Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Paulo Machado

‘A cidadania está baseada no exercício dos direitos e deveres do cidadão e do Estado. Nossa Constituição estabelece os princípios e as regras para o convívio entre os cidadãos, entre estes e o Estado e os Poderes que o constituem. Mas fazer respeitar e cumprir o que está na Carta Magna requer conhecimento do que está ali escrito e porque foi escrito. Para isso é necessária a informação. Informação é direito e dever da imprensa – reza na Constituição.

É com essa compreensão que entendemos o que o leitor Paulo Roberto Henrique dos Santos escreveu para esta Ouvidoria que existe também em função de atender ao direito do cidadão à informação prestada pela Agência Brasil aos leitores. Paulo pede que sejam feitas matérias sobre o atendimento pelo Estado do seu direito a serviços bancários de qualidade por meio de um banco público, mais especificamente, pela Caixa Econômica Federal – CEF.

Diz o leitor em sua mensagem: ‘A reclamação é contra Caixa Econômica Federal. Gostaria de que fizessem reportagens sobre a má administração desse banco público. No mês de setembro, tive problemas na Agencia Ituverava-SP com a cobrança indevida de tarifas. Ao tentar ligar para os telefones de reclamação e da ouvidoria – nenhum funcionava. Se toda empresa tem que ter esses telefones funcionando, esse banco federal não cumpre a Lei. Ontem, fui usar o site para conferir o resultado das Loterias – também não estava funcionando. O pior, que os responsáveis por ouvir ou receber reclamações fingem que está tudo em ordem, deixam como está. O descaso e o retrocesso ocorrem por falta de punição. Se a imprensa falada e escrita fizesse reportagens nas primeiras páginas, logicamente ocorreria um desgaste da imagem da instituição e da diretoria. É preciso uma maior atuação da mídia em nosso país contra os abusos e desrespeitos principalmente por parte de funcionários públicos e suas autarquias. As aberrações cometidas pelos bancos, principalmente os públicos, cobrando tarifas até de aposentados e pensionistas, deveriam ser denunciadas no exterior, por entidades de Direitos Humanos internacionais, para que o presidente Lula sentisse na pele as falhas do atual governo que se aliou aos bancos privados, em vez de fiscaliza-los. As cobranças vergonhosas de dezenas de tarifas, com aumentos constantes, podem ser chamadas de ‘roubo’ legalizado contra os correntistas, patrocinando os lucros da casa dos bilhões desses bancos. Gostaria muito que entrevistassem a presidente da Caixa para cobrar dela uma posição.’

Sobre a demanda, a Agência Brasil respondeu: ‘Agradecemos o comentário do leitor e vamos avaliar a sugestão para reportagem’.

Quando o leitor cita que o atual governo ‘se aliou aos Bancos Privados, em vez de fiscaliza-los’ ele se refere às relações entre o Estado brasileiro e as instituições financeiras que desde os últimos anos do século passado se caracterizam pela afronta aos direitos do cidadão. Tais relações e seus transbordamentos sobre a mídia estão no artigo A linguagem da sedução, publicado na Revista do Brasil (*), edição de agosto, pelo jornalista Bernardo Kucinski. Nele são descritas as estratégias utilizadas pelo sistema financeiro para capturar a mídia – como os bancos conquistaram o jornalismo brasileiro implantando as privatizações e forjando o que o jornalista classifica de ‘uma sólida aliança conservadora’.

O jornalista, em seu artigo baseado em um levantamento inédito de 14 anos de reportagens sobre economia (entre 1989 e 2002), feito por uma pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da USP, diz: ‘Um dos mais surpreendentes achados da pesquisa foi que o Estado brasileiro tornou-se naquele período o principal indutor e difusor das propostas neoliberais. O governo predominou como fonte de reportagens em todo o período abordado. Vinha também do maior número de fontes em ‘off’, não identificadas. Não só os principais dirigentes do Banco Central no período vinham diretamente do mercado financeiro como o processo gerador de políticas públicas e do discurso de governo era por eles inspirado e dirigido. ‘O governo assumiu os interesses e a agenda do mercado financeiro, tornando-se praticamente o porta-voz dos bancos’, diz autora da pesquisa.’

Dessa sólida aliança, que perdura até hoje, herdamos a privatização dos bancos públicos, não de sua composição acionária propriamente dita, mas da lógica de seu funcionamento, regido na prática pelas chamadas ‘leis do mercado’, ou seja, a priorização dos lucros em detrimento de tudo o mais, inclusive da função e da responsabilidade social que justificaram sua criação e sua existência como executores de políticas públicas e de prestadores de serviços bancários.

Daí decorrem as principais ‘ aberrações cometidas pelos bancos, principalmente os Públicos, cobrando tarifas até de aposentados e pensionistas’ e ‘cobranças vergonhosas de dezenas de tarifas, com aumentos constantes, podem ser chamadas de ‘roubo’ legalizado contra os correntistas, patrocinando os lucros da casa dos bilhões de reais desses bancos.’, citadas pelo leitor.

Ao cobrar da mídia uma maior atenção sobre o assunto e sugerir que a ABr ouça a presidente da CEF, Paulo Henrique pediu que ‘fizessem reportagens sobre a má administração desse banco público ‘. Informar, divulgar e discutir os direitos dos cidadãos é um dos principais papéis que se espera da imprensa. Se o indivíduo não sabe que tem direitos ele fica sempre esperando que o Estado seja ‘bonzinho’ e atenda suas necessidades em termos de serviços públicos. Se ele é sabedor de seus direitos ele vai cobrar do Estado para que cumpra com suas responsabilidades. Jamais ficará esperando favores.

