Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O jornal de Sartre sumiu das bancas

O patrão defende basicamente seu lucro e o empregado, seu emprego. Essa lógica mais elementar rege as relações de trabalho em todo o mundo capitalista, até mesmo num jornal de esquerda, fundado em 1973, por maoístas liderados por um filósofo contestador e anticapitalista como Jean-Paul Sartre, dos quais o mais importante remanescente é o atual diretor de redação, Serge July. O resultado de um conflito de interesses entre o patrão e os empregados foi a greve que paralisou o jornal Libération por toda a semana passada.


O patrão é o principal acionista, Edouard de Rothschild, que comprou 38% do capital do jornal este ano (veja aqui). Os jornalistas não gostaram de ver a ordem de ‘reestruturação’ do jornal pretender atingir 52 empregos, dos quais 38 seriam extintos e os outros terceirizados para perfazer um total de 4 milhões de euros de economia. Na segunda-feira (21/11) partiram para a greve, paralisando totalmente o jornal. Quando finalmente resolveram voltar ao trabalho, na sexta-feira (25), as máquinas impressoras sofreram uma pane, o que impediu a edição do fim de semana de circular.


Prejuízos diários


Lá se vão 32 anos desde que Sartre escreveu, alguns meses depois da fundação do Libé, um editorial pedindo ajuda financeira aos leitores para salvar o jornal. Disse ele, em seu apelo:




‘A imprensa francesa em seu conjunto visa ao lucro e está sujeita a certos interesses econômicos. Libération escapa a essa servidão uma vez que o jornal não busca o lucro e nem está submetido a nenhum tipo de pressão. Ele pode falar onde os outros se calam, pode dizer a verdade onde os outros mentem, desvenda os incidentes cotidianos e os grandes acontecimentos’.


O jornal que pretendia ‘dar a palavra ao povo e fazer a verdade explodir’ passou a ter publicidade como os outros, esteve na vanguarda da política e da sociedade francesas, criou modas e modismos e tornou-se um must na vida de milhares de fiéis leitores que se sentiram um pouco sem norte ao descobrirem nas bancas que o jornal não sairia na segunda-feira (21).


Nem o site Liberation.fr funcionou. Honrando a boa tradição revolucionária do jornal, foi criado um coletivo chamado ‘Libélutte’ para dar notícias online sobre greve. A expressão ‘En grève’ no alto da página indicava a decisão dos jornalistas de protestar contra as demissões para satisfazer ‘uma visão de contador de curto prazo que visa a satisfazer um acionista que não garante nem o futuro do jornal nem de seu principal capital, os assalariados’.


O site reproduzia três textos: o dos jornalistas, representados pelo Conseil de Surveillance de la Société Civile des personnels de Libération (SCPL), acionistas do jornal em 18,45% ; o da direção, assinado por Serge July, Antoine de Gaudemar e Louis Dreyfus; e o dos sindicatos que agrupam os jornalistas. O mais extenso era o da direção, que tentava acalmar os ânimos e explicar as dificuldades do jornal, que tem sobrevivido a duras penas numa economia em profundas transformações.


Mesmo um jornal de esquerda precisa se adaptar aos novos tempos de crise se não quiser fechar suas portas, dizia o texto da direção. Libération tem um prejuízo calculado em 120 mil euros por dia e prevê perdas acumuladas de 6 milhões de euros para 2005. Nem o aporte de 20 milhões de euros feito este ano pelo novo acionista Edouard de Rothschild foi suficiente para o Libé enfrentar a crise do mercado publicitário e a perda de leitores ocasionada, entre outros motivos, pela concorrência dos jornais diários gratuitos.


Resultado: o jornal anunciou o plano de demissões e os jornalistas decidiram-se por uma greve que tirou Libé das bancas por uma semana.


Queda na circulação


A queda-de-braço entre os sindicatos que defendem os empregos dos jornalistas e a direção do jornal rendeu muitas horas de reuniões e discussões. No fim da semana passado, Serge July divulgou um texto defendendo seus projetos para reabilitar o jornal : o ‘bimídia’, jornal e site, e mais a revista de fim de semana, que pretende ocupar o espaço deixado vago pelos gratuitos que não circulam no weekend. Além disso, July anunciou a reforma no ano que vem da versão papel do jornal, que pretende ser uma ‘revista cotidiana de atualidades’.


‘A revolução digital atinge o conjunto da mídia’, escreveu July. ‘Suas conseqüências sobre a imprensa diária, sobre a publicidade e sobre a comunicação em geral geram inquietação, o futuro é insondável, precisa ser reinventado na totalidade ou em parte. A época das certezas industriais acabou. O que torna muito delicada a condução do barco nesse momento de mutação.’


Sempre preocupado com a tradição de jornal de esquerda, Libération pretende estimular a diversidade de pensamento, enfatizada no texto de July, que lembra que o jornal continua fiel a seu engajamento da década de 1970. Mas o leitorado do jornal envelheceu e ele não soube conquistar as novas gerações. Hoje, somente 28% dos leitores têm entre 15 e 34 anos. A circulação caiu 7,5% em 2004, e mais 1% neste ano. Ao todo, o Libé perdeu 30 mil exemplares desde 2001, estabilizando sua circulação em torno de 140 mil exemplares diários.


E o banqueiro Rothschild não está disposto a continuar perdendo 6 milhões de euros por ano para manter um jornal de antigos maoístas sexagenários.

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