Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mídia contida, eleição sem trauma

Desta vez, a vitória (até espalhafatosa) de George W. Bush chegou devagarinho, voto eleitoral a voto eleitoral. Escaldadas pelo caos de 2000, que ajudaram a precipitar, as redes americanas de TV cumpriram o acordo que firmaram: não divulgaram as pesquisas de boca-de-urna nem anteciparam o resultado da eleição antes do encerramento da votação. No election day e no day after, os canais americanos a cabo disponíveis no Brasil foram uma amostra do comedimento geral. A CNN Internacional fez cobertura clássica, analítica, e a Fox News, carnavalesca como sempre, foi noticiosa, apostando nas imagens externas.


Frenesi mesmo, só na internet. Dado o acordo que freou as redes de TV, esperava-se que dos blogs de vários níveis de confiabilidade viesse a antecipação certeira do resultado. Pois foi um fiasco: os blogueiros revezavam-se na desinformação, numa sucessão alucinante de anúncios, recuos e desmentidos.


Esta foi uma campanha ideológica por excelência. Carlos Eduardo Lins da Silva, em balanço do comportamento da mídia americana em sua coluna da Folha de 3/10, comenta que a declaração de preferência por um candidato é tradicional nos jornais: ‘O que quase nunca aconteceu antes foi um jornal, como o New York Post [http://nypostonline.com/] de ontem [dia 2] transformar sua primeira página em quase um pôster do seu preferido e publicar na página de opinião somente artigos a favor dele (no caso, Bush)’. O colunista se disse impressionado também com o grande número de veículos que nos últimos três anos assumiu ostensivamente sua opção conservadora, como a Fox News, mas ressalva que desde 1988 [disputa entre George Bush pai e o democrata Michael Dukakis] jamais um candidato de oposição teve tanta cobertura a favor como John Kerry .


Para o colunista, a cobertura foi superficial e sensacionalista, o que atribui em grande parte à ‘avalanche de publicidade paga por grupos supostamente apartidários que tiveram atuação facilitada por lei eleitoral aprovada em 2002, que tinha como objetivo diminuir a propaganda eleitoral’. Esses grupos, os ‘527’ (número do artigo da lei que os regulamentou), podem pagar anúncios para divulgar suas causas. ‘Na prática, acabaram sendo instrumento para atacar candidatos, como o grupo auto-intitulado como ‘em busca da verdade sobre o que ocorreu no Vietnã’, que provocou celeuma ao alegar que John Kerry não havia feito por merecer as condecorações que ganhou em combate no Sudeste Asiático’.


Nos jornais brasileiros do dia 3, posturas distintas. O Globo fez aposta: sua manchete de capa foi ‘Eleição em massa anima Kerry’; a Folha preferiu o fato jornalístico mais visível: ‘EUA têm recorde de eleitores e filas’. O Estadão ficou no muro – ‘Bush x Kerry: batalha dramática’.


Na TV


A cobertura da Fox estava ágil, cheia de cortes, elétrica, em comparação à da CNN Internacional (canal 53 da operadora Net), que até programa esportivo direto de Londres exibiu, lembrando o estilo da Globo, ‘programação normal e o melhor da eleição’ (imaginou a CNN que o público no exterior não se interessaria por uma cobertura contínua da eleição?).


O eleitor pode alegar que ficou traumatizado pelas longas filas, que exigiram até quatro horas de paciência para votar: mas a mídia não teve culpa. A urna eletrônica, sim. A maquininha foi a ‘Geni’ da Fox News (canal 97 da Net), a conservadoríssima TV all news do magnata Rupert Murdoch, dono também do pasquim New York Post. Ao longo do dia de votação, no dia 2, a engenhoca levou pedrada atrás de pedrada de apresentadores e repórteres, que instigavam os entrevistados a denunciar irregularidades, fraudes e defeitos das máquinas. Enquanto mostrava as imagens das longas filas nos postos eleitorais em várias cidades, a Fox ouvia prefeitos, governadores, cabos eleitorais, eleitores – nenhum poupava a tecnologia, todos garantiam que a urna eletrônica criaria um novo ‘legal brouhaha’ (confusão jurídica).


Que se visse, apresentadores e repórteres da Fox acharam desimportante a informação de que o processo de votação era complexo. A CNN várias vezes explicou: o eleitor escolhia presidente, deputado, senador, e em vários estados ainda opinava sobre questões diversas, como casamento gay: a cédula de papel era comprida de assustar – pragmáticos, os americanos marcam seus plebiscitos para as eleições, evitando gasto extra. A Fox alertava com insistência sobre as enormes filas de votação e também sobre o mau tempo em algumas regiões. Um eleitor desavisado poderia até desanimar de sair de casa, num país em que o voto não é obrigatório. Afinal, muito se comentou que votação em massa beneficiaria Kerry.


