Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Estado de S. Paulo

FLIP
Ubiratan Brasil

A dama das letras

Os olhos azuis da inglesa Liz Calder faíscam mais intensamente em uma determinada época do ano, aquela em que, sob sua bênção, um punhado de grandes escritores se reúne com leitores ávidos por sua escrita, em uma charmosa cidade litorânea fluminense. É o que vai acontecer nesta semana quando, na quarta-feira, começar a oitava edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, o mais importante encontro literário brasileiro. Um evento tão poderoso que seu sucesso inspirou dezenas de outras feiras de literatura que agora povoam o calendário do País.

‘A Flip tornou-se uma instituição’, diverte-se. ‘Não esperávamos que, em tão pouco tempo, virasse uma referência também no exterior.’ De fato, desde a primeira edição, em 2003, 240 escritores já passaram por Paraty, atraindo um público total de aproximadamente 100 mil fãs. Uma relação carinhosa, capaz de produzir flagrantes maravilhosos como Chico Buarque de Holanda batendo bola debaixo de chuva, em 2004, ou o sisudo sul-africano J. M. Coetzee exibindo um guloso sorriso ao comprar pé de moleque em uma carroça de doce na rua, em 2007.

Isso para não falar do teor das palestras, irregulares como se espera de um evento tão plural, mas geralmente carregadas de alta dose de inteligência e sarcasmo ? também em 2004, o inglês Ian McEwan surpreendeu a plateia ao detalhar as pesquisas realizadas para a escrita de Sábado, que envolveram uma imersão no universo dos neurocirurgiões e suas ‘luvas com restos de mentes’, além de médicos que vistoriavam a cabeça dos outros ao som da Nona de Beethoven.

Vitórias pessoais de Liz, uma mulher esbelta e elegante de 72 anos, que fala com sotaque europeu e possui o típico humor inglês, ácido, mas que compete e é derrotado por uma profunda bondade. Ela lembra que a Flip surgiu para suprir uma necessidade. ‘Há 20 anos, quando eu já trabalhava como publisher (na editora Bloomsbury), não havia feiras literárias no Reino Unido, ainda que existisse um público ávido por esses encontros’, conta Liz. ‘Dez anos depois, a ilha já era palco de diversos eventos.’

O sucesso a incentivou a testar a ideia no Brasil, mas o projeto demorou para vingar ? o embrião da Flip surgiu em 1992, quando Liz conheceu o arquiteto paulistano Mauro Munhoz durante a caminhada de uma hora por uma trilha que os levou à casa do navegador Amyr Klinke, cujo livro ela desejava publicar em inglês. Juntos, rascunharam uma ideia, mas a festa só aconteceu mesmo 11 anos depois.

A longa gestação serviu para acertar os ponteiros. ‘Nosso modelo é o festival de Hay-on-Wye, no País de Gales, mas decidimos evitar o que considero o principal problema dos encontros literários na comunidade britânica: três ou quatro palestras simultâneas. Em Paraty, isso não acontece e ninguém corre o risco de perder alguma boa conversa.’ E, neste ano, o cardápio oferece 19 mesas.

 

Amizades garantem vinda das estrelas

O inglês Julian Barnes evita ler trechos de sua obra para uma plateia numerosa mas, na primeira edição da Flip, em 2003, ele foi ouvido por mais de cem pessoas. Mais desinibido, o inglês de origem paquistanesa Hanif Kureishi transformou, no mesmo ano, uma mesa do principal bar de Paraty em seu ‘escritório’, onde ‘atendia’ todo final de tarde. A amizade foi providencial para a formação do primeiro time de escritores estrangeiros que veio a Paraty. ‘Sempre contamos com excelentes curadores (o atual é Flávio Moura), mas, no início, foi importante conhecer pessoalmente alguns autores’, conta Liz Calder que, como uma das fundadoras da editora Bloomsbury, sempre manteve uma cobiçada agenda de telefones.

Foi assim que diversos autores de língua inglesa logo eram vistos passeando pela cidade colonial, como Salman Rushdie, Michael Ondaatje, Margaret Atwood, Nadine Gordimer. Além da amizade, a editora oferecia também um roteiro irrecusável, com direito a passeios e pouco trabalho. ‘Paraty tem atrativos turísticos encantadores e logo os próprios escritores se tornaram uma espécie de embaixadores da Flip, divulgando o encontro para outros.’

