Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Politicamente correto e homofobia

Fazer crítica diária de TV não deve ser uma tarefa fácil, pois nem sempre há o que se dizer de relevante. O resultado disso é a publicação de um tanto de ‘gosto disso’ ou ‘não gosto daquilo’. Vou dar um exemplo: o blog da colunista de TV de O Globo, Patrícia Kogut, traz diariamente na parte superior da tela uma seção em que ela dá uma nota dez e uma nota zero. Todos os dias, Kogut precisa laurear alguém com uma nota máxima e sancionar outra pessoa com uma avaliação negativa. Em 26/01/2011 ela deu a seguinte nota zero:




‘Para Leonardo Miggiorin, o Roni de Insensato coração. O ator ainda não encontrou o tom do personagem, está gritando muito em cena. Assim o público não entende o que ele diz e as piadas com Natalie se perdem.’


Pouco mais de dois meses depois, em 31/03/2011, ela confere ao mesmo ator uma nota dez:




‘Para Leonardo Miggiorin, que derrapou no início de Insensato coração, mas achou o tom exato do afetado Roni da novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, dirigida por Dennis Carvalho.’


Ninguém questiona o direito que a jornalista tem de opinar. No entanto, fiz questão de selecionar duas cenas de Roni, personagem de Leonardo Miggiorin, de Insensato Coração. A primeira cena foi exibida em 31/01/2011 e a segunda foi ao ar em 26/03/2011, ou seja, referentes à mesma época em que foram dadas as notas zero e dez respectivamente. Em ambas, podemos comprovar que o personagem manteve o mesmo ‘tom’ afetado de sempre. Em outras palavras, as cenas mostram que o ator não mudou sua forma de atuação. Não ‘gritou’ mais nem menos. Ele vem sendo o mesmo Roni desde o começo. Porém, por algum motivo, para Patrícia Kogut, sua nota, milagrosamente, de zero foi a dez.


Imagem e estereótipo


Quero dizer com isso que o zero inicial que o personagem de Miggiorin recebeu provavelmente se deve a um pensamento ‘politicamente correto’ segundo o qual os gays, representados de forma caricata nos anos 1970 e 80, começaram a ser retratados com mais verossimilhança, ou de forma menos ‘estereotipada’, a partir dos anos 90. A Próxima Vítima, de Silvio de Abreu, exibiu em 1995, o romance entre dois homens não afetados, interpretados por André Gonçalves e Lui Mendes. Desde então, essa tem sido a tendência de comportamento dos gays nas telenovelas brasileiras.


Paraíso Tropical, última novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, exibida em 2007/2008, levou esse estereótipo ao extremo oposto. O casal de gays masculinos, interpretados por Carlos Casagrande e Sérgio Abreu, que de tão viris e cuja troca de afeto era tão asséptica, em nada lembravam um casal – nem gay, nem hétero. Assim, o zero que Patrícia Kogut deu a Miggiorin no começo de Insensato Coração provavelmente se deveu a esse pensamento segundo o qual não é politicamente correto representar gays de modo afetado nas telenovelas. Isso, de acordo com essa visão, seria um retrocesso, comparável a voltar aos anos 1970 ou assistir ao Zorra Total, em que os personagens gays ainda têm o mesmo tratamento que tinham no passado.


Porém, o que talvez a jornalista não tenha percebido é que o estereótipo funciona para os dois casos: o estereótipo do gay afeminado e, por outro lado, o estereótipo do gay masculinizado. Durante os anos 1970 e 80, não se podia conceber essa segunda opção. Nas décadas seguintes, o movimento veio se tornando oposto, isto é, passou-se a condenar a representação do gay afeminado nas telenovelas. Em ambos os casos, são estereótipos em jogo e, cada um, à sua maneira, é redutor, pois condena a diversidade a limitar-se a uma unidade atomizada.


Insensato Coração, ao trazer personagens gays de várias gradações e tons, mostra que a mesma multiplicidade que se vê entre os héteros também é possível entre os gays. Dito de outro modo, Roni, personagem de Miggiorin, não depõe contra a imagem dos gays, pois essa imagem só existe enquanto estereótipo, enquanto categoria cristalizada.


‘Homofobia liberal’


Quero tocar num ponto um pouco menos visível, que é a homofobia camuflada de politicamente correto. De uns tempos para cá, o gay passou a ter espaço cativo nas telenovelas. Passou-se a ‘conceder’ um espaço à alteridade, àquilo que é ‘diferente’. Sempre, em cada novela, há ‘o’ personagem gay.


Daniel Borillo, professor de Direito da Universidade de Paris X – Nanterre e autor de Homofobia: história e critica de um preconceito, a que me refiro na citação a seguir, chamaria esse fenômeno de ‘homofobia liberal’, que:




‘preconiza a tolerância para com os homossexuais, mas considera que a heterossexualidade é a única a merecer o reconhecimento da sociedade e, por conseguinte, o único comportamento sexual suscetível de ser institucionalizado’.

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Jornalista e doutorando em Semiótica e Linguística Geral pela USP