Por mais controlados que estivessem, os apresentadores da Fox News não conseguiam evitar a torcida. Escolheram entrevistados a dedo para perguntas tipo ‘Como será o futuro com a eleição de Kerry? Teremos um país irremediavelmente dividido?’ ou ‘E a redução de impostos que Bush planejava? É passado?’ A eleição continuava em vários estados, enquanto se sucediam no vídeo gente como Jack (‘a economia preocupa’) Welsh, ex-manda-chuva da GE, o milionário Donald (‘nunca vi um país tão dividido’) Trump.


Novas mídias, nenhuma regra


O Poynter Institute (www.poynter.org/) analisou a obediência (ou desobediência) ao acordo feito entre as redes de TV e a Associated Press. Para Steve Outing, o autor do balanço, intitulado ‘Notícias antes da hora’, as novas mídias não seguiram as velhas regras (e algumas ‘velhas’ mídias também não): sites, blogs, a Reuters e o Sun-Herald de Biloxi, Mississipi, da editora Knight-Ridder, publicaram online, enquanto a votação prosseguia, pesquisas de boca-de-urna – todas anunciando a liderança de Kerry.


A agência britânica Reuters foi cínica: um seu despacho contava que websites e blogs estavam publicando pesquisas de boca-de-urna com Kerry na liderança. Jacob Weisberg, editor da Slate.com, que publicou tudo quanto era boca-de-urna, argumentou ao New York Times: não professa ‘filosofia paternalista’ porque tem certeza de que seu eleitor não se deixa influenciar por pesquisas. A NPR (National Public Radio), parceira da Slate no programa Day to Day, informava que não anunciaria as pesquisas, mas avisou o dia inteiro que a Slate.com ‘não operava sob a mesma restrição’. Nos fóruns dos sites de TV, leitores trocavam à vontade informação sobre a boca-de-urna.


O que isso tudo significa, pergunta Outing? Bem, para os observadores astutos não era surpresa que a internet defendia a tese da ‘informação livre no dia da eleição’. Os executivos de mídia podem ter sido sinceros ao prometer notícia na hora certa ao Congresso, mas na internet isso é impossível.


Em resumo: os detratores dos blogs venceram. A bagunça do dia 2 provou que jornalismo exige um pouco mais do que sair na frente.


Algumas barrigas


Mas blogs, felizmente, não estão nem aí para velhas regras. Informam e desinformam, não importa, têm essa liberdade. Já a grande imprensa… Nos últimos dois meses a mídia, nacional e internacional, nos bombardeou com algumas ‘verdades’:


** O voto jovem definiria a eleição. Pois esse voto foi idêntico ao de 2000: 17%;


** A urna eletrônica vai atrasar o resultado. Em 12 estados há processos em andamento contra a máquina, mas o resultado raras vezes saiu tão depressa;


** Participação histórica do eleitorado. Anunciava-se mais de 70% de presença, e pode não chegar a 60% (a maior desde 1968 [eleição de Richard Nixon, que derrotou o democrata Hubert Humphrey e o independente George Wallace], mas não é recorde);


** A influência da mídia será decisiva. Grande parte da mídia era pró-Kerry;


** A guerra ao terror vai definir a eleição. O povo americano preferiu os ‘moral values’ (valores morais) conservadores de Bush. A mídia boiou nisso totalmente.


Mas o grande vexame coube à empresa de pesquisa comandada por John Zogby, que anunciou ainda no dia 2 boca-de-urna dando 311 delegados a John Kerry no colégio eleitoral (270 eram necessários), e 213 a Bush – às 18h (hora de Brasília) de quarta-feira, dia 3, Bush tinha 274 delegados, segundo a Fox News). CNN, Fox, Globo News, Jornal Nacional – todos caíram na esparrela. Até a Casa Branca entrou em clima de ‘melancolia’. A Globo News disse que o eleitor desta vez não recebeu da mídia a informação ‘pronta e embalada’, pois recorreu à internet para se informar.


Bobagem, a famosa maioria silenciosa sabe o que quer, saiu de seu conforto e falou alto. O homem está reeleito. Como, aliás, as pesquisas pré-eleitorais mostraram o tempo todo, não acreditou quem não quis.