Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O maniqueísmo das agências de notícias

Em termos territoriais, Israel ocupa um espaço insignificante, se comparado às dimensões do Brasil. O Estado, fundado em 1948 por David Ben Gurion, é do tamanho de Sergipe, o pequenino estado do Nordeste brasileiro. Mas, ao contrário do Brasil, sua relevância geopolítica o coloca no epicentro do noticiário internacional como área em permanente situação de conflito. O confronto diário entre israelenses e palestinos asseguram às agências de notícias um leque de informações normalmente pontuado por cenas sangrentas, que traduzem a atmosfera de permanente tensão.

Mas esse quadro está longe da violência urbana de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo: ‘Noventa e nove por cento dos atos de violência aqui não são vistos no dia-a-dia de quem mora em Tel-Aviv ou Jerusalém’, atesta a jornalista Daniela Kresch, há um ano correspondente da Globo News em Israel. O cenário, porém, não é de idílio – atentados terroristas atingem cidades israelenses distantes dos pontos explosivos, como os territórios palestinos e a Faixa de Gaza, mas ‘são eventos imponderáveis, e não são diários’.

Eu seu posto de observação em Tel-Aviv, onde mora, Daniela vê com reservas a cobertura realizada pela imprensa internacional. ‘As agências de notícias e as redes de TV internacionais como CNN e BBC não cobrem os fatos. Elas ‘opinam’ sobre o que está acontecendo’, disse. ‘Para cobrir os fatos, elas teriam que ouvir sempre todos os lados do conflito, mas fica mais fácil ouvir sempre as mesmas fontes, aquelas que estão sempre à disposição para demonizar o inimigo’.

Resulta que uma área tão complexa é tratada sob um viés reducionista. ‘No caso do conflito entre palestinos e israelenses, existe outro agravante: não há um correspondente dessas agências e televisões que não tenha vindo para a região com idéias pré-concebidas sobre quem é o ‘mocinho’ e quem é o ‘bandido’ da história’, nota Daniela. ‘O maniqueísmo é claro.’

Formada em Jornalismo pela PUC-Rio, mestre em Relações Internacionais pela George Washington University (EUA), Daniela Kresch, 35, iniciou a carreira em 1990 no Jornal do Commércio. Trabalhou nas redações dos principais jornais cariocas, como O Dia, O Globo, Jornal do Brasil, e na revista IstoÉ/Dinheiro, normalmente em Economia e Internacional. Além de atuar como correspondente free-lance da Globo News e da rádio portuguesa TSF, ela faz reportagens para o JB (onde trabalhava antes de se mudar para Israel), o Estado de S. Paulo, a BBC/Brasil e a CartaCapital.

Por e-mail, ela concedeu a entrevista que se segue, na qual fala do seu novo cotidiano numa terra que considera ‘esquisita’, de gente ‘estranha’ que ama o Brasil.

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Você respondia pela editoria de Internacional do Jornal do Brasil antes de seguir como correspondente da Globo News para Israel. Estando agora no coração da notícia, o que mudou na sua percepção sobre os acontecimentos na região?

Daniela Kresch – Muita coisa mudou na minha percepção sobre o que acontece em Israel quando eu vim para cá, em setembro de 2003. E isso apesar de eu já ter morado dois anos no país (um ano em 1986 e outro entre 1992 e 1993). A realidade da região mudou. E continua mudando. Sempre para pior, claro. Em 1986, antes da primeira intifada, o clima era de esperança, de portas abertas para o futuro. Agora, todos estão pessimistas. Eu não esperava tanto baixo-astral. Não sei se estou no ‘coração da notícia’, porque não estou nos territórios palestinos, não costumo freqüentar ou trabalhar em lugares que se vêem nas imagens das agências de notícias (Hebron, Faixa de Gaza, Ramala.). Ao contrário da violência urbana no Rio ou em São Paulo, 99% dos atos de violência aqui não são vistos no dia-a-dia de quem mora em Tel-Aviv ou Jerusalém. É claro que há atentados terroristas no centro de cidades israelenses, mas são eventos imponderáveis, e não são diários. Estou no ‘centro da notícia’ em outro sentido: aqui escuto rádio, vejo televisão e leio jornais constantemente, então fico sabendo em tempo real o que está acontecendo. E mais do que isso: ouço e leio explicações, análises e opiniões o tempo todo, o que ajuda a montar o quebra-cabeças que é essa região. Sem contar as entrevistas que faço com políticos e personalidades locais. Se alguém que nunca veio a Israel acha que entende o que está acontecendo aqui, erra muito. Não tenho respeito por jornalistas ou comentaristas brasileiros que opinam sobre a situação tendo como base reportagens superficiais da CNN.

Em artigo, você se referiu a Israel como uma ‘terra estranha’, com ‘gente esquisita’. Como chegou a essa conclusão? Com o avançar da sua experiência, ela se mantém?

