência na programação de várias emissoras sugere que esta conversa em público é cara aos telespectadores. É compreensível: com tom menos codificado que do telejornalismo, os ‘talk shows’ conseguem apresentar informação e trazer a discussão de assuntos quentes e sérios de um jeito mais ‘lá em casa’. O risco, claro, é sempre o de subordinar a informação aos artifícios do entretenimento e do opinionismo gratuito, com consequente superficialidade e ligeireza, mas parece haver algo nessa informação, digamos, personalizada, mais informal, que pode ter um alcance às vezes maior do que aquele conseguido pelos formatos mais tradicionais.

É claro que essa eficiência depende muito da vivacidade do apresentador e do acerto dos assuntos e dos convidados. Nesse sentido, reestreou bem ‘Happy Hour’, que voltou a ser comandado por Astrid Fontenelle desde a última segunda-feira.

Astrid tem uma trajetória curiosa, com origem nas emissoras alternativas e jovens (o ‘TV Mix’, da Gazeta, nos anos 80, e longa permanência na MTV), seguida de uma larga experiência em programas de caráter mais popular.

É mais do que suficiente para que sua capacidade comunicativa abranja um espectro amplo, o que certamente faz sentido em um programa desse tipo. Da mesma maneira, a combinação de temas mais duros, como o trânsito nas cidades grandes e a gripe suína, com abordagens mais leves, aparentadas da autoajuda (superação, dieta etc.), combina com o formato.

Um ajuste a se considerar é a quantidade de quadros e de intervenções de espectadores ao longo do programa. Pode até servir para agilizar uma pauta menos acertada ou quando os convidados não rendem tanto quanto o esperado, mas também pode produzir uma conversa interrompida demais.

No programa de estreia, um dos convidados a falar sobre superação foi o ator Felipe Camargo. ‘Som & Fúria’ havia terminado alguns dias antes, e Astrid não conteve seu entusiasmo ao comentar a série. É justo: o programa foi, de longe, o melhor que a Rede Globo fez neste ano.

Pena que, mais uma vez, uma minissérie seja tão breve e tenha ficado escondida no período de férias e naquele horário ‘depois de tudo’, que exige um enorme esforço do espectador para acompanhá-la.

Já se fala em uma segunda temporada, mas, antes disso, uma reprise em horário mais palatável, sem ser em período de férias, deveria ser seriamente considerada.’

 

EUCLYDES DA CUNHA
Jorge Coli

Escritor ‘fin-de-siècle’

‘Euclydes da Cunha escreveu, com ‘Os Sertões’, uma epopeia decadentista. Eram tempos em que o poeta [francês] Leconte de Lisle traduzia Homero e os trágicos da Grécia com termos preciosos e rebuscados, alterando, em erudição abstrusa e elegante, nomes próprios: Aquiles e Agamenão tornavam-se Akhilleus e Againemnôn. [O tradutor francês J.C.] Mardrus também, em sua versão de ‘As Mil e uma Noites’, empregava frases sinuosas, erotizadas por adjetivos faiscantes como gemas.

A melhor maneira de ler ‘Os Sertões’ é em alguma velha edição, ainda na ortografia etimológica. Euclydes da Cunha gostava dos ph, th, y, k, w, ff, ll; essas formas cultas lhe pareciam conferir uma aura rara às palavras. Gostava ainda dos termos científicos esdrúxulos e dos períodos emaranhados.

Tudo isso faz parte do clima decadentista, no qual se misturavam o prazer do luxo refinado e a busca por sensações fortes, violência, crueldade, sangue, podridão. Mescla perversa e sofisticada.

Euclydes da Cunha encarnou, em sua vida, um personagem imerso nesse clima. Os episódios terríveis, míticos e falsos, contados a seu respeito, o bebê enterrado no quintal, os escarros sanguinolentos em uma bacia que ele teria forçado sua esposa doente a beber, parecem episódios de algum romance da época. Os fatos verdadeiros também, desde o gesto nervoso de revolta na Escola Militar [em 1888] até o trágico final, que se desdobrou em seu assassinato e no do filho pelo jovem amante da mulher.

JORGE COLI é professor de história da arte e da cultura na Universidade Estadual de Campinas.’

