Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

‘Enquanto aguardo por algumas explicações pedidas aos responsáveis editoriais do PÚBLICO, que me permitam — como referi na crónica anterior — abordar com maior conhecimento de causa o problema dos erros de escrita que têm vindo a proliferar nas páginas do jornal, julgo importante alertar para o facto de as falhas de revisão e edição estarem longe de se confinar a certas debilidades patentes no domínio da língua portuguesa.

Alguns protestos mais recentes que me chegaram dos leitores mostram isso mesmo, e parece-me útil focar desde já outros domínios em que o controlo de qualidade apresenta falhas relevantes. Um deles é o da infografia. O PÚBLICO recorre com frequência à apresentação gráfica de informações sobre as grandes questões da actualidade, o que é um modo sugestivo e útil de contribuir para uma apreensão mais fácil e rápida dos dados a ter em conta sobre os temas noticiados. Mas alguma coisa não está a funcionar bem quando se sucedem os casos de barras trocadas, números que não batem certo, legendas baralhadas, dados informativos por vezes em contradição com o que se lê nos textos envolventes. Perde-se a utilidade da infografia e perde-se a qualidade da informação.

Nos últimos dias o caso mais notório terá sido o do eclipse total do governo de António Guterres num quadro cronológico da nossa história política recente — publicado nas páginas de destaque da edição do dia 9 —, que pretendia ilustrar a evolução do peso da dívida pública no produto interno bruto nacional ao longo das duas últimas décadas. Andam a ‘reescrever a história’, reclamou o leitor Arie Somsen. ‘É penoso constatar que, segundo o PÚBLICO, Guterres nunca foi primeiro-ministro’, escreveu Ricardo Ruas. ‘Erro monumental’, concluiu Manuel Villaverde Cabral’, ao verificar que o jornal não só omitira a governação socialista entre 1995 e 2002, como ‘pôs Durão Barroso a governar durante aquele período, quando só chegou ao poder em 2002’. E, acrescento eu, ‘prolongou’ para um total de três anos o breve consulado de Santana Lopes.

O erro é tanto mais lamentável quanto o texto conexo sobre o crescimento da dívida pública, assinado por Sérgio Aníbal, sublinha que foi ‘apenas entre 1995 e 2000’ (durante a governação de Guterres, portanto) que ‘se verificou uma diminuição do valor da dívida pública em percentagem do produto’. O jornalista explicava que tal sucedeu ‘quando a economia estava a crescer a um ritmo bastante elevado com a ajuda do endividamento do sector privado e se realizaram operações de privatização de grande dimensão’. Pense-se o que se pensar a esse respeito (Villaverde Cabral comenta que ‘é fundamental corrigir o erro para melhor se apreciar o papel dos governos de cada partido, PS e PSD, no fomento da dívida e/ou da utilização das privatizações para esconder o défice, como fez o despesista Guterres’), o certo é que não há reflexão produtiva a partir de dados errados.

Provavelmente, a revisão da infografia por quem redigiu ou editou a notícia, ou por quem teve a responsabilidade de fechar a página, teria sido bastante para evitar uma falha tão visível. Garante-me a direcção do jornal que essa é a rotina prevista para a validação editorial das infografias, o que só pode significar que, na sequência do erro já pouco compreensível na elaboração do gráfico, a rotina prevista não foi cumprida ou algum responsável (e nunca deveria ser só um) se mostrou desconcentrado à hora da famigerada ‘pressão do fecho’. Qualquer das hipóteses é má e redunda em mau serviço aos leitores.

Neste caso, o erro foi assinalado (embora só dois dias depois) na secção ‘O PÚBLICO errou’, o que está longe de acontecer em todas as situações semelhantes. Veja-se por exemplo o caso de uma infografia de grandes dimensões publicada na página de abertura do Local Porto na mesma edição em que Guterres foi rasurado da história. Para ilustrar uma notícia sobre projectos de ‘áreas de acolhimento empresarial’ inovadoras no norte do país, mais de metade da página foi reservada para um trabalho gráfico cuidado e informativo sobre a localização prevista para esses equipamentos (oito no total) e as características de cada um. Uma iniciativa útil, mas totalmente estragada por ausência (ou deficiência) de revisão do gráfico, no qual um mapa com as oito localizações devidamente numeradas é acompanhado de legendas respeitantes a cada número, com a particularidade de todas (!) as referências estarem erradas. Entre as causas possíveis para o erro, poderá excluir-se, à partida, a ignorância. Não é crível que quem trabalha na informação local do norte do país possa pensar que — como decorre do gráfico publicado — Santa Maria da Feira se situa em Trás-os-Montes, Monção na bacia do Tâmega ou Chaves ao sul do Douro.

