Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Imprensa mexicana aos trancos e barrancos

A síndrome (ou o efeito) Larry Rohter, aí incluídas revelações das humanas fraquezas dos poderosos de plantão, faz escola em países da América Latina agora em forma mais crível e menos perecível – em livro.


A jornalista argentina Olga Wornat, autora de uma obra anterior – La Jefa – pouco favorável ao presidente mexicano Vicente Fox e sua mulher, Marta Sahagún, passou a quinta e sexta-feira (28 e 29/4) caitituando nas emisoras de rádio da Cidade do México sua nova façanha editorial, Crónicas malditas desde un Mexico desolado (Grijalbo, México, 2005), do mesmo gênero, desta vez em cima dos três enteados presidenciais, filhos do primeiro casamento da primeira-dama, acusados de envolvimento em gordas negociatas ao redor do país, obviamente aproveitando-se da posição privilegiada da mãe e do padrasto.


Dos trinta e poucos noticiários de rádio da cidade, Olga visitou pelo menos os cinco mais importantes, com exceção do de maior audiência, conduzido pelo veterano jornalista Jacobo Zabludowsky, da Rádio Red, entre 13h e 15h, que, escorado em seu enorme prestígio e confiabilidade, costuma exigir exclusividade: a editora topou, marcou a entrevista para segunda-feira (2/5), mas, por alguma razão, não cumpriu: dias antes levara a autora aos concorrentes de Zabludowsky, que, sem passar recibo, limitou-se a dizer ‘allá ellos…’ (problema deles…’).


De fato, até que ponto estariam os ouvintes tão interessados em novas fofocas de estrangeiros sobre a malhada figura da primeira-dama mexicana, todos os dias na ponta dos lápis de fina crueldade, por assim dizer, dos grandes chargistas da imprensa local?


A propósito: na segunda-feira (2/5), a primeira-dama anunciou a abertura de um processo penal contra a jornalista argentina por ‘difamação, calúnia e injúria contra sua pessoa e sua família’. Olga Wornat, por sua vez, declarou aos telejornais de segunda que tem recebido ameaças de morte.


Vinte e cinco assassinatos


Enquanto o livro de Olga ensaiava esgotar-se na rede de lojas Sanborns, Marta Sahagún intensificava suas aparições públicas e anunciava o lançamento próximo de sua autobiografia, numa tentativa de neutralizar os possíveis estragos em sua já desgastada imagem por conta da nova e agressiva investida da jornalista argentina. (Desta vez, escaldada, Marta não abriu as portas da residência oficial e nem deu nomes e telefones de amigos para serem entrevistados.)


Ouvintes, telespectadores e leitores tinham boas razões para escolher, do variado e apimentado cardápio da semana, outros assuntos mais frescos e de maior interesse pessoal, entre eles a inquietante insegurança generalizada na cidade e no país, além da insidiosa corrupção em meios oficiais e privados.


E se tudo isso ocorre, como realmente ocorreu, no mundo do show business, do jornalismo e das altas finanças, melhor ainda. Regozijo geral – jornalistas à frente, tirando partido do clima de ampla liberdade de expressão, com menos tempo para pensar nos crescentes riscos do ofício, perseguido à morte pelo chamado crime organizado: 25 profissionais assassinados à queima-roupa nos últimos seis meses.


Sustos que matam


A televisão, com seu poder magnético de atrair e abobalhar ao mesmo tempo, acabou apresentando, de forma não programada mas muito bem manejada, além das telenovelas, programas cômicos e noticiários de rotina, dois acontecimentos de forte impacto e relevância – principalmente o primeiro, que consternou e indignou público, artistas, políticos, autoridades e empresários, provocando desolação e revolta por todos os lados da Cidade do México.


Na sexta-feira (29/4) à tarde, a atriz e apresentadora Mariana Levy, da poderosa rede Televisa, morreu, literalmente, de um susto, enfartada, nos braços do marido e na frente de filhos pequenos. Ao perceber que um malandro, tresoitão na cintura, rondava a perua da família, presa num engarrafamento em avenida de bairro chique (Lomas de Chapultepec), Mariana entrou em pânico, sentiu-se mal e já chegou sem vida a um hospital próximo.