 

José Celso Martinez Corrêa

Mártir da sociedade patriarcal

‘Acima de tudo, Euclydes da Cunha foi e é poeta. Rimbaud dizia de seu poeta: ‘Eu é um Outro’. Esse Outro foi quem escreveu ‘Os Sertões’. Euclydes sentia-se atraído por viagens, não suportava o meio opressivo social patriarcal romano. Sentia sempre necessidade de escapar à captura da vida da corte, monarquista ou republicana.

Identificou-se com Antônio Maciel, que, para fugir da ‘vendeta’ que se exigia para o ‘corneado’ no Nordeste oligárquico, foi mudando de cidade em cidade com a sua ‘mulher de todos’ até ser abandonado por ela e ir para o deserto onde, buscando a paz, transfigurou-se em Antônio Conselheiro..

Antônio buscava a paz, mas seu destino trágico o atirou para uma guerra do Brasil inteiro contra o seu amado povo canudense. Euclydes, por sua vez, foi capturado pela ‘honradez’ da sociedade patriarcal que repudiava e entrou em ação no papel do ‘corno ofendido’.

Euclydes foi sacrificado tragicamente, há cem anos, por razões opostas às do Conselheiro. Ambos, entretanto, vítimas do mesmo velho direito romano de propriedade. Sua condição de ‘humano, demasiadamente humano’ paradoxalmente não rimou com ‘seu poeta’, ‘seu Outro’, este sim o vitorioso, um dos maiores poetas imortais do planeta Terra, que amou como quem ama uma mulher.

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA é diretor do teatro Oficina e montou, em 2002, adaptação do livro ‘Os Sertões’.’

 

José Murilo De Carvalho

Um homem fora do lugar

‘Mais do que ideias, há homens fora do lugar. Euclydes da Cunha foi, entre nós, o maior deles. Era um deslocado em tudo. No Exército, avesso que era à disciplina e à guerra. Na engenharia, que emperrava sua criatividade poética. No mundo rural, cuja monotonia o aborrecia. No ambiente falso e agitado das cidades, onde sonhava com a natureza, o sertão, a tebaida caipira, o deserto amazônico. No Brasil, onde se via como um grego perdido em Bizâncio. No mundo capitalista, cujo utilitarismo repugnava à sua ‘virtude ferocíssima de monge’. Na política, cujas práticas chocavam o seu idealismo quixotesco.

Um deslocado, afinal, na vida familiar, causa de seu trágico deslocamento da vida. Talvez só desse desajuste pudesse jorrar a obra cuja grandeza estava também no deslocamento, no rude e agressivo distanciamento do mundo intelectual em que vivia.

JOSÉ MURILO DE CARVALHO é historiador, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras.’

 

Walnice Nogueira Galvão

Irrequieto e aventureiro

‘O que pode haver de mais fascinante na personalidade de Euclydes da Cunha? Ser o autor de sua obra. Espírito irrequieto e índole aventuresca, nunca estava contente. Reclamava sem cessar do trabalho e da vida, almejava mudá-los, e, assim que mudava, recomeçava a reclamar. Seria sucessivamente cadete, engenheiro militar, engenheiro civil, repórter, explorador, cartógrafo adido ao Ministério das Relações Exteriores e professor; em caráter menos esporádico, escritor e articulista. Tentaria sem sucesso a política e o magistério, por várias vezes.

Deste último não chegou a se queixar porque não deu tempo: morreu meses depois de obter o cargo. Gostava mesmo era de embrenhar-se pelas entranhas do país, o que fez quando engenheiro pelo interior de São Paulo, como enviado a Canudos e como chefe da expedição de reconhecimento do Alto Purus. Sem dúvida, um homem interessante.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora de teoria literária na USP.’

 

Isabel Lustosa

O positivista indisciplinado

‘Em 1888, Euclydes da Cunha atirou sua espada aos pés do ministro da Guerra [do Império] como um gesto de protesto republicano. Era apenas uma amostra de seu temperamento. Algumas de suas características marcaram muitos dos jovens educados na escola do positivismo: a fé na ciência e no progresso que, por meio de um Estado forte (até mesmo uma ditadura), viabilizaria o Brasil. Eram rapazes sérios, secos, pouco afeitos à alegre sociabilidade da rua do Ouvidor. Impetuoso, firme na defesa do que considerava direito, foi várias vezes punido por indisciplina ou pediu demissão por discordar de seus chefes.

As condições trágicas de sua morte resultaram da concepção militar de honra, superior à glória que ainda estava destinado a alcançar.