O inglês Martin Amis foi um deles. Durante sua estada em 2004, ao lado da mulher Isabel Fonseca, ele saudava o que considerava o bem-viver dos brasileiros. ‘Na Inglaterra, as pessoas estão longe de saber o que é isso’, comentou. O profissionalismo também influenciava – segundo a canadense Margaret Atwood, Liz Calder é uma editora diferenciada por analisar os originais dos escritores primeiro como leitora, buscando detectar os detalhes agradáveis ao público. ‘Só então avaliava o livro como publisher’, disse ela, que veio a Paraty na segunda edição da Flip.

Aos poucos, com a festa literária consolidando-se como o grande evento literário nacional, Liz foi delegando poderes aos curadores e hoje atua como uma eminência parda, aconselhando e sugerindo nomes aos curadores. ‘Ela teve e tem papel decisivo para a inserção internacional fora de série obtida pela festa, além de acompanhar de perto cada passo da programação’, comentou Flávio Moura, em artigo publicado pelo Estado.

Liz não vive mais em Paraty, estabelecendo-se em Londres. O contato, no entanto, é contínuo, pois a relação com o Brasil já se solidificou: viveu aqui entre 1964 e 68, durante a implantação do governo militar, com o primeiro marido e duas filhas pequenas. Na época, ainda não trabalhava com literatura, mas como modelo – fez campanhas publicitárias, estampou capa de revistas e chegou a posar para um ensaio publicado no Suplemento Feminino. A profissão a ajudava a praticar o português graças às animadas conversas com maquiadoras e costureiras.

No início da década de 1970, voltou à Inglaterra, onde iniciou a carreira editorial até culminar, em 1988, com a fundação da Bloomsbury, pela qual editou megassucessos como a saga Harry Potter. Do Brasil, Liz levou discos de bossa nova, o papagaio Juju e muita saudade. Logo retornou, tornando-se editora inglesa de autores como Patricia Melo e Machado de Assis. Estava aberto o caminho para a Flip.

OFF FLIP

Efeito positivo

A passagem por Paraty em 2007 parece ter feito bem ao sul-africano J. M. Coetzee. Segundo seu agente literário, coincidência ou não, depois de participar da Flip, o escritor tornou-se mais amável e menos irredutível em relação a participar de eventos. Coetzee distribuiu sorrisos pelas ruas de Paraty, onde comprou doces caseiros.

Cachaça

‘Minha memória ficou um tanto vazia depois que ontem topei com uma garrafa com uma cobra dentro’, brincou o inglês Iwan McEwan, lembrando de uma excursão pelas casas de aguardente de Paraty, em 2001. Comentou-se à boca pequena que Paul Auster foi o grande destaque no ‘workshop’ de cachaça.

Liberdade

Apesar do grande assédio, Chico Buarque conseguiu, em 2004, fazer o que gosta: entrou em um restaurante onde músicos tocavam uma música sua e disputou uma pelada à tarde com outros escritores.

Mudança

Liz Calder revelou-se flexível ao participar da escolha de escritores para a Flip – depois de não gostar da vinda da inglesa Lionel Shriver em 2009, aprovou sua participação neste ano.

 

TELEVISÃO
Cristina Padiglione e Etienne Jacintho

Os eleitos

Daqui a 17 dias começa o horário eleitoral gratuito na TV, às 13h e às 20h30, com 25 minutos de duração em cada edição. Para a TV paga, o período é motivo de celebração, afinal, o público costuma zapear canais atrás de alternativas à TV aberta. Nas duas últimas eleições presidenciais, entre agosto e outubro de 2002 e 2006, a audiência média da TV paga cresceu 42% na faixa das 20h às 22h. Já nas municipais, esse aumento foi ainda maior. De agosto a outubro de 2004 e 2008, o crescimento da audiência na TV paga, das 20h às 22h, foi de 51%. Considerando-se apenas agosto de 2008, numa faixa de horário mais estreita, das 20h30 às 21h30, a audiência da TV paga dobrou, com 104% de progresso.

De olho nessa migração, e considerando que o setor ganhou 1 milhão de novos assinantes só no primeiro semestre deste ano, os canais pagos têm bons motivos para apostar na temporada. O GNT resolveu até modificar sua grade de programação em função do horário eleitoral. O canal chegou a apostar em Os Normais, mas, até o fechamento desta edição, na quinta-feira, ainda não havia eleito o programa da faixa das 20h. Já a partir das 21h de 16 de agosto, o canal investirá na exibição de documentários e especiais de Michael Jackson.