Não é só nas notícias ou nas infografias que os leitores detectam a negligência no controlo de qualidade das páginas. No PÚBLICO, como acontece hoje na generalidade dos jornais, redactores e gráficos trabalham com base em matrizes virtuais das páginas, nas quais estão previamente desenhados e dimensionados os elementos constitutivos da página ‘real’ que virá a ser impressa. Um desses elementos pode ser, por exemplo, uma caixa para uma pequena fotografia a meia coluna (geralmente um rosto), à qual se associa o espaço para uma legenda (geralmente para identificar a pessoa retratada). Nas referidas matrizes pode encontrar-se nesse espaço um pequeno texto, para indicar qual a informação que deve ser aí colocada. Só a negligência, e provavelmente no plural, pode explicar que essa indicação para uso interno não seja substituída pela legenda ‘real’. Mas é o que acontece com alguma frequência, levando a situações ridículas como aquela com que a leitora Alda Nobre deparou, no passado dia 1, nas páginas do Local Lisboa: numa notícia intitulada ‘Turismo do Algarve com dois presidentes em simultâneo’, que tratava do conflito entre dois quadros do PS em disputa pelo mesmo cargo público, torna-se impossível perceber qual dos dois (ou eventualmente um terceiro protagonista) é retratado na fotografia inserida na peça, pois o que se lê, a letras vermelhas, no lugar da legenda que o deveria esclarecer, é o seguinte: ‘Pequeno destaque em caixa com fundo que também pode servir de legenda para a fotografia do lado esquerdo’. Uma indicação útil, certamente, mas não para os leitores.

Quanto às patologias da escrita a que me referi no último domingo, as reclamações dos leitores voltaram a incidir, nos últimos dias, na praga das faltas de concordância. Registo, entre muitos, dois exemplos mais visíveis, citados pela mesma (e atenta) leitora atrás citada: ‘A ministra da Cultura acredita que a adaptação das instalações cedidas pela PSP estarão concluídas até ao final de 2011’ (legenda no Local Lisboa a 8/4); ‘O ruído entre Governo, PR e oposição tornam muito mais curta a margem de manobra negocial do país’ (pós-título bem destacado na abertura do editorial de 10/4).

Mas não ficam por aí os motivos de desagrado dos leitores. Ricardo Ferreira considera — e eu concordo — que a expressão ‘em barda’ (na frase ‘A música consegue seguidores em barda [no Twitter]…’, de uma peça sobre aquela rede social publicada a 14/4 na edição on line) não será a mais própria ‘num texto noticioso de um jornal de referência’. José Mário Costa lembra que ‘FMI é uma sigla e não um acrónimo’, ao contrário do que se lê no editorial de 15/4. Manuel Pinheiro considera que o PÚBLICO abusa das expressões em línguas estrangeiras (‘É de moda dizer tsunami, benchmarking, spread e upgrade, mas há belas expressões portuguesas para tudo isto’). Pedro Semedo pergunta se expressões como ‘jogar água com hidroaviões’, entre outras formas estranhas (entretanto corrigidas) que encontrou numa notícia sobre o combate à crise na central nuclear de Fukushima, resultam de ‘tradutor automático’.

E Fernando Rodrigues, que considera excessivo o uso do léxico anglo-saxónico no noticiário económico e financeiro, ‘umas vezes tão só e outras com a tradução ‘envergonhada’ para português no meio de parênteses’, espanta-se justificadamente — como eu me espanto — quando vê que já se chega ao extremo de ‘traduzir’ uma expressão portuguesa para inglês, como na frase ‘…pediu ontem a demissão por suspeita de utilização de informação privilegiada (insider trading)’ (secção Sobe e Desce, 1/4). Como observa, ‘já não chegavam os anglicismos, e ainda têm medo que não entendamos a nossa própria língua!’.

Insisto, antes de regressar em breve ao tema do controlo de qualidade do que se publica nesta páginas, que o exame dos erros não pode dispensar uma reflexão aprofundada sobre os procedimentos de edição e revisão. Escrever, como se escreveu (no texto e em título) em notícia de abertura de secção no jornal de anteontem, que a actriz Maria de Medeiros, referida como actual parlamentar, será a terceira candidata na lista do PS para as próximas legislativas no círculo de Lisboa, confundindo-a com a deputada sua irmã (Inês de Medeiros) será uma distracção desagradável. Que o erro sobreviva à passagem do texto por sucessivos olhares na estrutura do jornal já não é distracção. É negligência que não é possível deixar que se banalize num jornal respeitado.’