Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Joaquim Vieira

‘Alguns leitores sentiram-se incomodados pela cobertura do PÚBLICO ao caso Freeport – a polémica aprovação sob a responsabilidade de José Sócrates, enquanto ministro do Ambiente, em vésperas das eleições legislativas de 2002, de um centro comercial na Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, em Alcochete.

‘Na altura em que corre uma investigação judicial – e isto acontece repetidamente – os meios de comunicação (esse jornal incluído) criam um ambiente, um clima de suspeição tal que os nomes das personalidades apresentadas já aparecem como praticamente julgadas e condenadas’, escreve Maria Luiza Sarsfield Cabral, sintetizando o pensamento dos leitores que reclamaram. ‘Tomo como exemplo (por entre muitos outros…) o PÚBLICO de 30 de Janeiro, que vem repleto com o caso Freeport – 1ª pág., 2ª pág., 3ª pág., 4ª pág., 5ª pág. Cinco páginas quase inteiramente orientadas no sentido de formar a suspeição… – e, no fundo da pag. 4, como se fosse indiferente, talvez coisa de somenos, aparece então, em letra pequena, o texto integral do comunicado do procurador da República… Como é possível?’

‘Durante uma semana o PÚBLICO ‘encheu’ – é o termo adequado e necessário – , quase na totalidade, as primeiras páginas com o caso Freeport e o primeiro-ministro’, constata Augusto Küttner de Magalhães. ‘Por vezes a qualidadade não joga com a quantidade e o inverso também é verdadeiro, e torna-se espantoso ir a uma banca de jornais e ver todas as primeiras páginas de todos os jornais com o mesmo tema, e só o mesmo, e espantosamente também o PÚBLICO, que costuma primar pela diferença, pela maior discrição! (…) Se a ideia única é transmitir culpa de actos do actual primeiro-ministro, talvez tenha em parte conseguido, mas isso fica melhor ser feito por outros jornais que não necessária nem obrigatoriamente o PÚBLICO’. E avisa Sérgio Brito: ‘Lá estão os ditos jornais de referência invocando a ‘liberdade, a verdade, a responsabilidade’, mas afinal o que os move é ‘a raiva’ (…), sendo verdade que esta pode matar o portador!’

Para o provedor, o assunto não é de somenos: envolve o nosso principal governante num acto cujas motivações políticas, apesar do estardalhaço criado à volta das ‘campanhas negras’ (ou talvez por isso mesmo), ainda estão longe da clarificação, além de não se poder ignorar que o seu nome figura em processos por suspeitas de corrupção que estão em curso em Portugal e na Grã-Bretanha. Ou seja, o futuro deste país depende do desfecho do caso. Razão de sobra para o destaque que a imprensa ‘de referência’ lhe dá.

‘Sendo José Sócrates primeiro-ministro, é uma figura pública que deve ser sujeito ao mais rigoroso escrutínio no que diz respeito à sua vida pública, algo que este jornal nunca deixou de fazer quando encontrou situações duvidosas (foi no PÚBLICO, por exemplo, que se contou pela primeira vez um dos casos que envolvem o autarca do PSD Isaltino Morais, hoje em julgamento)’, defende o director deste jornal, solicitado pelo provedor a responder às reclamações dos leitores. ‘O caso Freeport é de indiscutível interesse público, e por vários motivos. Primeiro, porque, como o PÚBLICO investigou consultando toda a documentação relativa ao processo de licenciamento [de construção do centro comercial], este levanta muitas e legítimas dúvidas, a começar pela forma apressada e atabalhoada como foi aprovado o Estudo de Impacto Ambiental e como foi alterada uma lei num mesmo dia, por ‘acaso’ a três dias de eleições legislativas. Todos os elementos que recolhemos apontam para que, no mínimo, houve um tratamento especial de um projecto que colocava sérias dúvidas ambientais. Segundo, porque, como o PÚBLICO noticiou, a PGR [Procuradoria Geral da República] chamou a si este caso por ele ‘estava parado’, de acordo com o próprio procurador-geral. Terceiro, porque, como o PÚBLICO também noticiou, o director da Polícia Judiciária em funções quando o actual primeiro-ministro tomou posse afirmou que dera prioridade ao caso (…) até ser demitido do cargo por decisão conjunta do primeiro-ministro e do ministro da Justiça. Quarto, porque, como mostrámos de forma gráfica após a sua publicação noutros órgãos de informação, a carta rogatória enviada pelas autoridades inglesas, que não podem ser suspeitas de terem montado uma ‘campanha negra’, tem elementos suficientes para suscitar dúvidas que ainda não foram esclarecidas pelo então ministro do Ambiente, actual primeiro-ministro, nem pelas autoridades de investigação portuguesas’.