ISABEL LUSTOSA é historiadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e autora de ‘Insultos Impressos – A Guerra dos Jornalistas na Independência’ (Cia. das Letras).’

 

Leopoldo Bernucci

Gênio vulnerável

‘Como entender que, na sua atribulada vida de engenheiro, pudesse Euclydes produzir um livro como ‘Os Sertões’, magníficos ensaios e outros textos notáveis? Como compreender ainda que, apesar de sua lamentável e dramática vida familiar, talvez decorrente do trauma de ser órfão de mãe e viver sempre longe do pai desde menino, pôde ele construir toda uma carreira intelectual que até hoje nos assombra?

Na sua tão curta vida de homem voltado para as ciências, houve fortes momentos de irracionalismo, que o fizeram emparelhar-se ao grupo dos gênios vulneráveis, homens que com muito esforço edificaram grandes obras, mas que no fim não conseguiram evitar os golpes de uma tragédia. Euclydes foi verdadeiramente um enigma.

LEOPOLDO BERNUCCI é professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, em Davis (EUA), e autor de ‘A Imitação dos Sentidos’ (Edusp), entre outros livros.’

 

Regina Abreu

Veredas dos Sertões

‘Quando o livro ‘Os Sertões’ foi lançado em 1902, na sede da editora Laemmert à rua dos Inválidos, no centro do Rio de Janeiro, ninguém supunha, nem mesmo seu autor, o sucesso de vendas e de crítica que adviria nos anos seguintes.

A surpresa foi tão grande que Sílvio Romero, um dos mais importantes críticos do período, assim se referiu à consagração súbita da obra e de seu autor: ‘De Euclydes da Cunha pode-se dizer que se deitou obscuro e acordou célebre com a publicação de ‘Os Sertões’.’ De 1902 a 1909, ano da trágica morte de Euclydes, o país conheceu três edições do livro, chegando a atingir 10 mil exemplares de venda. Num país onde se registrava 85% de taxa de analfabetismo, esse sucesso de vendas expressava efetivamente um best-seller.

É preciso ter claro que o autor debutava nas letras. ‘Os Sertões’ era seu primeiro livro e ele se via muito mais como engenheiro do que como escritor. A consagração súbita do livro teve pois um efeito no próprio autor, que, em carta a Araripe Jr., outro importante crítico do período, chegou a confessar que, após o êxito de sua primeira obra literária, ele, ‘que até então era um engenheiro letrado, com o defeito insanável de emparceirar às parcelas dos orçamentos as idealizações da arte’, tinha subitamente se transformado ‘num escritor apenas transitoriamente desgarrado na engenharia’. Ou seja, a consagração de ‘Os Sertões’ serviu também para dar à luz o escritor Euclydes da Cunha. A unanimidade em torno da relevância do livro foi tão grande que ele conheceu uma glorificação meteórica nos seus pouco mais de seis anos de vida posteriores ao lançamento.

Um dos coroamentos do sucesso veio em maio de 1903, com a nomeação para o cargo de sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição das mais renomadas na ocasião. Ainda no mesmo ano, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira que tinha Castro Alves como patrono.

O livro atravessou esses cem anos aureolado por crescente prestígio. Diversas enquetes realizadas em diferentes épocas com intelectuais têm apontado ‘Os Sertões’ como uma das obras mais representativas da cultura brasileira, uma espécie de ‘livro número 1’ indispensável para quem quer conhecer o Brasil. Chegou a ser chamado de ‘Bíblia da nacionalidade’, obra que expressa o dilema nacional, ou seja, que procura sinalizar características capazes de distinguir o país enquanto civilização nacional autêntica.

Leituras diversas

Independentemente das razões que cercam a unanimidade da crítica e do público em torno da obra-prima de Euclydes da Cunha, o interessante é perceber que estamos diante de um livro que foi adquirindo uma força simbólica capaz de desempenhar funções sociais que vão muito além de suas qualidades literárias ou científicas. O livro foi sendo investido de uma espécie de valor sagrado, tornando-se citação obrigatória da mais vasta gama de intelectuais brasileiros.

É interessante também acompanhar como, ao longo destes mais de cem anos, o livro foi servindo a diferentes leituras em função das mudanças de interesses no campo da literatura, da política e, sobretudo, da construção do Estado-nação. Podemos destacar alguns desses momentos.

