Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Joaquim Vieira

‘Um jornal de referência, sendo um registo para a História, deve empenhar-se em eliminar todos os aspectos dúbios das suas notícias

Enquanto dizia que ‘não licenciou nem tinha que licenciar’, o ICNB admitia ter dúvidas sobre a natureza da obra

Discute-se muito por estes dias as formas de contornar as limitações à construção em zonas protegidas, quase sempre em orlas marítimas ou fluviais, isto é, praticamente sobre praias. O provedor aproveita para abordar um assunto que corre nos bastidores do PÚBLICO desde Outubro último sem ter tido ainda desfecho.

A origem foi a notícia ‘Casa em construção numa falésia põe a nu contradições do ordenamento do território’, do jornalista Carlos Dias (C.D.), publicada na secção local da edição Lisboa do PÚBLICO de 27 de Outubro (pág. 20). A falésia em questão situa-se na Zambujeira do Mar, concelho de Odemira, e o repórter ouviu a reacção oficial do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICBN), que, segundo o texto, ‘diz que não ‘licenciou nem tinha que licenciar’ o projecto de habitação na falésia, alegando tratar-se de obra em perímetro urbano onde ‘não se aplica o Plano de Ordenamento do PNSACV [Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina]’’. C.D. adiantava porém que ‘o decreto Regulamentar 33/95 sujeita à aprovação do PNSACV – na dependência do ICBN – ‘as acções que impliquem a alteração das praias, dunas, arribas e da plataforma marítima’’.

No mesmo dia, a assessora de imprensa do ICBN, Sandra Moutinho [S.M.], enviou ao director do PÚBLICO, com conhecimento do provedor, ‘uma nota de correcção’ acusando C.D. de fazer ‘uma leitura errónea do Plano de Ordenamento do PNSACV’. Adiantava S.M.: ‘Logo na primeira das respostas enviadas [a C.D., na fase de elaboração da notícia], encontra-se o esclarecimento que impediria este grosso erro de leitura do conteúdo do Plano de Ordenamento da Área Protegida, que deturpa a compreensão pelos leitores do processo de decisão sobre este assunto, e que transcrevo: ‘Nem este ICNB nem a anterior Comissão Directiva do PNSACV emitiram qualquer autorização e/ou parecer no âmbito do processo de licenciamento da obra (…); é que, a ser verdade, como terá afirmado aquela Autarquia, que tal obra se localiza (…) no Perímetro Urbano aprovado pelo PDM de Odemira e pelo Plano de Urbanização em vigor para a localidade de Zambujeira do Mar, tal facto implica que, em princípio, o ICNB/PNSACV não teria, legalmente, que pronunciar-se (no sentido de autorizar, aprovar, ou emitir parecer favorável, ou não) sobre o licenciamento da mesma’. A resposta citava depois os diplomas que só obrigam o ICBN a pronunciar-se acerca de construções ‘fora das áreas urbanas’.

Antes de qualquer outra diligência, o provedor inquiriu junto do editor responsável pela página de correcções no PÚBLICO se estava prevista a publicação da nota do ICBN. A resposta veio do director, esclarecendo existir um problema: aquilo que S.M. lhe dissera que enviara a C.D. era diferente do que o jornalista efectivamente recebera. J.M.F. acrescentou que teria primeiro de esclarecer junto de S.M. a discrepância de respostas.

Na verdade, o editor da secção local, Carlos Filipe, não deixara de assinalar essa discrepância, em nota enviada a José Manuel Fernandes (J.M.F.): ‘É com grande estranheza que tanto eu, que editei a peça, como o autor lemos o teor da resposta do ICNB. (…) As respostas às questões solicitadas pelo C.D. são diferentes daquelas que foram enviadas posteriormente pelo ICNB ao director e ao provedor (…). Tanta certeza de que a interpretação foi ‘errónea’ leva-nos a apontar, com estranheza, o que diz (…) a segunda resposta do ICNB (…): é taxativo ao afirmar que ‘não licenciou nem tinha que licenciar’, (…) mas admite verificar, a posteriori, se está ou não em perímetro urbano. Conclusão: o que se percebe do texto é que há grandes contradições no ordenamento do território – e é o que diz o título –, pelo menos naquela zona. Não criadas pelo PÚBLICO ou pelo autor da peça. E, salvo melhor entendimento, parece-nos que essas contradições não caíram bem no ICNB, ou a quem facultou as primeiras respostas’. O editor sustenta ainda que as respostas do ICNB, apesar das diferenças, ‘em génese, não alteram o que foi escrito’.