Os quatro delinqüentes (outros três estavam de campana num carro) fugiram mas foram apanhados horas depois, numa rapidez e eficiência que surpreendeu todo mundo, pois as autoridades policiais da Cidade do México não gozam da mínima confiança do povão.


O curioso e patético do caso é que os tais delinqüentes, pelo menos em relação a Mariana Levy e sua família, não fizeram nada: não houve ameaças físicas ou verbais, não brandiram armas, não tocaram no carro. Contudo, e com justa razão, a simples presença de um estranho armado por perto, para todos os efeitos ameaçadora, aterrorizou a atriz, de 39 anos, provocando-lhe um enfarto fulminante. Atemorizada como andava, como muitas outras mães de família, com a crescente fragilidade da vida na capital mexicana e a grotesca ineficiência policial no combate ao crime.


Os delinqüentes, reconhecidos por várias testemunhas do incidente e vitimas anteriores, são donos de nutridos prontuários – assaltos a mão armada e roubos de carros –, e devem pegar pelo menos pegar 15 anos de cadeia.


A imprensa em geral deitou e rolou em cima dessa situação, deixando de lado, talvez por respeito a dor e a perplexidade da família da atriz (a mãe, Talina Fernández, é uma veterana figura de Televisa, mistura sólida de jornalista, atriz e apresentadora), o fato de que são pouco comuns os casos de morte súbita, por enfarto, nessa idade. Teria Mariana antecedentes cardiovasculares que poderiam desatar, a qualquer momento, um quadro clínico crítico, fatal?


A família evitou depoimentos, amigos também, a autópsia foi dispensada, caso encerrado e classificado como ‘muerte natural’. Muito por cima se mencionaram as longas e profundas crises depressivas da atriz, durante anos anoréxica e portanto presa fácil de problemas de saúde.


Ausência de malícia


Do mesmo lado do Periférico Sur (via rápida que circunda a cidade e ao longo da qual se encontram, a curta distância, as instalações das duas grandes emissoras rivais), a jornalista Lily Téllez, da TV Azteca, trabalha como repórter investigativa – uma das estrelas da casa. Senhora jovem, de gestos delicados, séria e competente mas sem brilho, persegue, como outros colegas, a notoriedade rápida e ilusória dada pelo veículo. (Quantos casos semelhantes conhecemos no Brasil?)


Incansável e pertinaz, sempre atrás de matérias exclusivas, Lily teve no passado sérios problemas com as autoridades e acabou alvo de um atentado a bala, atribuído diretamente ao então Procurador-Geral do governo da cidade, Samuel del Villar, há pouco falecido. Na condição de suposta vítima dos poderes estabelecidos, ela até que saiu-se bem, passando por heroína aos olhos de um público desconhecedor dos mecanismos desse tipo de incidente, que, bem trabalhado, dá um bom impulso as carreiras jornalísticas.


Pelo jeito, Lily agora exagerou na dose de ambição e cometeu um erro que pode afetar seriamente sua carreira – o risco de perder a credibilidade junto ao público e o respeito dos próprios companheiros de profissão. De certa forma, pouco dotada da malícia própria de um bom repórter, talvez pressionada por circunstâncias internas, ela fez publicamente o jogo do patrão, saindo em sua defesa mal municiada e sobretudo entrando em briga de peixes graúdos, sem conhecer a fundo os interesses ocultos, de milhões de dólares, de ambas as partes. Os coleguinhas não a perdoaram na coletiva da semana passada, quando a TV Azteca tentou explicar à opinião pública a sua versão dos fatos.


Em resumo: o patrão, dono da Azteca, Ricardo Salinas Pliego, não é, esclareça-se, nenhum delinqüente de colarinho branco. É, isso sim, como tantos outros, um ousado e veloz homem de negócios, dono de um império (lojas de eletrodomésticos, empresas de telecomunicações, banco, emissoras de TV) que, com freqüência, se arrisca e aposta em altíssimas jogadas nos mercados internacionais, passíveis de ser consideradas, como foi o caso, ilegais em países como os Estados Unidos.