Primeiro, o momento da consagração do livro no início do século 20. Os três críticos literários que guindaram o livro ao mais alto escalão, Araripe Jr., José Veríssimo e Sílvio Romero, tinham alguns pontos em comum: a origem provinciana e as crenças no valor da ciência e em uma sociedade regida pelos princípios do talento e do mérito.

A ‘trindade crítica do realismo’ mantinha vínculos importantes com os principais focos de renovação intelectual e política, compostos de intelectuais com pequeno capital social, na grande maioria vindos das diversas províncias espalhadas pelo território, que tomaram contato com o ideário científico em instituições como a Faculdade de Direito do Recife ou a Escola Militar no Rio. Esses críticos, além de apontarem as qualidades literárias do livro, apropriaram-se de seus aspectos mais contundentes, sublinhando a preeminência da natureza na formação da identidade nacional, sobretudo no sertanejismo.

Como ‘escritores sertanejos’, ou seja, como escritores que vinham do interior do país e que afirmavam na capital federal um olhar diferenciado e singular em oposição aos princípios da sociedade de corte que ainda vigoravam no país, esses críticos utilizam ‘Os Sertões’ como bandeira de uma cruzada pelo valor da ciência articulado com a aspiração de uma nova postura ética, o valor do talento e do mérito como princípios sociais reguladores. Euclydes da Cunha não tinha padrinhos, não fazia parte da roda de literatos da rua do Ouvidor. Euclydes representava um novo modelo de intelectual que apenas se esboçava. Foi isso que os críticos pressentiram.

Martírio

Um outro momento importante ocorre após a morte trágica do autor. A ocasião foi propícia para a construção do mito do mártir da nacionalidade, representação que se agregou ao escritor e que só foi ampliada nos anos que se seguiram.

Características marcantes de ‘Os Sertões’ eram associadas a aspectos da personalidade e da trajetória do escritor. Euclydes da Cunha passou a simbolizar a conciliação de vertentes de pensamento até então tidas como inconciliáveis.

A figura do engenheiro que se mesclava com a do escritor, construindo uma ponte metálica em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, de acordo com as tecnologias mais avançadas da técnica e da ciência, ao mesmo tempo em que escrevia um livro sobre as qualidades dos habitantes de uma região inóspita do interior do Brasil, passava a ser uma metáfora para aqueles que se dedicariam a pensar o Brasil daí em diante.

Euclydes da Cunha era apropriado como o escritor que sabia como nenhum outro conciliar os contrastes. Assim como o escritor, o Brasil era visto como terra de contrastes, país que era no mínimo dois e procurava a conciliação consigo mesmo, com suas metades, com suas múltiplas faces.

A polifonia do livro permitiu aproximações plurais, mas o que é mais significativo é a associação de ‘Os Sertões’ com a representação do próprio país. A ideia de uma obra aberta, uma Bíblia onde diferentes aspectos da nação podiam ser encontrados, inspira pensadores e políticos em todo o decorrer do século 20.

Um deles foi o pesquisador Edgar Roquette Pinto (1884-1954), que, entre suas muitas realizações, criou, na qualidade de diretor do Museu Nacional, uma sala em homenagem a Euclydes da Cunha ao lado da sala Humboldt. No dia da inauguração, Afrânio Peixoto estabeleceu uma analogia entre Euclydes da Cunha e os bandeirantes e tratou o livro ‘Os Sertões’ como instrumento para descobrir o Brasil.

Euclydes era apresentado como ‘o novo bandeirante de uma nova entrada para a alma da nacionalidade brasileira’. Mas o livro foi também apropriado para justificar políticas de Estado. Durante o Estado Novo, o governo federal tinha entre suas principais metas a virada para o interior, visando colonizar regiões ainda pouco exploradas. Essa meta foi explicitada por Cassiano Ricardo, um dos ideólogos do Estado Novo, num livro intitulado ‘A Marcha para o Oeste’.

Letras agrestes

Euclydes da Cunha foi tomado como símbolo da ‘tradição de bandeirar’, e ‘Os Sertões’, como roteiro para os ‘bandeirantes modernos’ do Estado Novo. A bandeira era tomada em sentido mítico. Existiria, assim, um ‘bandeirante anônimo caminhando no sangue de cada um de nós’. Cassiano Ricardo visava legitimar o projeto de colonização do interior instituído por Getúlio Vargas, que tomou a mesma denominação de seu livro.