A explicação da assessora do ICNB, enviada a J.M.F. com conhecimento do provedor, admitiu o que terá sido um lapso: ‘O texto que enviei (…) é o meu documento técnico de trabalho, da autoria de um nosso jurista, e não o texto que depois seguiu para C.D. (…) No entanto, não existem diferenças significativas entre os dois textos, o documento final é mais reduzido, foi eliminado algum conteúdo que me parecia excessivo. Por isso, no que importa para a questão, está lá tudo na mesma. (…)

Quando C.D. diz na notícia que o documento legal que contém o Ordenamento do Parque Natural do Sudoeste Alentejano sujeita à aprovação do ICNB o tipo de construção que é o alvo da notícia, está a cometer o erro crítico – é que não é assim, como se pode ver no referido Decreto Regulamentar: ‘Sem prejuízo dos restantes condicionalismos legais, carecem de autorização da comissão directiva do Parque Natural: a) O licenciamento de obras de construção civil, designadamente novos edifícios, reconstrução, ampliação, alteração, demolição de edifícios, trabalhos que impliquem alterações da topografia local fora das áreas urbanas existentes definidas no presente Plano, dos perímetros urbanos delimitados nos planos municipais de ordenamento do território legalmente eficazes e das áreas de jurisdição portuária’. (…) A diferença entre o que C.D. diz e a realidade separa a responsabilidade do ICNB no licenciamento desta construção – que não existe, mas existiria se tivéssemos de nos pronunciar’.

De qualquer modo, deve dizer-se, como bem notou o editor da secção Local, que o engano havido da parte de S.M., enviando para o director o rascunho do que deveria ser a resposta a C.D. em vez daquela que acabou por lhe ser remetida, enfraqueceu a posição do ICNB, já que, ao mesmo tempo que garantia que ‘não licenciou nem tinha que licenciar’ (texto enviado a C.D.), este organismo estatal prometia (texto enviado a J.M.F.): ‘No sentido de dilucidar todas as dúvidas que possam subsistir nesta matéria, vamos diligenciar junto da CMO [Câmara Municipal de Odemira] para que nos envie as plantas de localização e de implantação desta obra, bem como a certidão de registo predial do respectivo prédio, ou prédios – após o que, se for caso disso, o ICNB não deixará de agir em conformidade’ (diligências que, aliás, não se sabe se foram feitas nem, em caso afirmativo, que resultados produziram).

Em posteriores contactos com J.M.F., o provedor foi sendo informado da possibilidade de se chegar a um acordo entre o PÚBLICO e o ICNB para a publicação de um esclarecimento, o que porém não chegou a verificar-se, aparentemente devido ao arrastamento da situação. Em face das circunstâncias, compreende-se que o jornal não se sentisse vinculado a publicar um desmentido que era em si mesmo incongruente, mas, ao mesmo tempo, lamenta-se que a posição do ICNB no imbróglio não tivesse ficado mais bem clarificada, já que essa é a obrigação de um jornal de referência.

CAIXA:

O direito à felicidade

O leitor Jorge Guimarães (J.G.) reclamou junto do provedor por ter ficado sem resposta uma correcção que enviara ao editorial de 10 de Dezembro, assinado pelo director do PÚBLICO, relativamente a uma passagem onde J.M.F. citava Paulo Escarameia, falando ‘do direito à felicidade, constante das declarações americanas do século XVIII’, e acrescentava: ‘Estava no Bill of Rights que inspirou a revolução americana’. Esclarecia J.G.: ‘Estranhei, e fui verificar. De facto, este ‘direito’ não consta no Bill of Rights (os primeiros dez aditamentos à Constituição dos EUA), mas sim na Declaração de Independência, com uma

importante diferença: não garante o direito à felicidade, o que seria tão utópico como garantir o direito à prosperidade, mas sim o direito à procura da felicidade (‘the pursuit of happiness’) – o que é outra coisa’.

O provedor inquiriu junto de J.M.F. se tencionava fazer a correcção, e o director respondeu: ‘Eu fiz um ‘PÚBLICO errou’.’ Disso foi informado J.G. pelo provedor, com a informação de que fazia fé na declaração do director e que posteriormente procuraria saber o dia em que a rectificação fora publicada. J.G. respondeu porém que era leitor habitual do jornal e que não se recordava da saída da correcção. Efectuado o levantamento das edições posteriores a 10 de Dezembro, o provedor concluiu que J.G. tinha razão, disso tendo informado J.M.F. O director respondeu então: ‘Fui verificar. Não saiu. Há uma rotina para colocar os ‘PÚBLICO errou’ numa determinada pasta do sistema, que deve ser limpa todos os dias para não se repetirem correcções de erros. Pelo que apurei, devo ter colocado lá a nota sobre o erro no editorial (um lapso meu, que não fui confirmar o nome do documento fundacional dos Estados Unidos onde se referia o direito a tentar ser feliz) antes da operação de ‘limpeza’, pelo que ela foi apagada por engano antes de ser paginada. A próxima vez que me referir ao tema (não é a primeira vez que chamo a atenção para a particularidade dos documentos fundacionais dos EUA conterem uma referência à felicidade individual), farei uma correcção, remetendo para o editorial em que cometi o erro. Parece-me melhor do que editar agora o PÚBLICO errou que devia ter saído a 12 de Dezembro’.

Dado que tanto a palavra do director como a do provedor estavam em causa perante o leitor, não será necessário esperar por novo editorial de J.M.F., ficando a correcção já efectuada, ao fim de uma semana em que os americanos, aliás, pareceram apostados em fazer avançar essa disposição constitucional. Mas o provedor interroga-se sobre quantas mais rectificações não terão sido engolidas pelo sistema informático do PÚBLICO devido a estas ‘operações de limpeza por engano’.’