A outra questão que se coloca é a da culpabilidade, do facto de, como escreve Maria Luiza Sarsfield Cabral, as ‘personalidades apresentadas já aparece[re]m como praticamente julgadas e condenadas’. É preciso reconhecer aqui uma evidência em termos de funcionamento de uma sociedade aberta: o simples facto de se mencionar nos media a existência de uma suspeita de comportamento ilícito de uma figura pública, por muito equilibrado que seja o exercício do contraditório, expondo-se os argumentos em defesa do visado, lança sempre uma mancha sobre a imagem com que a opinião pública passa a olhar para essa personalidade. É um mecanismo decorrente do grau de exposição pública a que estão sujeitas as pessoas com notoriedade social, um preço decorrente da liberdade de expressão, que causará sempre debate em momentos como este mas que nunca desaparecerá. Por outras palavras: quem anda à chuva molha-se.

Esta ideia sagrada de free report (livre informação) não implica porém que meios de comunicação que apregoam no estatuto editorial a prática do rigor e da independência, como é o caso do PÚBLICO, não procurem a isenção na sua cobertura de casos controversos, garantindo ‘sempre aos acusados o direito de exporem os seus pontos de vista em pé de igualdade com os acusadores’, segundo os ‘Princípios e normas de conduta profissional’ deste jornal, onde se estabelece ainda: ‘Em todas as circunstâncias, o PÚBLICO revela, apura, divulga; jamais denuncia ou persegue. (…) Só publica essas acusações quando delas obtém provas ou quaisquer outros elementos que o convençam da sua veracidade. (…) Qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre ‘o outro lado’ em pé de igualdade e com franqueza e lealdade. Só em casos excepcionais, e após autorização da Direcção, se pode contrariar o princípio da equidade’.

Terá então fundamento, à luz deste normativo, a queixa de Maria Luiza Sarsfield Cabral sobre a uma orientação nas páginas do PÚBLICO ‘no sentido de formar a suspeição’? De novo a palavra a José Manuel Fernandes: ‘Em todas estas situações, em muitas outras, sofremos pressões, em todas as que intervim enquanto director tive sempre o cuidado de que os factos fossem relevantes, o texto seco e directo, não existissem insinuações nem subentendidos. Posso ter cometido, aqui ou além, erros de avaliação, mas, quando está em causa o dinheiro dos contribuintes e bens públicos, é obrigação de uma imprensa livre não se contentar com os comunicados oficiais, assim como é obrigação de uma imprensa responsável evitar o melhor que puder as ratoeiras associadas à violação do segredo de justiça. É também sua obrigação dar todos os factos e elementos para que os leitores possam formar a sua opinião – e isso mesmo sucedeu na edição referida pela leitora: o texto mais importante, o que abre o Destaque, é o relativo à conferência de imprensa de José Sócrates; nesse texto refere-se logo a existência do comunicado da PGR; apesar de o comunicado estar disponível há muitas horas e de pouco acrescentar a um emitido dias antes, entendemos publicá-lo na íntegra, o que não sei se mais algum jornal fez; fizemo-lo com destaque, pois foi colocado numa caixa com fundo de cor, fórmula gráfica que chama a atenção dos leitores (…). Em suma: o PÚBLICO cumpriu com rigor o seu dever. Leitores como os que protestaram (…) terão paixões que, como jornalistas, tratamos de evitar, mas a que reconhecemos legitimidade (…). Viver em liberdade numa democracia implica não só aceitar como acarinhar uma imprensa livre, independente e plural, uma imprensa vigilante que, mesmo sem ter o poder de julgar, tem o dever de investigar e actuar, perdõe-se o inglesismo, como watchdog num sistema de pesos e contrapesos delineado constitucionalmente de forma a limitar o poder dos governos e, assim, impedir a sua actuação discricionária, antes impondo-lhes os limites da lei e a obrigação de prestarem contas aos cidadãos’.

Tudo muito bem no plano dos princípios – e o provedor nada tem a objectar, de forma genérica, à cobertura do caso feita pelo PÚBLICO. Mas não pode deixar de recordar que a manchete da edição em análise dizia ‘Caso Freeport: Prioridade à investigação acabou após a demissão de Santos Cabral da Judiciária’, ideia retomada no título da pág. 4: ‘Ex-director da Judiciária demitido por este Governo diz ter dado prioridade à investigação do Caso Freeport’. Ou seja, embora tudo aí seja autêntico, procura-se com esta redacção, sem o afirmar explicitamente e muito menos prová-lo, induzir na cabeça dos leitores a existência de uma relação de causa e efeito entre a demissão de um director da PJ que estaria empenhado na investigação do caso e a vontade de Sócrates em sabotar o processo, ideia confirmada no respectivo texto por uma frase que o rigor deveria ter banido: ‘Na altura, alguns observadores relacionaram essa demissão com o empenho posto na investigação do processo Freeport’ (no mínimo, seria necessário dizer quem foram os ‘observadores’).

Será este um dos ‘erros de avaliação’ de que se penaliza José Manuel Fernandes? A verdade é que se indicia aqui um inconfessado desejo de incriminação de José Sócrates. Para bem da credibilidade do PÚBLICO e da seriedade do seu tratamento de tema tão sensível (que no próximo domingo merecerá nova abordagem do provedor), era bom não existir tal intenção.’