Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os repórteres sitiados do Iraque

Um informe da organização Repórteres Sem Fronteiras diz que não menos de 80 jornalistas foram mortos acompanhando a guerra no Iraque até agora. É um percentual muito maior do que o de soldados. A jornalista Jill Carroll, liberada pelos seus raptores três meses depois de capturada, pode considerar que ganhou a sorte grande.

Jill trabalhava como autônoma para um dos grandes jornais americanos. E foi raptada há 82 dias, enquanto o intérprete que a acompanhava, o iraquiano Allan Enwiyeeh, era morto na hora. Ela aparecera pela última vez em princípios de fevereiro, quando seus raptores anunciavam que seria morta no fim do mês. Entrou na sede de um partido trajando roupa de muçulmana praticante e portando carta em árabe pedindo que fosse encaminhada aos americanos. Diz que não sabe por que foi raptada nem liberada. A história não está bem contada. Terá havido uma negociação e um preço. Mas o que importa é que saiu viva de sua inesperada aventura. A carta recomendava que fosse encaminhada à ‘Zona Verde’.

‘Bagdá, a mídia sitiada’ (Baghdad: The Besieged Press) conta o que é ser repórter no Iraque. Orville Schell, reitor da Escola de Jornalismo da Universidade de Berkeley, Califórnia, uma das mais conhecidas, em texto publicado no número datado de 6 de abril da New York Review of Books (revista de ou sobre livros de Nova Iorque), que leio há anos. É imperdível; e essencial serem conhecidas as informações que transmite. Entende-se melhor o rapto de Jill, as mortes, as insatisfatórias informações sobre a marcha da guerra e a vida no país. Explica, inclusive, ter enfatizado no meu texto sobre a posse do governo do Hamas que ‘não estive em Gaza assistindo’ (ver ‘Hamas no poder e sem pretensão de mudar‘). Há riscos que superam os benefícios prováveis se assumidos. E muito perigoso ser ou parecer estrangeiro nas áreas conflagradas. Foi num ato imbecil e desnecessário que fui atingido por pedrada, como contei.

Orville, excelente repórter, observa que a preocupação com segurança reduziu o número de vias para o tráfego de veículos em Bagdá. Em conseqüência, passaram a ser muito freqüentes os congestionamentos, ideais para as ações de grupos terroristas ou simples bandidos que proliferam em tais ambientes. Na área sob a administração da Autoridade Palestina há um numero desconhecido e grande de organizações com ideologias e de bandidos com chefetes. Falta lei. O próprio Hamas, que acaba de assumir o governo, declara, por porta-vozes, que o falecido Yasser Arafat condenava todos os ataques, mas ‘nada fazia para impedi-los’ e que eles, os do partido islâmico, falam menos, mas farão mais, para impor ordem. O Hamas, agora administração dos palestinos, está sendo responsabilizado pelo atentado no qual morreram, junto com o homem-bomba disfarçado de judeu religioso, os israelenses que deram carona àquele que viria a matá-los. Entre eles a brasileira Helena Halevy. Quem é apanhado nos congestionamentos de Bagdá reza para deles sair vivo. A violência é horrível, mas acaba sendo parte da anormal normalidade. Todos os que podem contratam seguranças cujas instruções obedecem, pois é o jeito. O medo é companheiro constante.

Shahid

Orville está mais interessado em ver como trabalham os jornalistas, pois é o que contará aos alunos. E ele afirma que ouviu de muitos que o perigo crescente faz com que sejam prisioneiros de seus gabinetes de trabalho. Ninguém vai a lugar algum sem guarda-costas bem armados. Carros blindados são os veículos utilizados. Existem, diz, acima de 60 empresas militares particulares, empresas de guarda-costas que servem às organizações jornalísticas estrangeiras cujos escritórios são pequenas fortalezas. Estima-se um total de 25 mil guardas profissionais, a maioria ingleses, sul-africanos e americanos. E a Associação de Empresas de Segurança Particular do Iraque, espécie de sindicato, cuida dos interesses de todas. Os militares profissionais em serviço das forças invasoras estrangeiras já descobriram que é muito melhor negócio ser segurança particular, que, em certas circunstâncias, pode ganhar até mil dólares diários. E eles, os militares em uniforme, arriscam suas vidas por muito, muito menos.

O que se verifica na reportagem é que tais são os perigos da vida de jornalistas e tais as proteções de que carecem, e que repórteres sem tal infra-estrutura não podem trabalhar. E tudo começa no credenciamento, na zona verde, a ‘green zone’, área onde se vive separado do resto da cidade por um complicado sistema defensivo. O que se conclui das observações do visitante da Califórnia é que pouco – ou insuficiente – sabem os colegas jornalistas do que acontece no Iraque. Ou conseguem saber.

A guerra consiste de atos imprevisíveis como os ataques suicidas, as matanças de sunitas por xiitas e vice-versa, as degolas, as batalhas entre as forças estrangeiras e as iraquianas e governo contra os insurgentes. Uma guerra na qual não existem claras linhas entre os lados, uma guerra de inimigos em quase incestuosa convivência. Confrontos e matanças que raramente ocorrem em momentos e locais previsíveis, pois o campo de batalha é em todos os lugares. E se o jornalista por azar está perto para testemunhar, raríssimo evento, pode não sair inteiro para contar o que viu. Uma guerra na qual se depende do que é contado pelos porta-vozes oficiais ou em entrevistas obtidas com risco de vida. Uma guerra sem precedentes para servir à preparação do repórter ou utilizar como ilustração para preparar o candidato a jornalista. Pouco sobra dos motivos para se explodir e virar mártir, shahid. E lá se está convivendo ou sobrevivendo com o inacreditável.

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Correspondente iG em Israel