Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O mito sob fogo cruzado

Desde que revelou em depoimento à Justiça que sabia da identidade secreta da agente da CIA Valerie Plame, ocultando o fato dos seus editores no Washington Post, Bob Woodward tem freqüentado o noticiário numa posição bem distinta daquela que o consagrou como um dos jornalistas mais importantes dos Estados Unidos, depois de investigar, com Carl Bernstein, o escândalo Watergate. Por seu enfoque da invasão do Iraque, no livro Plano de Ataque, tido como simpático a Bush, e por sua proximidade com fontes do Pentágono, Woodward tem recebido duras críticas dos adversários. Envolvido em episódios que parecem arranhar sua credibilidade, seria o caso de perguntar: mudou Bob Woodward, ou mudou o jornalismo?

No longo artigo ‘The man with the inside scoop’, publicado em 28/11 no Washington Post, o crítico de mídia do jornal, Howard Kurtz, analisa a relação perigosa de Bob Woodward com o poder – enquanto destampa a polêmica instalada em sua própria redação.

Kurtz observa que ‘foi uma imagem cinematográfica que atraiu milhares de jovens para o jornalismo: Robert Redford persuadindo Hal Holbrook a lhe fornecer informações na garagem de um estacionamento mal iluminado’. Contudo, hoje o enredo é muito diferente daquele de três décadas atrás. As fontes de Bob Woodward, localizadas nas altas esferas da administração Bush, ‘estão moldando a história, em lugar de revelar um modelo de corrupção no estilo de Watergate’. Isso tem gerado críticas aos métodos jornalísticos de Woodward, já que vêm dessas fontes as informações que suprem as narrativas dos seus best-sellers [ver remissões abaixo].

Mas Kurtz acredita que as críticas dirigidas ao repórter têm um quê de ressentimento, pelo status privilegiado que ele conquistou no Post. Enquanto os demais jornalistas têm a obrigação de produzir matérias a partir das informações conseguidas com as fontes, Woodward as transforma em livros, escritos na comodidade de sua casa em Georgetown. E para isso é pago pelo Post. Ouvido, o editor-executivo Leonard Downie Jr. destaca os méritos do livre-trânsito de seu repórter mais célebre. O acesso de Woodward a fontes privilegiadas tem ‘produzido muitas informações sobre a atividade interna da Casa Branca, da Casa Branca de Clinton, do primeiro mandato de Bush e sobre documentos que ninguém mais tem obtido’.

Livros extensos

Downie Jr. abriu o jogo: admitiu que Woodward passa meses sem fazer qualquer contato com o Post, mas que agora estabeleceu-se um acordo para que se comunique com mais freqüência. Além disso, visando amenizar as críticas da equipe, disse que ocasionalmente Woodward concorda em interromper suas pesquisas, oferecendo-se como voluntário para produzir novas reportagens para o jornal. Uma dessas empreitadas foi justamente o caso da agente Valerie Plame, cuja identidade foi revelada há três anos por alto funcionário da Casa Branca – o escândalo levou à prisão da repórter Judith Miller, depois demitida do New York Times, e a séria crise no governo [ver remissão abaixo]. Pois Woodward admitiu que a informação também lhe fora revelada em 2003.

Naturalmente que Bob Wooward não é o único jornalista americano a manter proximidade com o círculo íntimo do poder, comentou Kurtz: Walter Lippmann, Joseph Alsop e James Reston caminharam sobre o fio da navalha. Todos eles tinham ‘o ouvido de presidentes e primeiro-ministros’. Kurtz conta um episódio emblemático da relação do jornalismo com o poder. Em 1961, Kennedy chamou Walter Lippmann para uma conversa. Queria saber se ele publicaria em sua coluna no New York Times que os americanos responderiam militarmente, caso os soviéticos tentassem bloquear o acesso a Berlim. A coluna seria usada como um instrumento de diplomacia.