‘Experiências do GNT no passado mostram que, durante esse período (do horário eleitoral gratuito), há uma migração natural de telespectadores da televisão aberta para a TV paga e já adotamos a estratégia da criação de uma faixa especial em outros anos’, diz o gerente de conteúdo do GNT, Zico Góes. ‘Apostamos em atrações relacionadas aos pilares do canal – gastronomia, bem-estar e entretenimento. O mais importante é aproveitar a oportunidade da passagem de novos assinantes pelo canal para fidelizá-los na programação.’

A maior parte dos canais não chega a modificar sua grade, mas trabalha com a expectativa de aumento de audiência em seu horário nobre. Até porque a faixa das 20h às 22h já concentra os programas mais fortes dos canais pagos.

É o caso da Fox, que tem Os Simpsons como carro-chefe. O canal exibe episódios da animação às 20h e às 20h30. Segundo o diretor de Marketing da Fox, Marcello Braga, há, sim, uma expectativa de crescimento de audiência não só às 20h30, mas também às 13h. ‘Além da oportunidade comercial, é uma chance de conquistar novos telespectadores, de mostrar o canal para outro público’, afirma Braga.

Classe C paga para ver

Embora reconheça o potencial que a temporada eleitoral representa para o setor, o presidente da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Alexandre Annenberg, prefere não mensurar expectativas de audiência. Às voltas com os preparativos para mais uma feira da ABTA, a ser aberta em São Paulo no próximo dia 10, Annenberg falou ao Estado sobre o diagnóstico que explica o crescimento na base de assinantes.

O bolo ganhou um milhão de novos pagantes apenas no primeiro semestre deste ano. É o mesmo número somado pelo setor no ano passado inteiro.

‘São vários fatores que explicam o crescimento do primeiro semestre, não há um fator isolado. Há o poder aquisitivo de uma classe C que agora lhe permite obter esse objeto de desejo que é a TV por assinatura’, inicia Annenberg. ‘Outro fator importante é que a Anatel outorgou um número grande de licenças de DTH, que evidentemente estão oferecendo o serviço no Brasil inteiro. E há a Copa do Mundo, que também atrai o interesse de novos assinantes, inclusive em função da oferta de canais em alta definição’, completa.

A chegada de novos espectadores e a expansão na distribuição de alguns canais ajudam a explicar o sobe-e-desce que afeta as 20 primeiras posições no ranking dos canais pagos mais vistos no Brasil, do primeiro semestre de 2008 ao mesmo período em 2010. A busca por audiência justifica, por exemplo, o aumento no volume de dublagens (leia mais na pág. 6) e a fome por produções nacionais – incentivadas, em boa parte, por leis de incentivo, e não só pelas boas intenções dos programadores internacionais.

As novas adesões à TV paga são festejadas sobretudo no contexto de um mercado que passou anos caminhando a passos lentos, mas o Brasil soma hoje 8, 4 milhões de lares com TV paga, o que representa menos de 15% dos lares. Em números absolutos, o País está entre os que mais despertam o interesse em investimento de canais internacionais na América Latina. Em porcentuais, no entanto, o Brasil ainda é lanterninha entre os vizinhos.

 

Etienne Jacintho

Eles falam português também

Com 2 milhões de novos assinantes em um ano e meio, os canais pagos não só já inspiram a programação da TV aberta – que exibe com êxito séries de um gênero antes segmentado a pagantes de TV – como também tentam, cada vez mais, diminuir a barreira existente entre eles e os canais abertos. Há alguns anos, as emissoras por assinatura vêm se adaptando aos costumes nacionais, aumentando o número de produções locais e até mesmo falando português.

Segundo dados do Ibope, no primeiro semestre de 2008, as cinco primeiras posições no ranking de audiência de TV paga eram ocupadas por canais nacionais ou dublados. Já no mesmo período deste ano, dublados e nacionais se estendem até o 10º lugar entre os mais vistos (veja ranking na pág. 5).

Dublados

Entre os canais internacionais, a TNT foi pioneira em captar essa preferência nacional. Dublou atrações e permaneceu no primeiro lugar de audiência entre os canais pagos por anos e anos.

