Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Furacão e inundação não detêm imprensa

O furacão Katrina, que atingiu na semana passada os estados americanos da Louisiana, Mississippi e Alabama, deixou um rastro de destruição e morte. Em Nova Orleans, na Louisiana, os danos causados pelo furacão incluíram o rompimento de um dique. Construída abaixo do nível do rio Mississippi e do lago Pontchartrain, grande parte da cidade simplesmente inundou. Sem energia elétrica ou água corrente, os desabrigados se desesperaram com a falta de perspectiva de melhora da situação. Uma onda de violência tomou conta da cidade onde nasceu o jazz, com saques, pessoas armadas nas ruas alagadas e até relatos de estupros dentro do Superdome, estádio esportivo que abrigou mais de 20 mil pessoas nos dias que se seguiram à passagem devastadora do Katrina.


Em meio à catástrofe, a imprensa local também foi prejudicada. Com redações e gráficas inundadas e equipamentos danificados, profissionais de mídia abandonaram os jornais em papel e se refugiaram na internet no começo da semana passada, noticiam Steve Lohr e Felicia R. Lee [The New York Times, 31/8/05].


Apenas uma das quatro emissoras de televisão locais conseguiu ficar no ar nos dias em que o furacão passou pela cidade. A WWL, que pertence à Belo Corporation e é afiliada da CBS, utilizou uma torre de transmissão em uma nova instalação da companhia, na cidade de Gretna, e transportou seus jornalistas para o centro de comunicações da Universidade Estadual da Louisiana, na cidade de Baton Rouge.


Duas outras estações, afiliadas da Warner Brothers e da ABC, saíram do ar e puderam reportar apenas de seus sítios de internet, onde atualizaram dados sobre a previsão do tempo, filmagens e dicas sobre como agir diante do furacão. O mesmo fez a WDSU, afiliada da NBC. Além de distribuir suas operações para duas emissoras irmãs no Mississippi e na Flórida, a estação providenciou grande conteúdo em seu sítio, com notícias, fotos da AP e relatos de seus funcionários através de um blog.




O drama e a força de um jornal de Nova Orleans


O jornal Times-Picayune conseguiu, da mesma maneira, comunicar-se com os leitores. Com circulação de 270 mil cópias, o diário colocou uma edição eletrônica no ar na terça-feira (30/8) com uma manchete que resumia o impacto do furacão: ‘Catastrófico’. Os telefones da redação e o sistema de e-mail da companhia pararam de funcionar. Sem energia elétrica e dependendo de geradores, jornalistas, fotógrafos e suas famílias passaram a noite de segunda-feira (29/8) juntos dentro do prédio onde o jornal funcionava em Nova Orleans.


No dia seguinte, ao se darem conta de que o nível da água continuaria a subir, o editor Jim Amoss e o publisher Ashton Phelps Jr. estruturaram um plano para a retirada de todos do edifício usando os caminhões de entrega do jornal. A equipe e suas famílias foram levadas às pressas para as cidades de Houma e Baton Rouge, onde contam com o apoio do jornal The Courier e da Escola de Comunicação da Universidade Estadual da Louisiana. Sete jornalistas e dois fotógrafos retornaram para Nova Orleans para cobrir de perto a tragédia.


Muitos jornalistas passaram a semana em condições precárias, sem notícias de parentes e sem saber se ainda tinham casa. Pelo menos um repórter continua desaparecido. Mas o trabalho não parou. Foram três dias de edições online. O blog do Times-Picayune, em parceria com o sítio Nola.com, que opera a partir de Nova Jersey, publicou durante toda a semana contribuições de seus repórteres e fotos enviadas por ‘jornalistas cidadãos’. O fórum do sítio deu aos leitores um lugar para compartilhar dúvidas e informações, e já conta com mais de 17 mil mensagens postadas. Apenas no começo da semana passada, a página havia recebido 72 milhões de page views de internautas de todo o mundo. Só na sexta-feira, este número chegou a 30 milhões. Antes do furacão, o sítio recebia cerca de seis milhões de visitas por semana.