Além de constituírem a primeira democracia nascida da terra e o primeiro governo independente de Portugal, as bandeiras teriam criado nossa geografia, unindo todas as raças e povoando nosso território.

Euclydes teria sido um bandeirante pioneiro. E isso por vários motivos: a insubmissão republicana; o estilo agreste e retorcido (escreve como um cipó); o físico (ele era um caipira, um mameluco, com cerdas de bororo); o modo como escreveu ‘Os Sertões’ (no rancho); a atitude de acompanhar o batalhão paulista a Canudos, como correspondente de guerra.

Mas é importante chamar a atenção para outras leituras de Euclydes da Cunha e de ‘Os Sertões’ que não se tornaram tão emblemáticas. No ensaio ‘Engenheiro Físico Alongado em Social e Humano’, Gilberto Freyre não trabalha com a oposição sertão versus litoral. Freyre parte da visão conciliatória, chegando mesmo a desconsiderar a importância de confrontar o sertão e o litoral..

Do seu ponto de vista, tratava-se de ‘unir-se o sertão com o litoral para a salvação do Brasil’, fazer ‘caminhos entre as cidades e os sertões’, criar comunicações entre o ‘deserto brasileiro’ e o ‘litoral agrário’. Para Freyre, a questão que se deduzia a partir da leitura de Euclydes era muito mais a necessidade de maior circulação entre as regiões do que a ideia de uma ‘marcha para oeste’ ou para dentro.

Se ‘Os Sertões’ vem representando uma unanimidade nacional em termos da importância conferida ao livro no contexto do pensamento social brasileiro, essa unanimidade é complexa, polissêmica e aberta a múltiplas e variadas interpretações. Talvez seja exatamente essa polifonia que faz de ‘Os Sertões’ e de seu autor elementos permanentes no imaginário nacional.

REGINA ABREU é antropóloga, professora da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e autora de ‘O Enigma de ‘Os Sertões’ (ed. Rocco).’

 

Saiba+

‘Os Sertões’ é o relato mais famoso da Guerra de Canudos (de novembro de 1896 a outubro de 1897), que terminou com o massacre pelas Forças Armadas do povoado liderado por Antônio Conselheiro (1830-97).

O livro de Euclydes da Cunha é dividido em três partes: ‘A Terra’, ‘O Homem’ e ‘A Luta’. A primeira descreve o clima semiárido, a caatinga e as secas.

A análise segue o cientificismo do século 19. Em ‘O Homem’, o autor faz um estudo do sertanejo ou, em suas palavras, dos ‘traços mais expressivos das sub-raças sertanejas’. Euclydes é influenciado pela tese de que Conselheiro sofresse de insanidade, expressa pelo médico Raimundo Nina Rodrigues em ‘A Loucura Epidêmica de Canudos’.

Ao narrar os combates, o escritor evidencia o fanatismo das partes: os soldados cultuavam a memória do marechal Floriano Peixoto assim como os jagunços aclamavam o Conselheiro.

Para o crítico Sergio Paulo Rouanet, o texto traz uma ‘dialética negativa’: opõe o arcaísmo a uma inexorável modernização, sem exaltá-la; mostra militares arcaicos impondo a modernidade de maneira brutal.’

 

Marco Antonio Villa

Um jornalista no front

‘Euclydes da Cunha colaborou para jornais desde o final do Segundo Reinado. Mas foi com o advento da República que passou a escrever de forma mais regular nos periódicos da capital federal e principalmente no ‘Estado de S. Paulo’. O maior conjunto de reportagens tratou da Guerra de Canudos. Até então, Euclydes era um engenheiro que trabalhava para o governo paulista e que tinha ficado conhecido por ter sido expulso da Escola Militar em 1888.

Entre março e outubro de 1897, publicou 34 artigos e reportagens em ‘O Estado de S. Paulo’ tratando do conflito. O primeiro a 14 de março. Deu o título de ‘A Nossa Vendeia’ [em referência à região que defendia a monarquia e resistiu à Revolução Francesa], imagem que não era nova: tinha sido utilizada em outro artigo, publicado em 1892, quando comentava o manifesto dos 13 generais contra a permanência de Floriano Peixoto na Presidência da República.

Não fez qualquer referência aos graves acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo, logo após a chegada das notícias da derrota da terceira expedição: jornais foram incendiados e saqueados e o coronel Gentil de Castro foi assassinado (em ‘Os Sertões’, Euclydes descreve esses acontecimentos, contudo omite o assassinato do coronel).