D.K. – No artigo, eu falava sobre os hábitos alimentares no Rio e em Tel-Aviv, mais especificamente, sobre como as pessoas costumam cozinhar mais e comer mais em companhia de suas famílias aqui em Israel. Claro que usei a comida como analogia, mas quis dizer, no fim das contas, que as diferenças culturais entre brasileiros e israelenses são enormes. Não há ninguém que mude de país sem sentir esse choque cultural. Os israelenses são ranzinzas e grossos como os franceses. Mas também são hospitaleiros e caseiros como os italianos.Aqui não se pede desculpas ou se diz ‘por favor’. Mas, por outro lado, as pessoas são super-sinceras, sem a lenga-lenga brasileira. Não há jeitinhos, por aqui. Isso tudo é estranho para mim, e, claro, vou penar para me acostumar.

Como correspondente, convivendo nessa sociedade estranha, você tem encontrado adversidades para desenvolver seu trabalho?

D.K. – Não tenho encontrado muitas adversidades. Falo a língua, e isso abre muitas portas. Além disso, quando digo que sou do Brasil, as pessoas aqui abrem um sorriso de orelha a orelha. Os israelenses amam o Brasil. Ouvem música brasileira, costumam viajar para o Nordeste no Carnaval e praticam capoeira (há uma febre de capoeira por aqui). Por outro lado, se quero entrevistar uma personalidade importante, acabo ficando de lado, porque não sou americana ou inglesa. O Brasil não tem importância em termos políticos para os israelenses. Mas, em geral, as pessoas são relativamente acessíveis. Não têm estrelismos.

Jornalistas brasileiros que têm feito cobertura em regiões em guerra, como o Iraque, costumam afirmar que, em termos de risco, cidades como Rio e São Paulo são mais perigosas. Você concorda?

D.K. – Concordo. Eu me sinto muito mais segura no meu dia-a-dia aqui em Israel do que no Rio de Janeiro. Posso deixar a janela do meu carro aberta sem medo de ser assaltada num sinal de trânsito. Posso andar na rua sem receio de ter minha bolsa arrancada. Posso estacionar o carro e saber que ele estará no mesmo lugar quando eu voltar. Aqui ainda tem caixa eletrônico no meio da rua (no Rio, por causa da violência, quase todos os caixas ficam dentro das agências bancárias). Não há corrupção na polícia, não há seqüestros-relâmpago. Sempre digo que se a CNN mandasse uma equipe para o Morro do Alemão, no Rio, faria reportagens tão chocantes quanto no Oriente Médio. No ultimo relatório de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, Israel foi qualificado como o 22º país no mundo em desenvolvimento. O Brasil é número 72. Aliás, segundo o IDH, vive-se melhor nos territórios palestinos do que no Brasil. A Palestina ficou em 71º lugar no ranking do IDH em 2003.

Nesse período em Israel, você já viveu alguma situação de risco?

D.K. – Sim, tive que fazer três visitas a Gush Katif, o maior grupo de colônias israelenses na Faixa de Gaza, para uma matéria que acabou saindo na revista Carta Capital. Na primeira visita, fui em companhia do meu namorado, que conhece a região. Dirigimos normalmente pela estrada que leva ao grupo de colônias. Tive certo receio, mas nada demais, já que há tempos nenhum ataque acontecia na estrada ou em Gush Katif. No dia seguinte, no entanto, um palestino metralhou uma israelense e suas quatro filhas justamente na estrada por onde tínhamos passado 24 horas antes. Na segunda visita, tive o cuidado de deixar meu carro no posto de controle na fronteira com a Faixa de Gaza e subir num ônibus com janelas à prova de balas. Pensei que tinha terminado a matéria, mas percebi que faltava mais uma entrevista, que só poderia ser feita num dia e hora específicos. Não havia nenhum ônibus à prova de balas para eu pegar, e meu namorado não podia me acompanhar. Então tive que ir sozinha, de carro, pela tal estrada. Suei frio, mas fui. No mesmo dia, caíram três mísseis Qassam em Gush Katif. Nenhum em cima de mim, por sorte.

A experiência tem confirmado o que você assimilou no mestrado em Relações Internacionais? Ou a práxis jornalística tem sido mais transformadora?

D.K. – Não sei onde a práxis começa e o estudo termina. Só sei que as duas coisas juntas fazem um bom profissional. As duas são necessárias. No Brasil, ainda há jornalistas ‘da antiga’ (da época em que nem curso superior de Jornalismo existia), que acham que estudar é balela. ‘O importante’, dizem eles, ‘é ter um bom caderno de telefones’. Não é verdade. Você pode ser um bom repórter, cheio de fontes, sem estudar, mas vai ter mais dificuldade em entender as circunstâncias do que está cobrindo. Sua matéria vai sair sem profundidade. Banal. Isso é ainda mais importante quando se trata de jornalismo internacional. Se você não entender por que aquele conflito está acontecendo, o que há por trás dele, você vai estar contando uma história sem alma e, às vezes, com erros básicos. Muitas vezes sinto que quem cobre internacional no Brasil não faz a menor idéia do que está falando. Se bobear, não sabe a capital do país do qual está falando. É simplesmente mau jornalismo.