O Times-Picayune só voltou ser publicado em papel no fim da semana passada. Segundo nota do Los Angeles Times [2/9/05], o maior jornal da Louisiana imprimiu apenas 50 mil exemplares na sexta-feira (2/9), na gráfica do Courier. Eles foram distribuídos em áreas que estão ocupadas e acessíveis, e parte da impressão foi destinada a abrigos. Segundo Amoss, a procura pelo jornal foi grande, e a edição de segunda-feira (5/9) seria aumentada para 60 mil exemplares. Informações de Lisa Guernsey [The New York Times, 5/9/05].




Blogs trazem notícias e criam rede de esperança


Na terça-feira (30/8), grande parte dos telefones de Nova Orleans não funcionava, e a comunicação da imprensa local com outras regiões dos EUA teve que ser feita a partir de contas de e-mail pessoais de editores e repórteres.


Veículos de comunicação, entre eles o canal a cabo CNN e o jornal USA Today, também puseram no ar blogs sobre o Katrina, com reportagens e fóruns online. No sítio do MSNBC, foi disponibilizado um blog com relatos de correspondentes e comandado pelo âncora do noticiário Nightly News, da NBC, Brian Williams, que reportava diretamente de Nova Orleans.


Um grupo de blogueiros locais ofereceu aos internautas uma abordagem pessoal dos problemas causados pelo furacão. No sítio MetroBlogging, foram publicados relatos de pessoas que testemunharam a chegada da inundação e do caos a seus bairros. No New Orleans Refugees, foi formada uma rede de busca de pessoas que desapareceram após o desastre.


A procura por informações sobre o Katrina durante a passagem do furacão foi tão grande que congestionou alguns sítios de internet, como o do Weather Channel (canal de previsões do tempo), que ficou fora do ar por mais de três horas na noite de domingo (28/8). O sítio do Serviço Nacional de Previsão do Tempo dos EUA também foi afetado pela multidão de internautas que buscava dados sobre o assunto, assim como o da Cruz Vermelha e o de veículos de comunicação, como CNN e ABC News. Com informações de Alorie Gilbert [CNET, 29/8/05] e Gregg Keizer [TechWeb News, 30/8/05].




TV resgata preceitos básicos do jornalismo


Apesar de todas as dificuldades, repórteres e cinegrafistas se arriscaram para transmitir imagens e notícias da destruição causada pelo Katrina na semana da passagem do furacão. Segundo Robin Abcarian, em artigo no Los Angeles Times [2/9/05], as emissoras nacionais deram o máximo de si e conseguiram mostrar o melhor do jornalismo televisivo. Prejudicados pela falta de aparato técnico, os repórteres se concentraram em preceitos básicos do jornalismo: contar tudo o que sabem no momento, descrever tudo o que vêem, compartilhar o drama humano que se desenrola na frente de seus olhos.


Desta forma, telespectadores dos canais de notícias americanos puderam, além de acompanhar uma triste história contada em condições difíceis, testemunhar a emoção que os repórteres não conseguiam esconder. Em uma cena transmitida pela CNN, uma jornalista local, não identificada, chorava enquanto entrevistava um homem que acabava de perder sua mulher no meio da inundação. Há relatos de profissionais de imprensa que deram água potável e carona para pessoas em apuros, e outros que chegaram a emprestar seus telefones por satélite para que elas pudessem tentar localizar seus familiares. Repórteres em rede nacional cederam espaço para que pessoas desesperadas pudessem fazer apelos por parentes desaparecidos. E pelo menos um jornalista foi filmado resgatando um motorista preso em um carro no meio da correnteza.


Se este tipo de comportamento constitui uma quebra no ética profissional de um jornalista é uma questão discutível, afirma Abcarian. Mas é fato que fez com que a cobertura televisiva do drama das vítimas do furacão Katrina se tornasse muito poderosa, completa ele.