Naquele artigo, diferentemente de outros jornalistas, buscou as raízes da formação de Canudos e dos sertanejos, estes ainda descritos como ‘um tipo etnologicamente indefinido’.

Só voltou ao tema quatro meses depois, quando a quarta expedição, comandada pelo general Artur Oscar, cercava Canudos com milhares de soldados. Tudo indica que aproveitou para se preparar para a viagem e conseguir fazer parte da comitiva que levaria o marechal Carlos Machado Bittencourt, recém-nomeado ministro da Guerra, para Monte Santo, no sertão baiano, de onde organizaria a linha de abastecimento para as tropas que estavam combatendo em Canudos.

Diferentemente de outros jornalistas que cobriram o conflito (cerca de uma dúzia), Euclydes foi como adido do Estado-Maior do ministro da Guerra. Isso facilitou sua viagem e inclusive a curta estada (duas semanas) em Canudos, onde teve até um ordenança, concedido pelo general Artur Oscar, caso único entre os jornalistas.

A aventura

Entre a partida do Rio de Janeiro e a permanência em Salvador, foram publicados 11 artigos. Aproveitou para pesquisar sobre o sertão, a política baiana e a figura de Antônio Conselheiro, percorreu arquivos, visitou redações de jornais, conversou com intelectuais, foi aos hospitais onde estavam os feridos da guerra.

A melhor reportagem feita em Salvador foi a do dia 18 de agosto. Entrevistou um jaguncinho -expressão pela qual ficaram conhecidos as crianças e os adolescentes trazidos prisioneiros de Canudos- que veio para a capital baiana trazido pelo coronel Carlos Teles. Chamava-se Agostinho.

O garoto de 14 anos possibilitou que o jornalista pudesse conhecer detalhes da vida cotidiana do ‘arraial sinistro’. Para sua surpresa, o garoto informou que o Conselheiro não fazia milagres e negou que ele assegurasse ressuscitar os sertanejos mortos.

O líder de Canudos só prometia ‘salvar a alma’. Não é de estranhar que o escritor de ‘Os Sertões’ tenha suprimido Agostinho de seu livro. Afinal, salvar a alma não tinha nada de messiânico, nem de fanatismo: era parte do cristianismo tradicional sertanejo.

Registrou inúmeros dados e desenhou croquis em uma caderneta, sempre na expectativa de partir para Canudos.

No trajeto entre Salvador e Canudos, escreveu 13 artigos.. Demonstrava satisfação pelo conhecimento da natureza do sertão: ‘Entrei pela primeira vez nas caatingas, satisfazendo uma curiosidade ardente, longamente alimentada’.

Chegou ao acampamento das tropas que cercavam Canudos no dia 16 de setembro, 43 dias depois da partida da capital federal. De lá escreveu sete reportagens. Estava doente.

Ceou várias vezes com o general Artur Oscar. Reencontrou antigos companheiros da Escola Militar. Caminhou pela região, participou de interrogatórios de conselheiristas, desenhou maquetes do arraial e do entorno e efetuou inúmeras anotações.

O jornalista estava sendo substituído pelo escritor. Deixou de noticiar fatos importantíssimos, como a rendição de Antônio Beatinho, a 2 de outubro, a intensificação dos combates e a queda do arraial, a 5 de outubro.

Nota-se, consultando os exemplares de ‘O Estado de S. Paulo’, que o jornal foi obrigado a transcrever o noticiário dos jornais cariocas, na ausência de artigos de seu correspondente. Em parte, devido ao agravamento do estado de saúde do jornalista, o que o obrigou a se dirigir a Monte Santo antes do término da guerra.

As reportagens de Euclydes da Cunha, conhecidas como ‘Diário de uma Expedição’, não tiveram repercussão. Só ficaram efetivamente conhecidas quando foram editadas em forma de livro, em 1939, pela editora José Olympio, com uma longa introdução de Gilberto Freyre.

Os principais jornais brasileiros eram os cariocas, como ‘Gazeta de Notícias’, ‘Jornal do Commercio’, ‘A Notícia’ e ‘O País’. Estes enviaram correspondentes para o teatro de guerra. E foram aqueles que influenciaram a opinião pública. Um deles, Manoel Benício, do ‘Jornal do Commercio’, teve, inclusive, de regressar para a capital federal após fazer duras críticas ao comandante da quarta expedição.’

