Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os primeiros jornais sob controle estrangeiro

Um certo clima de pós-guerra flutua nas redações dos principais jornais da Alemanha. O déja-vu tem lá sua razão de ser: na terça-feira (25/10), um grupo jornalístico inglês e investidores norte-americanos fecharam acordo para comprar a editora Berliner Verlag.

Como essa empresa jornalística – que publica três jornais, entre eles o diário Berliner Zeitung – concentra seus negócios na capital, o simbolismo é quase perfeito. Só faltou um empresário russo assumir outro jornal e assim dividir Berlim mais uma vez.

Pela primeira vez, estrangeiros deterão o controle acionário de órgãos da imprensa alemã. O grupo Mecom e os investidores Veronis Suhler Stevenson deverão pagar cerca de 150 milhões de euros ao grupo Holtzbrinck pelo maior jornal de Berlim.

Holtzbrinck adquiriu há três anos o Berliner Zeitung da empresa Gruner + Jahr, mas foi obrigado pelo governo a vender porque já possuía o Tagesspiegel, o segundo jornal da capital. Enquanto a tiragem média diária do Berliner Zeitung é de 150 mil exemplares, o concorrente fica em torno de 80 mil.

‘É preciso cuidado’

A gritaria contra o negócio desnacionalizante foi enorme. A ministra de Cultura do governo socialdemocrata, Christina Weiss, disse que não se trata ‘de uma mera transação econômica, que pode ser decidida pelo mercado financeiro, pois tem mesmo a ver com a cultura do país’.

O presidente do Sindicato dos Jornalistas Alemães, Michael Konken, espera o pior: ‘Nada tenho contra investidores estrangeiros, mas Montgomery vai querer aumentar o lucro da empresa às custas da redução de salários e demissões em todos os setores. A qualidade jornalística vai perder com isso’.

Os 400 funcionários da editora vendida não ficaram atrás. Em anúncio de página inteira, afirmaram que ‘o capitalismo gafanhoto chegou à imprensa’. A frase é originalmente do líder social-democrata Franz Münterfering. Durante as eleições de setembro passado, ele denunciou os investidores estrangeiros que compram empresas em dificuldades, demitem empregados e revendem rapidamente os ativos.

A ironia é que, no calor da campanha eleitoral, o chefe de redação do Berliner Zeitung, Uwe Vorkötter, discordou do político: ‘Será que esses empresários internacionais são responsáveis pelos nossos problemas econômicos e de desemprego? Com toda licença, isso é uma bobagem’.

Enquanto as negociações ainda aconteciam, Vorkötter atacou o dono da Mecom, David Montgomery: ‘Ele é pior do que Murdoch, pior do que Maxwell’, referindo-se aos magnatas Rupert Murdoch, dono de TV e jornais nos EUA e Inglaterra, e Robert Maxwell, que faliu.

Depois que o negócio foi fechado, Vorkötter aceitou continuar no cargo. Ainda jurou algo impossível: vigiar para que Montgomery cumpra suas promessas. ‘Vamos manter os elevados padrões de qualidade jornalística, a integridade editorial e a boa gerência da editora’, disse Montgomery. Ele afirmou ainda que vai investir mais de 10 milhões de euros para modernizar a redação e a gráfica. Segundo ele, não haverá demissões.

Em vários jornais alemães, Montgomery foi apresentado como ‘o homem mais odiado da imprensa inglesa’. Ao assumir em 1992 o grupo Mirror (de Maxwell, que editava o Daily Mirror e The Independent), ele demitiu sumariamente mais de 100 jornalistas. Após seis anos, aumentou o valor patrimonial do grupo de 230 milhões de libras para 1 bilhão e 200 milhões de libras.

Em entrevista a jornais da concorrência, Montgomery propôs à chefia de redação e à gerência geral participação no capital da empresa, em torno de 10% para cada segmento. Ele anunciou ainda que dera apenas o primeiro passo: ‘Certamente, vamos adquirir outros jornais. O grande futuro do setor jornalístico repousa na sua consolidação. Para quem quiser criar um complexo jornalístico, não existe plataforma melhor do que Berlim’.

Foi o suficiente para o presidente do Sindicato dos Jornalistas Alemães, Michael Konken, pedir ao órgão governamental que vigia a concorrência para sustar a operação. ‘É preciso tomar cuidado para que os financistas não usem a editora Berliner Verlag como trampolim para se expandir no mercado alemão. A liberdade de imprensa e a diversidade empresarial não devem sacrificadas no altar dos negócios’, disse.

Monopólios e oligopólios

Bela frase. Pena que não confira com a situação da imprensa alemã. Embora existam em torno de 320 jornais locais controlados por famílias, a maioria dos mercados é dominado por grupos que impedem a entrada de novos concorrentes. Um dos maiores é o Waz, sediado na cidade de Essen, que controla 30 diários. Seu poderio se estende a sete países do Leste europeu, como a República Checa, Polônia e Hungria, além de ser acionista do maior jornal popular da Áustria.

Outro é o conglomerado DuMont Schauberg, de Colônia, que edita o segundo maior jornal popular alemão, o Expresso. Segundo especialistas, ambos empresários cobriram a proposta feita pelo consórcio anglo-americano para comprar a Berliner Verlag. Mas nem sequer foram chamados a negociar.

A história política recente da Alemanha mostra que não há como resistir a esse rolo compressor anglo-americano. Foi a partir de um pacto entre vencedores que nasceu a atual imprensa alemã. Depois de 1945, os EUA, Inglaterra e França distribuíram licenças de editoras a pessoas que estavam pouco comprometidas com o nazismo derrotado. A então União Soviética fez o mesmo na República Democrática Alemã, mas sob o controle do partido único.

Com o tempo, os jornais transformaram-se em máquinas de lucros e influência política. Desde o final do anos 1990, a crise econômica do país, a queda da publicidade e a fuga de leitores enfraqueceram os barões da imprensa regional.

Mesmo jornais de âmbito nacional como o Frankfurter Rundschau sucumbiram à crise. Atolado em dívidas, o tradicional diário de centro-esquerda editado em Frankfurt foi comprado em 2003 pela editora do Partido Social Democrata (SPD). Comenta-se que, na época, Montgomery já teria tentado, sem sucesso, adquirir esse jornal. Afinal, o SPD estava no poder, liderando uma coligação com o Partido Verde. Ainda continua no poder, mas agora divide o espaço com o partido democrata cristão (CDU).

Aproveitando esta mudança política, o consórcio Mecom-VSS poderá trazer um pouco de concorrência entre os barões regionais e vice-reis nacionais. Afinal, a desnacionalização da imprensa alemã não é só uma questão de origem do capital. É também uma disputa entre modelos empresariais diferentes.

Enquanto empresas de médio porte podem ser vítimas de investidores atrás de ganhos de curto prazo, os grupos maiores querem lucrar com a abertura ao capital estrangeiro. É o caso da editora alemã Gruner + Jahr, que quer se desfazer do jornal regional Sächsischen Zeitung, que circula em Dresden. Investidores ingleses como a companhia Candover têm interesse no jornal.

Se a consolidação agora em andamento alimentar monopólios ou oligopólios aí sim haveria riscos para a liberdade de imprensa, a sociedade e os jornalistas.

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Jornalista brasileiro radicado na Alemanha