Ele teria, segundo as acusações dos gringos, cometido fraude (com o uso de informação privilegiada) na bolsa de Nova York no valor de 109 milhões de dólares, e agora é investigado pelas autoridades da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão equivalente à Comissão de Valores Mobiliários brasileira. Pliego enfrenta, portanto, sérios problemas legais, fiscais e financeiros, dentro e fora do México, que colocam em risco até mesmo suas empresas: as ações do grupo caíram feio devido ao imbróglio.


De repente, sem mais nem menos, as duas emissoras de TV de Salinas Pliego começam a anunciar com mais força um programa já existente, Mitos y Realidades, investigado, escrito e apresentado por Lily Téllez, agora tirando da gaveta os manjados escândalos bancários dos anos 1990, iniciados com a venda de um grande banco privado local, Banamex, ao CitiGroup de Nova York. Por trás do Banamex, como executivo de alto nível, estava então o atual ministro da Fazenda e Crédito Público, o economista Francisco Gil Diaz – amigo e conselheiro do proprietário Roberto Hernández, que vendia, e muito bem, o seu mais que próspero negócio.


O programa foi ao ar, Gil Diaz enfureceu-se, negou o quanto pôde, e abriu processo penal contra a TV Azteca por quebra de sigilo (uso de informação confidencial, exclusiva da Fazenda, material quentíssimo sobre as grandes e controvertidas transações bancárias recentes com sócios estrangeiros). A emissora revida agora com outra ação, alegando que o governo, num flagrante abuso de poder, tenta de novo implantar ‘la ley mordaza’. Era plano da empresa, em outros programas da série, continuar com as denúncias sobre o mundo bancário mexicano, hoje nas mãos de grupos ingleses, espanhóis e americanos.


Para culminar, numa decisão infeliz, a emissora coloca Lily Téllez sozinha, sem o apoio de algum executivo de peso, numa concorrida coletiva, ruidosamente transmitida pela emissora, para defender a matéria e denunciar à opinião pública os supostos desmandos do ministro da Fazenda, ‘atentatórios à liberdade de expressão’. Nas mãos trêmulas, hesitante, Téllez mostrava, de longe, aos jornalistas presentes, um documento que seria a prova irrefutável das ameaças do ministro, incluindo severa retaliação fiscal contra a empresa, notória devedora de impostos.Documento, pasmem, sem a assinatura do ministro, ‘mas com suas impressões digitais…’, repetia, voz e tom monocórdios, a jornalista.


A essa altura, os colegas de Lily Téllez, impacientes e céticos, começaram a questionar sua credibilidade e principalmente seu papel, lamentável e medíocre, de porta- voz do patrão, deixando-se manipular assim, de forma tão grosseira, numa confusão permeada de furos e inconsistências dos dois lados. Incapaz de reagir com a agressividade necessária ao momento, e sem dados para sustentar os argumentos da empresa, Lily Téllez saiu da sala, mais solitária do que havia entrado, visivelmente constrangida, com toda certeza pensando em seu futuro profissional.


Boas noticias, por favor


A semana, enfim, não terminou tão mal, tanto para os cidadãos como para os jornalistas mexicanos. A Câmara dos Deputados aprovou a Nova Lei de Armas de Fogo e Explosivos, que permite, de agora em diante, a possessão de armas em domicílios particulares. Com a devida licença das autoridades policiais e do Exército, os cidadãos poderão ter em casa, para sua proteção e da família, armas de vários calibres.


Por outro lado, o Senado mexicano aprovou reforma no Código Penal e no Código Federal de Procedimentos Penais que garante aos jornalistas e comunicadores o direito ao segredo profissional sobre suas fontes de informação, desde que esta tenha sido fornecida com caráter de reservada.


As duas medidas, como não poderia ser diferente, já provocam acirradas discussões contra e a favor, mas, defeitos à parte e prováveis retificações futuras no texto das leis, representam um enorme avanço na luta contra o crime e a impunidade dos criminosos e seus mandantes.

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Jornalista, escritor e tradutor brasileiro radicado na Cidade do México