 

Folha de S. Paulo

Visões de Canudos

‘As razões para a Guerra de Canudos, no sertão baiano, variam de acordo com a interpretação dada aos documentos da época. Desde o final do século 19, grupos sociais diversos as explicaram de maneiras diferentes.

Para os grandes proprietários da região, o líder Antônio Conselheiro incentivava saques e invasões; para as autoridades republicanas, tratava-se de uma revolta monarquista; para cidadãos que acompanharam a campanha militar pelos jornais, tornou-se uma questão de honra.

Entre os historiadores surgiram variadas versões do Conselheiro, de manipulador de uma seita milenarista a revolucionário socialista. Atualmente, tem sido identificado como um líder comunitário, de uma cidade sem inovações especialmente revolucionárias, que se tornou um bode expiatório da aristocracia.

O beato Antônio Conselheiro se estabeleceu na região, com centenas de seguidores, em 1893. A figura do Conselheiro é por vezes associada ao messianismo, mas sobreviventes do conflito relataram que ele se apresentava apenas como um líder cristão leigo.

A República, instaurada em 1889, era ainda assimilada. A comunidade de Canudos, relativamente independente dos grandes proprietários da região, foi tachada antirrepublicana por seus adversários. Uma das explicações para o nascimento do conflito é a insatisfação de fazendeiros locais, que perdiam mão-de-obra barata, poucos anos depois do fim da escravidão, para o povoado de Canudos.

Acaso ou utopia

A vila seguia a tradição religiosa do trabalho comunitário. Ao longo do século 20, essa característica justificou sua associação ao comunismo e a diversas utopias. Professores ouvidos pela Folha rejeitam as explicações que veem em Canudos um ‘projeto’ social, por exemplo porque havia desigualdade interna.

Para Manuel Domingos Neto, da Universidade Federal Fluminense, ‘nenhuma análise tem levado em conta rigorosamente a crise da pecuária extensiva. Ao longo do século 19, houve muito deslocamento, muita mortandade -a seca de 1877 matou meio milhão de pessoas. A população já se deslocava. Poderia ser qualquer lugar -o Piauí era a região da pujança na época-, mas alguns foram para Canudos’.

Em 1896, um boato de que o Conselheiro planejava saquear comunidades vizinhas -ou cobrar à força uma dívida- ensejou a demonstração de poder por parte do Estado baiano. A primeira expedição -ou tentativa de restaurar a ordem- contra Canudos, liderada pelo tenente Pires Ferreira, foi derrotada.

Em janeiro de 1897, a segunda expedição, com centenas de homens sob o comando do major Febrônio de Brito, também fracassou. Canudos tornou-se falada por todo o Brasil. Na terceira expedição, também malsucedida, morreu o comandante das tropas, o coronel Moreira César.

Popularizou-se a imagem, nunca referendada, de que o Conselheiro representasse os interesses da princesa Isabel. Sob a bandeira de uma República ‘ameaçada’, entre 6.000 e 10 mil soldados rumaram a Canudos na quarta expedição, a partir de junho de 1897. Calcula-se que fossem dez vezes mais numerosos que os combatentes canudenses.

Com uma estrutura de guerra que incluía artilharia e avanço de soldados em duas colunas, o conflito durou até 5 de outubro. No dia seguinte, a vila foi incendiada.’

 

Marcos Strecker

Obras completas espelham mudanças recentes do país

‘No Brasil dos anos 60, o imaginário político era polarizado pelo discurso autoritário de direita e esquerda, as pesquisas universitárias ainda eram limitadas e a revolução sexual ainda se insinuava. Qual era o papel de Euclydes da Cunha?

Um livro é um livro e suas circunstâncias, e o contraste entre as duas edições das obras completas de Euclydes é um indicativo, ainda que imperfeito, de dois Brasis bem diferentes separados por 40 anos. A Nova Aguilar, a versão nacional da famosa coleção francesa Pléiade (edições compactas, em papel-bíblia, com bibliografia e fortuna crítica), lançou a primeira compilação de Euclydes em 1966, com organização de Afrânio Coutinho (1911-2000). A próxima chega às livrarias até o fim deste mês.