Nos últimos anos, as empresas jornalísticas no Brasil reduziram a presença de correspondentes no exterior. Qual o impacto dessa decisão na qualidade da informação oferecida pelas editorias de internacional?

D.K. – O impacto é enorme. Como comentei acima, há pessoas nas editorias de Internacional dos jornais (não todos, claro) que não sabem a capital dos países sobre os quais estão escrevendo. Os profissionais dessa área foram transformados em meros redatores, em pessoas que editam textos. Jornalistas têm que ir a campo, têm que entender o clima da história, as motivações das pessoas, têm que pôr o pé no chão. Por falta de interesse e de dinheiro, os jornais brasileiros acham que mandar um estagiário traduzir reportagens da Reuters ou da France Presse é o suficiente. Não é. Isso causa dois problemas: o primeiro é a falta de investimento no jornalista da casa, naquele repórter que pode ir a campo, no exterior ou no Brasil, cavar uma historia exclusiva, inteligente, revolucionária, com a cara dos leitores daquela publicação específica. O segundo problema é mais prático. Nem sempre as reportagens das agências são claras, definitivas, mostram todos os lados. E o editor não pode ligar para o repórter da agência para pedir mais apuração, mais esclarecimentos, mais informações. Nesse sentido, é como se as agências de notícia ditassem o que vai ser publicado nos jornais, e não os editores dos jornais. É uma inversão do trabalho jornalístico.

Em sua opinião, a mídia internacional tem coberto com eqüidade os acontecimentos desse lado do mundo?

D.K. – Na minha opinião, não. As agências de notícias e as redes de TV internacionais como CNN e BBC não cobrem os fatos. Elas ‘opinam’ sobre o que está acontecendo. Para cobrir os fatos, elas teriam que ouvir sempre todos os lados do conflito, mas fica mais fácil ouvir sempre as mesmas fontes, aquelas que estão sempre à disposição para demonizar o inimigo. No caso do conflito entre palestinos e israelenses, existe outro agravante: não há um correspondente dessas agências e televisões que não tenha vindo para a região com idéias pré-concebidas sobre quem é o ‘mocinho’ e quem é o ‘bandido’ da história. O maniqueísmo é claro. Os repórteres que se baseiam na Cisjordânia, por exemplo, não ouvem, nunca, o lado israelense. Um exemplo é o que aconteceu em 2002, na época do então chamado ‘massacre de Jenin’. Eu estava na redação do JB quando recebi a primeira reportagem do jornal britânico The Guardian na qual fontes palestinas juravam que o exército israelense tinha massacrado mais de 400 civis numa de suas incursões à cidade. O Guardian ‘comprou’ a história cegamente, sem provas nem checagem. O mundo inteiro ficou falando do ‘massacre’ por semanas, até que ficou provado que morreram, na verdade, 49 palestinos, a maioria militante de facções radicais, e 23 soldados israelenses. Esse tipo de manipulação acontece diariamente.

As ferramentas jornalísticas tradicionais têm sido suficientes para fazer face às transformações impostas pela globalização?

D.K. – Claro que não. A globalização é mais rápida do que o jornalismo. Mas não posso negar que a internet faz uma diferença tremenda. A mais recente novidade são os blogs, que têm a liberdade de falar sobre tudo e todos, em tempo real, sem edição. Mas a liberdade na internet também tem seu lado ‘negro’. Proliferam na rede sites de grupos radicais que ensinam até mesmo como fabricar bombas.

Qual a sua visão particular sobre o conflito entre israelenses e palestinos?

D.K. – Essa é uma pergunta complicada, porque passei a minha vida inteira tendo que provar a editores e colegas que, apesar de ser judia e ter morado em Israel, posso ser – e sou – uma jornalista que ambiciona a neutralidade, mesmo que ilusória. Claro que tenho posições pessoais, mas as guardo para conversas com amigos.

Como você sente o termômetro diário do cotidiano aí em Israel, com a ameaça latente de atentados? Há um permanente clima de tensão?

D.K. – O clima é de tensão, mas menos do que se pensa. Os israelenses estão acostumados com o terrorismo, se é que é possível se acostumar com isso. Em Israel, as pessoas acreditam que continuar a vida, o dia-a-dia, apesar dos ataques, é o mínimo que elas podem fazer para mostrar que não capitulam diante do terrorismo.

De acordo com a sua vivência nessa região, é possível vislumbrar no horizonte uma solução a médio prazo para esse conflito? A paz é possível?

D.K. – Essa é a pergunta mais importante, feita a todos os lideres regionais, há anos. Ao meu ver, a paz é possível, mas não a vejo no horizonte. A pouca confiança que existia entre palestinos e israelenses na década de 90 acabou totalmente com a atual intifada palestina, os atentados terroristas e as respostas truculentas do exército. Se eu soubesse como reverter essa situação, pedia emprego na ONU.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (http://www.sergipe.com/balaiodenoticias)