Na questão dos direitos a serviços bancários, a ABr pode ter perdido uma excelente oportunidade de discuti-los à luz dos acontecimentos da ultima greve dos bancários. Na recente cobertura a abordagem limitou-se a ouvir opiniões de sindicalistas de um lado e de gestores de outro, como se o que estivesse em confronto fossem apenas as reivindicações de uma categoria de funcionários públicos contra os interesses de seu patrão – o governo, sem contextualizar essas reivindicações a partir do processo que levou a atual situação dessa categoria. Enquanto o setor financeiro multiplicou várias vezes seus lucros, reduziu o pessoal empregado em mais de 50%.

Foram publicadas 47 matérias com 43 fontes: 38 (88% do total) eram representantes de entidades sindicais dos bancários. As demais fontes foram : a Febraban 3 vezes (7% do total) e o deputado federal Geraldo Magela (PT-DF), citado 2 vezes (5%).

Como Paulo Henrique, 28 milhões de correntistas da CEF estiveram durante os últimos 28 dias a mercê do funcionamento emergencial de uma instituição que é muito mais do que um banco. Além dos correntistas, a instituição atende a beneficiários de programas sociais, trabalhadores, jovens, idosos e desempregados. Nenhum deles foi ouvido pela ABr. Ou seja, uma parcela significativa da população brasileira não foi convidada para participar do debate e expressar sua indignação contra a paralisação do Estado em atender a seus direitos fundamentais, como veremos a seguir.

Além de banco, a CAIXA é também o principal agente de crédito para a aquisição da casa própria e um dos principais financiadores do desenvolvimento urbano, particularmente na área de saneamento básico. É o operador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, o que significa ser responsável pela centralização das contas, administração dos recursos e arrecadação e pagamento dos valores devidos a todos os trabalhadores formais do país. É ainda a instituição que cuida dos repasses do Seguro-Desemprego, dos benefícios sociais e dos programas federais de transferência de renda. Administra as Loterias Federais, cujos recursos, além de premiar apostadores, contribuem para a execução de ações oficiais e não governamentais de inclusão social. Como parte de sua missão, ela auxilia na execução da política de crédito do governo federal, conforme consta do Balanço Social da empresa de 2007 (**).

Não sabemos o quanto essas funções foram prejudicadas em função da greve, tampouco quais direitos foram afetados nem como, mas sabemos que a atual diretoria demorou 28 dias para negociar uma solução para o conflito. Toda greve pode e deve ser evitada e geralmente é o ultimo recurso do qual os trabalhadores lançam mão – quando não há mais perspectivas de chegarem a um acordo.

A greve, como instrumento legítimo de luta de uma categoria por melhores condições de trabalho e renda, foi coberta pela ABr apenas por meio de números: agências paradas, funcionários presentes em assembléias e manifestações, além dos percentuais, valores e benefícios negociados. Em nenhum momento se discutiu, por exemplo, por que as condições de trabalho no setor se tornaram tão precárias chegando ao ponto dos trabalhadores terem entre suas reivindicações a necessidade de contratação de milhares de novos funcionários, ou ainda, a questão do assédio moral que sofrem para cumprirem metas de venda de produtos, como se a instituição fosse um grande supermercado, citado pelos sindicalistas.

Organizada sob forma de empresa pública, a CEF integra o Sistema Financeiro Nacional, vinculada ao Ministério da Fazenda, está sujeita às suas decisões e à sua disciplina normativa. É também objeto de acompanhamento e fiscalização do Banco Central do Brasil. Estes organismos superiores de decisão também não foram ouvidos nas matérias da ABr, apesar de serem os principais responsáveis pela manutenção da lógica que prioriza os lucros.

A CEF é hoje um dos maiores empregadores do Brasil, com mais 100 mil colaboradores. Ao final de 2007, a empresa contava com 74.949 empregados concursados, 11.873 estagiários, 10.456 prestadores de serviços e 3.638 adolescentes aprendizes. A rede de atendimento contava com 22.628 unidades físicas em todo o país entre agências, postos de atendimento, correspondentes lotéricos, correspondentes bancários e salas de auto-atendimento, presentes em 5564 municípios. A paralisação de uma instituição deste porte pode ter prejudicado seriamente as funções do Estado brasileiro. Cerca de R$140 bilhões dos recursos do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC, do governo federal, passam por suas contas. O quanto foi comprometido e quais os custos sociais e financeiros advindos dessa paralisação não sabemos, pois a imprensa não se preocupou em levantá-los – mas os cidadãos já pagaram individualmente e continuaram pagando coletivamente essa conta, seja lá de que montante for.

O que os leitores esperam, a exemplo de Paulo Henrique, é ver tudo isso sendo debatido na esfera pública, ou seja, que a ABr cumpra com sua função e para isso é preciso saber onde está o interesse público nos fatos reportados, condição fundamental para qualificar o debate.

Até a próxima semana.

(*) ler em: http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/38/a-linguagem-da-seducao/view

(**) disponível em: http://downloads.caixa.gov.br/_arquivos/caixa/balanco_social/BALANCO_SOCIAL_2007.PDF’