Hoje, a TNT ainda está na liderança entre os canais de filmes, mesmo com a forte concorrência. Dos cinco canais Telecine, o mais visto é o Pipoca – dublado. Quando lançou seu segundo canal em alta definição, o Telecine não pensou duas vezes antes de eleger o Pipoca HD. E a Globosat, satisfeita com os números do Telecine Pipoca, criou outro canal de filmes dublado, o Megapix, que já roubou da HBO a 20.ª posição no ranking dos canais mais vistos da TV paga. Para tentar abocanhar seu lugar de volta, o grupo internacional já dubla as atrações da HBO2, o segundo canal de filmes. O HBO Family também apresenta programas em português.

Para a TNT, o aumento de canais de filmes dublados não é preocupante. ‘Estamos vendo que as outras emissoras estão aumentando o número de espectadores e isso cria um cenário de competição saudável’, afirma Pablo Corona, diretor de programação da TNT para América Latina. ‘Felizmente, a TNT ainda é líder na TV paga, nos pacotes básicos, no Brasil.’

Corona conta que, no começo, o canal tinha conteúdo misto, com programas dublados e legendados. Com o tempo, eles perceberam que os telespectadores preferiam as atrações dubladas. ‘Isso foi também confirmado por meio de conversas com colegas de São Paulo, com operadores de cabo e com a audiência em geral, além da nossa equipe de pesquisa. Tudo indicava que dublar todo o conteúdo seria um sucesso. Então, tomamos a decisão de dublar 100%.’

Polêmica

Em meados de 2007, a Fox tomou uma decisão arriscada e passou a oferecer sua programação dublada. Os fãs de séries como 24 Horas chiaram, mas o canal hoje prova que acertou em cheio. ‘A audiência de fato cresceu gradativamente desde que o horário nobre passou a ser dublado’, fala Marcello Braga, diretor de Marketing da Fox. ‘Aumentou o número de pessoas que assiste à Fox e o tempo médio que elas passam assistindo ao canal.’ Braga afirma que a mudança foi baseada em pesquisas. ‘Tínhamos uma forte evidência da pesquisa qualitativa que havia demanda para mais programação dublada.’

Com a bronca de alguns fãs de séries, que preferem ver as atrações com áudio original e legenda, a Fox investiu em tecnologia para oferecer essa opção nas maiores operadoras nacionais. ‘Não há reclamações. Já se pode optar em assistir ao programa dublado ou no idioma original’, comenta Braga.

Para dar uma ideia do sucesso da medida, somente do primeiro semestre de 2008 ao primeiro semestre de 2010, a Fox subiu três posições no ranking dos canais mais vistos da TV paga. Saiu do 10.º e foi para o 7.º lugar.

 

WIKILEAKS
Carolina Rossetti

Vazamento em estado bruto

Uma ampulheta aprisiona dois mundos. O primeiro, opaco, de onde vazam segredos sujos, aos poucos se destrói – para então se recompor em um planeta novo, mais transparente, honesto. É esse o logo e a filosofia da ONG WikiLeaks, que se disseminou em jornais e blogs nessa semana ao divulgar 92 mil documentos das ações militares americanas e de forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão durante os anos de 2004 a 2009 da era Bush filho. ‘Eu adoro esmagar canalhas’, disse o idealizador do site e hacker australiano Julian Assange, em entrevista coletiva em Londres, referindo-se aos responsáveis por supostos crimes de guerra revelados pelo calhamaço de relatórios publicado simultaneamente pela revista alemã Der Spiegel, pelo jornal britânico The Guardian e pelo americano The New York Times. Entre as denúncias estão descrições detalhadas de execuções de civis, a existência de um esquadrão encarregado de ‘capturar ou matar’ sem julgamento 70 líderes do Taleban e evidências do envolvimento do serviço secreto do Paquistão, aliado americano na guerra, com o movimento fundamentalista afegão.

Em sua home page, o WikiLeaks se define como uma ‘avenida global’ para a disseminação de documentos de interesse público. Ali, qualquer pessoa pode divulgar o que quiser sobre quem quiser. Sem amarrações e em total anonimato. Nem os organizadores do site têm acesso à identidade de suas fontes. Mesmo assim, o soldado Bradley Manning, de 22 anos, foi apontado como responsável pela extração dos registros do sistema interno de inteligência do Exército e pela postagem do conteúdo no site de Assange.