Tentações faustianas ocorrem com freqüência para atrair jornalistas aos braços do poder, o que infringe um dos princípios do jornalismo: a necessidade de fiscalizar o poder. No caso de Woodward, o diferencial, segundo Kurtz, são os predicados em torno do seu nome. Bob Woodward transforma o material garimpado nessas fontes em livros extensos. Diferentemente da maioria dos repórteres, ele não tira licença para produzir seus livros, editados pela Simon & Schuster: continua recebendo o salário do Post. Seu nome é uma marca: ele pode se dar o luxo de procurar os mesmos personagens diversas vezes, algo permitido a poucos autores de não-ficção cujos livros estão sempre no topo da lista dos mais vendidos. Bob Woodward é famoso, mais famoso do que a maioria das pessoas que ele entrevista.

Jornalista de acesso

Sua liberdade para trabalhar no que deseja é uma de suas regalias no Post. Ele não é obrigado a produzir regularmente para o patrão, ao contrário da maioria dos repórteres. ‘Desde a invasão do Iraque, em 2003’, diz Kurtz, ‘ele escreveu uma reportagem, um ponto de vista e uma resenha de livro’. A base de seu trabalho são, sem dúvida, fontes sigilosas, que Bob revela a pelo menos um editor. Ou revelava, até o affair Valerie Plame…

A relação com as fontes foi explicada pelo próprio Woodward em entrevista à CNN (em nenhum momento aceitou ser entrevistado pelo Post a respeito do caso Plame). ‘Para conseguir o que está no fundo do barril’, disse Bob, ‘você tem que estabelecer relações de confiança com pessoas em todos os níveis do governo’.

Mas se há todo um ar de cerimônia com as fontes, onde fica o leitor nessa história? Mantém a mesma confiança no trabalho de Bob Woodward, depois de todo esse imbróglio? Se o termômetro for a opinião do leitor, ele está em apuros. Em chat recente ancorado por Downie Jr., o tom das intervenções era francamente hostil. ‘Eu considerava Mr. Woodward um herói’, disse um leitor que participou do chat. ‘Mr. Woodward parece mais interessado em proteger seu livro do que em cobrir as notícias’, disse outro.

A relação de Woodward com as fontes tem provocado críticas em diversos quadrantes, inclusive no meio acadêmico. Jay Rosen, professor de Jornalismo da Universidade de Nova York, não poupou o mito: ‘Ele se transformou num jornalista de acesso, um insider’. Segundo Kurtz, as críticas mais duras, porém, vêm dos liberais ‘que admiravam o papel de Woodward por ter derrubado Richard Nixon, mas que detestam sua relação com o presidente Bush’. Manchete da revista Mother Jones resumiu tudo: ‘Repórter que um dia pôs abaixo uma administração corrupta agora protege outra’.

Visão ‘distorcida’

Downie Jr. tem mais farpas. ‘Woodward cometeu um erro sério ao não informar sobre Plame’, disse. Woodward é admirado no Post, ‘mas uma série de incidentes tem feito a equipe questionar sua lealdade ao jornal’, continuou Kurtz. Um dos pecados capitais cometidos por Bob Woodard foi furar o próprio jornal, ao oferecer em primeira mão à Associated Press um exemplar de seu livro Plano de Ataque. E não foi o Post o primeiro a revelar que a identidade do Garganta Profunda era Mark Felt, e sim a Vanity Fair. Para completar, Woodward divulgou declaração em que afirmava que não responderia às perguntas do pessoal do Post, após depoimento ao procurador que investiga o caso Plame. A desculpa de Woodward? ‘O princípio da confiança’, o mesmo que norteou Judith Miller, do NYT, a ficar de bico calado alegando sigilo de fonte. Os críticos puseram a dupla na mesma vala: eles teriam tido pouca consideração com seus jornais.

David Gergen, professor de Harvard e editor do U.S. News & World Report, ex-assessor de Nixon, também alfineta Woodward. ‘Acredito que a política de Bob mudou um pouco nos últimos anos. Ele está mais solidário com o poder, especialmente com os republicanos’. Porém, Gergen faz uma ressalva: ‘Depois de 30 anos como um pioneiro, Woodward não merece o nível das críticas que lhe têm feito’.

