Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa mexicana sob fogo cerrado

Até há pouco o presidente mexicano Vicente Fox se proclamava um férreo defensor da liberdade de expressão no país, garantida por seu governo. ‘Critiquem a vontade’, dizia ele, ‘hoje estamos numa autêntica democracia, não voltaremos jamais as práticas restritivas do passado.’ Muito bem, os meios de comunicação levaram a mensagem do Palácio de Los Pinos ao pé da letra e soltaram toda a corda, com resultados não poucas vezes excessivos, no mínimo embaraçosos.

Pois agora, cansado de tantos e pesados ataques aos seus primeiros três anos de gestão, nos últimos tempos mais dirigidos ao comportamento político de sua mulher, Marta Sahagún, Fox acaba de instruir seu Diretor de Comunicação Social, Alfonso Durazo (e este às demais dependências federais), para não liberar verbas oficiais publicitárias aos veículos que ‘publiquem informação mentirosa ou imprecisa.’ Isso do lado de dentro do poder.

Do lado de fora, nas ruas e locais públicos, jornalistas — o pessoal de rádio e tevê principalmente — sofrem todo tipo de agressões, verbais e físicas: guarda-costas de cantora enlouquece e, arma na mão, ameaça os presentes numa coletiva; casamento de vedete do rebolado acaba em tremenda pancadaria entre jornalistas e seguranças dos anfitriões; jogador de futebol famoso empurra e dá socos num paparazzi, na saída de um restaurante da moda; estrelas de televisão fazem gestos obscenos e insultam repórteres, ‘mentandoles la madre’ (xingando a mãe); jornalista polêmica esbofeteia um colega perguntão dentro de delegacia, ao fim de um interrogatório.

Não há dúvida: fazer jornalismo no México, sobretudo na área política, de esportes e de variedades, onde brilham figuras conhecidas do público, ficou mais difícil de uns tempos para cá, revelando, por parte dos agressores, um acentuado grau de irritação e impaciência, como se quisessem dar, com suas reações extremas diante de luzes e câmeras, uma espécie de basta. Alegam haver um limite ético para as críticas aos governantes. Mais, vida privada é vida privada, celebridades não têm nenhuma obrigação de contar intimidades aos fans, sobretudo suas preferências sexuais, as plásticas de bunda e busto, os planos de divórcio e novo casamento.

E como a imprensa de modo geral não tolera críticas vindas do próprio setor e muito menos as de fora, a situação se torna mais complicada, pois os jornalistas se defendem, indignados, com o argumento de uma flagrante violação da liberdade de expressão, retocada e finalizada, a duras penas, justamente no governo do presidente Fox. É dele, por exemplo, partindo de uma proposta do jornalão El Universal, a criação, meio a contragosto, de uma Lei Federal de Transparência, que permite a sociedade em geral o acesso e consulta aos arquivos e documentação oficiais.

Mal estar generalizado

Embora os choques entre os famosos e os jornalistas não tenham relação direta com a decisão do governo de condicionar as verbas publicitárias oficiais ao bom mocismo da imprensa, o fato é que paira no ar um crescente mal estar generalizado de ambas as partes. Começando pelos meios de comunicação, durante 71 anos amordaçados por uma ditadura partidária, a do PRI, e que agora, em pleno gozo dos benefícios de um sistema democrático, ainda não sabem dosar bem essa liberdade. Hoje, jornais, rádios e televisões dizem o que querem do presidente, tanto de sua condução dos negócios de Estado como dos problemas de sua família, no caso em pauta, as descaradas e para muitos imprudentes ambições presidenciais da primeira-dama, que irritam oposição, meios intelectuais e acadêmicos, comentaristas políticos.

E como não existe no país uma lei específica para punir os delitos de imprensa e o clima atual não é tão propício como antes para os clássicos atracos (ainda acontecem no interior do país) — ameaças de espancamento ou morte, atropelamentos na calada da noite, perda de emprego por pressões de cima —, o poder, na falta de especialistas em comunicação competentes, apela para o recurso mais a mão e de eficácia geralmente comprovada, o econômico, no caso de Fox desonrando as promessas grandiloquentes de campanha, baseadas no slogan El Gobierno del Cambio (O Governo das Mudanças). E, afinal, como avaliar de forma adequada o que é uma informação mentirosa ou imprecisa? Aquela que contraria a verborragia e demagogia oficiais? É o que perguntam alguns analistas.

Na verdade, a decisão de Fox de castigar os donos de jornais e televisões onde mais dói, no bolso e no caixa, não é nenhuma novidade no sistema político mexicano, sobretudo em governos anteriores recentes — o de José López Portillo e Miguel de la Madrid — que tentaram liquidar publicações importantes como a revista semanal Proceso e o jornal de economia El Financiero, cortando-lhes as gordas verbas oficiais de então, dificultando-lhes a vida, é certo, mas no final não atingindo o objetivo. No governo de Carlos Salinas, as verbas caíram em 50%, no de Ernesto Zedillo essa porcentagem subiu um pouco mais.

São hoje parte do folclore político mexicano as frases de López Portillo (morto aos 83 anos, na última quinta-feira), que dizia ‘No les pago para que me peguen‘ (Não lhes pago para que me batam), e a de Salinas: ‘Nos los veo ni los escucho‘ (Não os vejo nem os escuto). Fox garantiu que acabaria com tudo isso, no mínimo faria uma distribuição equitativa das verbas publicitárias mas, dizem colunistas políticos influentes, está mostrando agora sua verdadeira cara: a de um presidente que não entende no fundo o que é liberdade de expressão, e a de um marido inconformado, transtornado até com o tratamento dado pela imprensa a sua mulher.

De fato, Marta Sahagún é muito mais que uma tradicional e simples primeira-dama, ocupada exclusivamente com os problemas sociais do país. Ao lado de Fox há muitos anos, desde seus primeiros tempos na política, Marta veio assumindo em meses mais recentes um incômodo papel protagonista no governo, não só participando, nos bastidores, das decisões oficiais, nesse processo se indispondo com ministros e secretários, como aos poucos insinuando, em seus discursos institucionais pelo país, suas ambições políticas rumo a presidência em 2006. Por meio de um acordo com duas televisoras importantes, Televisa e Azteca, aparece com freqüência na telinha, até em programas de culinária: outro dia ensinou uma de suas receitas, peito de frango a Presidente, segundo ela, um dos pratos preferidos do marido.

As reações em contra esse espetáculo constrangedor, gozadoras e virulentas, vêm de todo lado, incluindo de mulheres de alto nível, como a escritora Guadalupe Loaeza e a cientista política Denise Dresser, que em suas colunas semanais no jornal Reforma dizem, de forma agressiva e até pouco elegante, não ter Marta mínimas qualificações para tão alta função — nem políticas e muito menos intelectuais. Além do mais, se eleita, representaria uma continuação do chamado foxismo, simbolicamente infringindo a letra constitucional mexicana que reza, ‘No reelección, sufragio universal‘ (Não reeleição, sufrágio universal).

Tão ruim tem sido a repercussão dessas atitudes desastrosas — de um lado ela, pertinaz, obsessiva, frívola — e de outro, seus adversários, alguns cheios de ira, ofensivos, que há poucos dias Marta anunciou seu afastamento de suas supostas atividades políticas, só se dedicando, de agora em diante, jura, às obrigações de primeira-dama, com ênfase ‘no projeto de nação de seu marido’ e na direção da Fundação Vamos México, por ela idealizada e posta em funcionamento. Foi essa fundação, aliás, que precipitou os escândalos mais recentes em torno de Marta.

Financial Times denuncia Marta

De fato, matéria do Financial Times denunciou, semanas atrás, o desvio de verbas públicas para a tal Fundação, em seguida aproveitados na pré-campanha política da primeira-dama. Em seu estilo aparentemente inócuo e modesto, de parco vocabulário, ela negou tudo, mas a Câmara dos Deputados mandou fazer um auditoria para esclarecer a situação. Fox, como era óbvio, embora se diga de acordo com o auditoria, saiu na defesa da mulher em seu programa de rádio dos sábados. Mas, perguntam seus adversários, com que moral ele defende a mulher se também é autor de uma daquelas frases de efeito sobre a imprensa: ‘No lea para que viva bien‘(Não leia para viver bem).

Contudo, pressionados por esse tiroteio cerrado, de todos os setores nacionais, o casal presidencial resolveu dar um descanso: ela agora vai sair de cena, mas logo depois foi fotografada descendo de um helicóptero da presidência da República em uma de suas ‘viagens de trabalho’.

Pergunta o jornalista Raymundo Riva Palácio, respeitado analista dos meios de comunicação e diretor de redação do jornal El Independiente: ‘Terá o presidente considerado que o silêncio de sua mulher podia ser uma boa medida para começar a acalmar os ânimos?’.

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jornalista e escritor brasileiro radicado no México