Manning já era o suspeito-mor de ter divulgado em abril, também no WikiLeaks, um vídeo mostrando, do interior de um helicóptero Apache americano, uma operação em Bagdá que resultou na morte de 11 civis iraquianos, dois jornalistas da Reuters – e nenhum insurgente. Em 2008, o WikiLeaks pipocou no noticiário internacional quando publicou uma cartilha do Exército americano que ensinava como seus soldados deveriam tratar os prisioneiros de Guantánamo e quando espalhou a conta de e-mail de Sarah Palin, ex-governadora do Alasca e candidata a vice-presidente na chapa do republicano John McCain. Mas em nenhum dos casos o site recebeu tanta atenção quanto agora.

Entusiasmado com a enorme repercussão do agora chamado Diário de Guerra do Afeganistão, Julian Assange chegou a compará-lo em importância aos Papéis do Pentágono. A divulgação desse material secreto, entregue em 1971 ao The New York Times pelo analista militar e ex-funcionário do Pentágono Daniel Ellsberg, teria contribuído para o fim da Guerra do Vietnã. O mesmo não se dará em relação aos documentos do WikiLeaks, avalia o repórter investigativo do NYT e vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo em 1988, Tim Weiner, para quem a comparação entre os dois vazamentos é completamente forçada. ‘Os Papéis do Pentágono eram 47 volumes de análise histórica cruciais para o cidadão americano entender que a guerra não poderia ser ganha com poderio militar. O material do WikiLeaks é uma tonelada de informação bruta.’ E completa: ‘Tentar obter informação útil do serviço de inteligência americano é como tentar beber um gole d’água em uma mangueira de incêndio’.

Autor de um livro sobre a história da CIA, Legado de Cinzas, publicado no Brasil pela editora Record, Weiner é especialista em segredos de Estado. A ele foi concedido o prêmio mais importante do jornalismo americano por uma série de reportagens publicadas no The Philadelphia Inquirer nas quais desmascarou um orçamento secreto do Pentágono usado pelo governo para financiar a pesquisa e o desenvolvimento de novas armas. Weiner é um crítico ferrenho do serviço de inteligência americano, que, a seu ver, não cumpre o papel de assessorar a tomada de decisões estratégicas bem fundamentadas e conscientes. ‘O mais poderoso país do Ocidente falhou em criar um serviço secreto de primeira categoria’, escreve Weiner em seu livro sobre os inúmeros erros da CIA. Para citar alguns, ele menciona a incompetência da agência em calcular as reais chances de vitória na invasão da Baía dos Porcos, em 1961, a incapacidade de prever o 11 de setembro e a invenção de que no Iraque havia armas de destruição em massa, argumento usado pelos americanos para invadir o país e depor Saddam Hussein. ‘Quando a inteligência falha, pessoas morrem.’ E a resistência da população local aumenta. É assim que se perde uma guerra contra um oponente infinitamente mais fraco, alerta Weiner.

É possível controlar a circulação de informações na era do WikiLeaks?

Primeiro, os documentos publicados pelo WikiLeaks traziam o selo de ‘secreto’. O governo americano produz milhões de documentos ‘secretos’ por ano. Acima do ‘secreto’ existe o ‘top secret’. E, acima do ‘top secret’, incontáveis programas criptografados com senhas. Quando tudo é secreto, nada é secreto. Você não consegue manter segredos em uma sociedade aberta. A América é um navio com um furo no casco.

Recentemente o jornal The Washington Post publicou uma série de reportagens sobre o sistema de inteligência dos EUA mostrando que hoje 854 mil pessoas têm acesso a informações consideradas sigilosas. A rede de inteligência americana fugiu do controle?

Tentar obter informação útil do serviço de inteligência americano é como tentar beber um gole d’água em uma mangueira de incêndio. O sistema ejeta uma enorme massa de informação bruta, que sufoca a capacidade humana de análise e compreensão. As organizações de inteligência têm o propósito de servir como ferramentas para traçar estratégias inteligentes. Raramente elas cumprem esse papel. Quando a inteligência falha, pessoas morrem – soldados e civis. Presidentes e generais tomam decisões ignorantes. Exércitos atacam alvos errados. Quando as forças militares americanas e as tropas da Otan matam civis, o Taleban ganha pontos incalculáveis na batalha pela aliança da população local. Essa é uma das formas pelas quais uma nação pode perde a guerra contra uma guerrilha muito mais fraca, como aconteceu conosco no Vietnã.