É preciso acrescentar que os livros de Bob Woodward sempre foram alvo de controvérsia. Isto inclui uma entrevista com um ex-chefe da CIA, William Casey, realizada no hospital, pouco antes de sua morte. A mulher de Casey se queixou, ao ler a entrevista, de que as condições do marido não permitiriam que ele desse as respostas que deu ao entrevistador. Os livros de Bob Woodward sobre a administração Clinton também lhe renderam polêmica. O ex-assessor de imprensa de Clinton Mike McCurry disse que nem todos se dispuseram a colaborar com Woodward à época. Por isso, o repórter teria tido uma visão ‘defeituosa e distorcida’ dos fatos.

‘Fatos sobre fatos’

No entanto, nada se compara à acidez das críticas que têm sido impostas ao trabalho de Bob Woodward no governo Bush. O acesso irrestrito a fontes como Dick Cheney, Colin Powell, Andrew Card, Donald Rumsfeld e outros, somado à ‘atmosfera polarizada’ da América nestes dias, tem assegurado a Woodward a pecha de insider, alguém que obtém o furo por estar do lado de dentro da informação, pegando-a diretamente das mãos da fonte interessada no assunto (daí o título do artigo, ‘The man with the inside scoop’).

O que dizem os republicanos dessa proximidade de Woodward com os seus falcões? Segundo Mary Matalin, ex-assessora do vice-presidente Dick Cheney, ‘há interesse da Casa Branca em ter uma fonte neutra escrevendo sobre as decisões de Bush’. Isso explicaria o livre acesso de Woodward. Mary acrescenta que há um ‘profundo respeito pelo trabalho do repórter do Post‘.

Para Bob Woodward, seu trânsito pelos corredores da Casa Branca não modificou seu método de trabalho. Trata-se do mesmo caminho que seguiu para chegar a Nixon e Watergate. Ou seja, é uma questão de empilhar fatos sobre fatos a partir de uma fileira de fontes, com a diferença de que hoje ele tem acesso ao poder. Na visão de Woodward, ‘Bush é apenas uma voz numa narrativa complexa que não lança necessariamente o presidente numa luz favorável’.

Nódoa na biografia

É tudo assim tão simples? ‘O que explica então a recente tempestade de críticas?’, pergunta Howard Kurtz. Segundo Jeff Leen, editor-assistente do Post para investigações, ‘há um enorme fator de inveja desse cara’. Segundo ele, as pessoas gostam de ver a queda do rei. ‘Há muitos críticos que não conseguiriam carregar os sapatos de Woodward, mas estão ponderando se ele deve manter o emprego’. Sobre o trabalho do repórter no 11 de setembro, disse: ‘O homem era um dínamo. Tudo estava um inferno, e ele saiu e voltou com uma matéria. Ele faz reportagem em triangulação. Ele retorna às pessoas, e retorna, e retorna’. Mas, como é de se supor, não é fácil lidar com uma estrela. No ambiente da redação, tudo muda de figura. ‘As pessoas são obviamente intimidadas por ele. Você não se aproxima de Bob Woodward e lhe dá uma ordem como daria a outros repórteres’.

Entre os historiadores, há ressalvas e elogios ao trabalho de Woodward, que costuma reconstruir cenas sem identificar as fontes. Essa prática lhe valeu crítica de Robert Dallek: ‘Se não se sabe de onde vem a informação, isso diminui o valor do livro’. Mas o que parece defeito para Dallek soa como virtude para o historiador Rick Shenkman, da George Mason University. Ele reconhece que os livros de Woodward são muito importantes, numa era em que presidentes e seus assessores não mantêm mais cartas ou diários, com receio de intimações. ‘Ele está servindo de meio para essas pessoas’.

Levando-se em conta os prós e contras das críticas ao mito, somente o passado de Bob Woodward deve chegar à posteridade. Seu acesso ao círculo do poder, analisado à luz da América fundamentalista, tem soado como uma espécie de rendição aos princípios de Bush, uma nódoa na biografia de um dos maiores repórteres investigativos de todos os tempos. ‘Pela sua fama e fortuna, Woodward será para sempre comparado ao pobre repórter de sapatos baratos que investigou um presidente três décadas atrás, e não por ter se sentado com um presidente para longas conversas em seu rancho do Texas’, concluiu Howard Kurtz.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias