Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mais cabo, melhor conteúdo? Duvide

A decisão do conselho diretor da Anatel de realizar consulta pública para permitir que as operadoras de serviço telefônico fixo adquiram licenças de TV a cabo gerou polêmica no mercado, mas, principalmente, surpresa na área política. O assunto é relevante e tem implicações bem maiores que a autorização para a presença das teles num campo onde, afinal de contas, elas já vêm atuando através de meios outros que o cabo físico.

Essa decisão vem à tona, por exemplo, no momento em que entram na reta final no Congresso Nacional as discussões sobre o Projeto de Lei Complementar 116 (PLC 116). O projeto trata não apenas da presença das teles em todos os meios, mas também do conteúdo a ser carregado por elas – mais especificamente, da ampliação do trânsito do conteúdo brasileiro pelas operadoras. Discute-se, por exemplo, se a decisão da Anatel representa algum tipo de atropelo ao que vem sendo feito no Congresso.

O marco regulatório que está em discussão no Congresso Nacional tramita desde 2007. Há um entendimento tácito de que a esta altura as agências reguladoras estão simplesmente legislando em decorrência da lentidão do Congresso para fazê-lo. Isso fica mais visível no caso de matéria tão dinâmica quanto a da abrangência dos serviços oferecidos pelas teles. É quase natural, então, que as agências atravessem suas competências e acabem criando normas que equivalem a leis, mesmo sem uma discussão mais ampla com a sociedade do que as consultas públicas.

TV a cabo só em 300 municípios

A oferta de serviços de TV por assinatura através do cabo físico ainda é hegemônica no Brasil porque até pouco tempo atrás – cerca de dois anos, um pouco mais – os usuários deste serviço estavam fortemente concentrados nas classes A e B. Para se ter uma idéia, ainda hoje menos de 300, dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros, dispõem de tal serviço.

Isso é natural para uma tecnologia que exige grandes investimentos e só pode apresentar resultados em áreas de grande densidade de residentes com forte poder aquisitivo. Mas o fato é que esse quadro vem se modificando com muita rapidez. O número de assinantes pulou de 7 milhões para 12 milhões de brasileiros em menos de três anos e a presença do cabo entre as tecnologias preferidas, que já foi maior que 70%, hoje flutua em torno dos 50%.

As críticas que se fazem à Anatel consideram, entre outras coisas, que em vez de estimular o aumento da concorrência nesses mercados as novas licenças criarão obrigações de investimento inaceitáveis para as empresas entrantes. Isso porque, nos municípios não atendidos, qualquer operadora terá aplicado sobre ela o conceito de PMS ­– ou Poder de Mercado Significativo. Tais críticos pretendem que, pelo contrário, a Anatel crie obrigações de investimentos – inclusive contrapartidas de áreas atendidas – para os grandes operadores.

Reserva de mercado

Externamente, há dois argumentos com os quais a Anatel sustenta a sua decisão. Um é o da inclusão digital – pelos números da agência, mais de 4 milhões de novos domicílios teriam acesso à banda larga. Outro é o da multiplicação da oferta de programação decorrente da entrada de muitos novos operadores.

É aí que se tornam necessárias figuras complementares, as que de fato envolvam o conteúdo. No quadro atual, o aumento da oferta de operadoras tem impacto irrelevante sobre a diversificação do conteúdo oferecido, e não implica de forma alguma a sua nacionalização. Não deveria ser assim – mas é.

Tais figuras envolvem outra agência – a Agência Nacional de Cinema (Ancine) – e justamente o Projeto de Lei Complementar que está no Congresso – projeto que, em larga medida, trata da reserva de mercado para o conteúdo distribuído pelas operadoras.

Diversificação do conteúdo

A Ancine, atualmente vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), é hoje objeto de cobiça pelo Ministério das Comunicações (Minicom), que deteria então o controle sobre as agências voltadas à regulação das telecomunicações, da distribuição do conteúdo e da construção do conteúdo nacional.

Se o Minicom vai ficar com todo o bolo, não se sabe – mas sabe-se que não é mais possível falar em telecomunicações, distribuição de conteúdo e novas plataformas como se fossem assuntos diferentes e, pior: incapazes de dialogarem entre si. Para as programadoras estrangeiras e as operadoras de telecomunicação, o fluxo de conteúdo distribuído no país não tem nada a ver com obrigações sobre a origem e a diversidade desse conteúdo; enquanto que, para a Ancine, cada conteúdo corresponde a uma plataforma e se limita a ela. Na melhor das hipóteses, uma e outra sofismam; na pior, estão no século 19.

PLC 116 tem traço de modernidade

Esse é um indiscutível traço de modernidade no PLC 116, mesmo que na sua aparência ele interfira sobre o direito de cada um elaborar a sua programação. No outro lado da linha está a notável constatação de que a quantidade de distribuidores de conteúdo não guarda qualquer relação com a diversificação do conteúdo distribuído.

Em tese, não se pode obrigar nenhum operador – como nenhum concessionário de serviço publico – a atuar em áreas que não lhe são rentáveis; mas se ainda pensássemos assim, não existiria no país uma rede de telefonia e muito menos a de transportes.

E, no entanto, a população precisa se comunicar e se transportar, da mesma forma que precisa se informar e se reconhecer. O incentivo à competição pelo oferecimento de serviços de cabo e o encorajamento à diversificação do conteúdo a ser oferecido por esses serviços são partes, portanto, do mesmo pacote.