Parece que os 92 mil documentos divulgados tem chocado mais pelo volume que pelo conteúdo. Quais podem ser as consequências políticas do episódio para o governo Obama?

Poucas informações divulgadas pelo WikiLeaks eram novidade para quem lê o trabalho de jornalistas e de organizações de direitos humanos que atuam no Afeganistão. É importante notar que os documentos cobrem o período de 2004 a 2009; portanto, são registros da guerra de Bush, não da de Obama. A informação muda muito pouco as estratégias e táticas de guerra que Obama adotou. Tanto que a Câmara de Representantes dos EUA aprovou na terça-feira, por 308 votos contra 114, a injeção de mais US$ 60 bilhões no conflito.

O vazamento poderá contribuir para o fim da guerra?

A guerra vai continuar. Os afegãos lutaram contra Alexandre, o Grande, os mongóis de Gengis Khan e Tamerlão, os britânicos, os russos e, agora, os americanos. Perderam muitas batalhas, mas nunca foram conquistados. Estive no Afeganistão sete vezes. Pelo que vi, acredito que os objetivos originais dessa guerra – matar os líderes da Al-Qaeda e neutralizar o Taleban – se perderam muitos anos atrás sob o governo Bush. Se a missão agora é a reconstrução do país a fim de transformá-lo em uma nação estável, depois de 30 anos de ocupação soviética e da ocupação americana, acredito que isso possa ser conseguido… em mais 30 anos.

O Diário de Guerra do WikiLeaks está sendo comparado aos Papéis do Pentágono.

A comparação é falsa. Os Papéis do Pentágono eram 7 mil páginas de documentos, em 47 volumes, de análise histórica preparada por experts sob o comando do secretário da Defesa de Kennedy e Johnson, Robert McNamara. Os papéis foram cruciais para os americanos entenderem que a guerra era política e não podia ser ganha com poderio militar. Considerado o mais grave vazamento da história do serviço de inteligência americano, os Papéis do Pentágono eram uma crônica das dificuldades dos americanos no Vietnã. O material do WikiLeaks são milhares de relatórios brutos da inteligência americana. Os Papéis do Pentágono foram muito mais importantes para virar a opinião pública dos americanos contra a guerra. Eles são a história supersecreta da Guerra do Vietnã de 1954 a 1967. Quando o presidente Nixon tentou impedir sua publicação, ele deu início a uma batalha contra vazamentos que, no final das contas, o levaram à autodestruição. Os papéis do WikiLeaks não trazem revelações importantes sobre a guerra. Eles adicionam detalhes de questões já bem conhecidas e compreendidas pelos que acompanham as notícias sobre o Afeganistão, que são a minoria do povo americano. No curto prazo, os documentos podem ajudar a focar a atenção do público dos EUA na guerra. Mas a terrível verdade é que milhões de americanos nada sabem sobre o Afeganistão e sua única preocupação é com os soldados americanos que estão morrendo nesse conflito.

O que significa contar a verdade sobre a guerra?

É o papel da inteligência – e dos jornalistas – penetrar o nevoeiro da guerra. Mas não existe uma coisa como total transparência em tempos bélicos. A névoa sempre ganha. Para citar McNamara: ‘A guerra é tão complexa que ultrapassava a habilidade da mente humana de compreender todas as suas variáveis. Nosso julgamento, nosso entendimento, não são adequados. E nós matamos pessoas sem necessidade.’ Essa é a verdade da guerra.

Assange, como Daniel Ellsberg, vem sendo acusado de ignorar os interesses nacionais. Foi essa uma ação irresponsável ou uma vitória jornalística?

Nenhuma das duas coisas. É uma parte natural e inevitável do embate em tempos de guerra entre o Pentágono e seus opositores em casa e no exterior.

Uma organização como o WikiLeaks – sem sede em nenhum país e, portanto, sem ter de obedecer a nenhuma lei – propicia a qualquer pessoa espaço para postar informações e opiniões, sob total anonimato. Será esse o futuro do jornalismo investigativo?

Se formos definir vazamentos de dados como revelações não autorizadas de informações confidenciais, então a única novidade que o WikiLeaks traz é o método de distribuição. O jornalismo investigativo não se baseia só em vazamento, mas na pesquisa detalhada e paciente.

 

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