As diferenças são significativas. Para começar, a fortuna crítica precisou ser ‘zerada’. Para o organizador da nova edição, Paulo Roberto Pereira, 62, professor de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense, existia a necessidade nos anos 60 de se valorizar o aspecto ‘biográfico’ de Euclydes da Cunha.

Em outras palavras, na época, ainda era importante defender a ‘honra’ do autor que morreu confrontando o amante da sua mulher. ‘Em 66 havia a preocupação de preservar a memória do ‘homem’ Euclydes, incluindo uma preocupação com a traição da mulher’, diz Pereira. Por isso, a primeira edição ainda traz biografia laudatória, além de cartas anotadas afirmando que Euclydes não sabia da traição.

Inéditos

São argumentos que hoje soam risíveis. Nos anos 60, havia muito material inédito ou pouco conhecido do escritor. Só em 1975 foi publicada a ‘Caderneta de Campo’ (Cultrix), organizada por Olímpio de Souza Andrade e Joel Bicalho Tostes, com as anotações reunidas da Guerra de Canudos. Pereira reorganizou o material com os comentários explicativos dos organizadores.

O número de poemas conhecidos subiu de 37 para 52. A correspondência ativa, que havia somado 191 cartas em 1966, chegou a 397 no livro ‘Correspondência de Euclides da Cunha’ (Edusp), organizado por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti, em 1997, e agora alcançou a cifra de 419.

Pereira, que tem uma ‘euclidiana’ de 3.600 títulos, acrescenta que nos últimos 30 anos saíram ‘excelentes reedições’ dos principais livros de Euclydes, todas listadas. Para a nova compilação, segundo ele, ‘todos os livros estão revistos e confrontados com as melhores edições que existem’.

São 15 livros, cerca de 200 artigos de Euclydes e aproximadamente 600 trabalhos sobre o escritor, entre livros, ensaios e artigos.

Dando conta da profusão de estudos acadêmicos nas últimas décadas, o organizador reuniu uma seleção da crítica euclidiana que considera a mais representativa. Nela aparecem Walnice Nogueira Galvão (‘Polifonia e Paixão’), Alfredo Bosi (‘Canudos Não se Rendeu’), Augusto de Campos (‘Transertões’), Berthold Zilly (‘Uma Construção Simbólica da Nacionalidade num Mundo Transnacional’), Roberto Ventura (‘Euclides da Cunha e a República’) e Leopoldo M. Bernucci (‘Pressupostos Historiográficos para uma Leitura de ‘Os Sertões’), entre outros.

Na nova edição (em dois volumes, sem definição ainda de preço e número de páginas), não há biografia, mas uma cronologia da vida, com ‘tudo o que foi descoberto nos últimos 50 anos’. Foi revisado e ampliado um dicionário euclidiano de nomes próprios.

Como o enfoque é a obra do autor, e não a sua vida, não foram incluídas, por exemplo, as peças do julgamento do tenente Dilermando de Assis, amante de sua mulher Ana, reunidas em ‘Crônica de uma Tragédia Inesquecível’ (Albatroz/Loqüi/Terceiro Nome), uma novidade que só foi publicada tardiamente, em 2007.

Reavaliação biográfica

Para a nova edição da Nova Aguilar, além dos volumosos dados sobre Euclydes coligidos nos últimos 40 anos, uma reavaliação biográfica do próprio Euclydes foi possível.

Por exemplo: a tese de Roberto Ventura, que enfatizou o desencanto de Euclydes com a República, era de difícil assimilação nos anos 60, um momento em que as virtudes republicanas eram convenientes tanto para o regime militar (o progresso autoritário) como para a esquerda (que enxergava na República o evento libertador das forças produtivas).

Atualmente, o mito republicano já foi reavaliado, o que permite uma visão mais matizada da trajetória de Euclydes. Da mesma forma, o escritor experimentou de forma trágica uma série de reviravoltas em suas convicções que são mais facilmente compreensíveis pelo olhar contemporâneo, incluindo o início na ideologia positivista e o breve encantamento com o marxismo.

Euclydes era o autor de um discurso conservador e reformista que nos anos 60 era conveniente. Mas, para o imaginário político atual, certamente é menos importante.

Além disso, dos anos 60 para cá, o período que compreende os anos 30 substituiu o final do século 19 como manancial de estudos para a interpretação brasileira. Rui Barbosa e Euclydes foram substituídos por Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. A figura do mito de Euclydes virou um apêndice dos estudos sociais.’

 

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