De acordo com Tom Rosenstiel, diretor do Project for Excellence in Journalism em Washington, estes são elementos que, se bem conduzidos, podem ajudar a melhorar o modo como o público percebe a imprensa. Ele ressalta que outro aspecto interessante da relação entre público e imprensa é que hoje, com a ajuda da comunicação via internet, há um diálogo maior. ‘Isso é jornalismo comunitário em escala nacional’, completa Rosenstiel.




Imagens levantam debate sobre racismo


Duas fotografias pós-Katrina divulgadas na internet na semana passada levantaram um debate sobre racismo na mídia, noticia Tânia Ralli, do New York Times [5/9/05]. A primeira, tirada pelo fotógrafo da Associated Press Dave Martin, mostrava um jovem negro andando na rua com água até o peito carregando uma caixa de refrigerantes e puxando uma bolsa inflável. A legenda dizia que ele teria acabado de ‘saquear um mercado’. A segunda foto, tirada pelo fotógrafo da Getty Images Chris Graythen e distribuída pela agência France-Presse, mostrava um casal branco, também com água até o peito, carregando algumas sacolas de comida. A legenda dizia que eles ‘teriam encontrado pão e refrigerantes em um mercado’.


Ambas as fotos foram divulgadas no Yahoo News. Logo depois, um usuário do sítio de compartilhamento de fotos Flickr colocou juntas as duas imagens e o contraste das legendas atraiu links de muitos blogs que discutiam o racismo na mídia. O blog Daily Kos afirmava: ‘Não é saque se você é branco’.


De acordo com as agências de notícias, cada fotógrafo é responsável pelas legendas das suas fotografias. Jack Stokes, porta-voz da AP, disse que os fotógrafos devem descrever o que eles testemunharam para escrever a legenda. Stokes afirmou que há parâmetros para distinguir entre ‘saquear’ e ‘carregar’. Se um fotógrafo vê uma pessoa entrar numa loja e sair com produtos, ela está saqueando. Caso contrário, ela está carregando. Neste caso, o fotógrafo Dave Martin disse que viu o homem entrar no mercado e sair com refrigerantes, portanto, segundo as definições da agência, ele saqueou.


O fotógrafo da Getty Images Chris Graythen disse por e-mail que ele pensou muito antes de escrever a legenda. Graythen disse que viu o casal na esquina de uma loja que estava com a porta aberta e cujos produtos estavam boiando na rua. Para o fotógrafo, nas condições críticas de Nova Orleans, pegar produtos como água e comida não pode ser considerado saque. Ele também viu pessoas saindo de lojas com computadores e DVDs, o que para ele é considerado saque. ‘Se você está pegando algo que requer eletricidade para funcionar, quando não vamos ter eletricidade por semanas, ou até meses, não há desculpas’, disse ele.


Três horas após a publicação online da foto de Graythen, editores da AFP reescreveram a legenda, mas a frase original permaneceu online por alguns dias no arquivo do Yahoo News. Na terça-feira (30/8), o diretor de multimídia da AFP, Olivier Calas, requisitou ao Yahoo a remoção da foto alegando falta de tempo para uma discussão mais aprofundada sobre a escolha das palavras, após ter recebido muitos e-mails reclamando da legenda. Agora, quando leitores fazem uma busca da foto do casal, encontram uma declaração de Neil Budde, gerente do Yahoo News, enfatizando que o sítio de notícias não escreve nem edita as legendas para que as fotos sejam divulgadas o mais rápido possível. O Yahoo acrescentou que lamenta que as fotos e suas legendas, vistas juntas, tenham sugerido uma abordagem racista.


Desde a publicação da foto, Graythen recebeu mais de 500 e-mails, a maioria apoiando a legenda. Para o fotógrafo, cujos pais e avós perderam a casa no furacão, ‘agora não é tempo de julgar aqueles que estão tentando ficar vivos. Não é tempo de discutir semanticamente sobre ‘encontrar’ e ‘saquear’. Agora não é tempo de discutir se é um assunto de negros contra brancos.’ Com informações da AP [2/9/05].