Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por que eu tive que deixar The Times

Ele é um califa, eu suponho, quase da variedade do Oriente Médio.

Hafez al-Assad uma vez segurou minha mão por um longo tempo com um sorriso paternal. Certamente ele não pode ser tão mau, eu quase disse a mim mesmo – isso foi muito antes de dos massacres de Hama em 1982. Rei Hussein me chamou de “Sir”, juntamente com a maioria dos outros jornalistas. Estes potentados, em público, muitas vezes brincam com seus ministros. Erros podem ser perdoados.

O “Diários de Hitler” foi um erro de Murdoch, após se recusar a concordar com a mudança de opinião de seus próprios “especialistas”, horas antes de The Times e The Sunday Times começarem a imprimir os documentos. Meses mais tarde, eu estava passando pela redação do jornal em Londres no meu caminho de volta para Beirute, quando o editor internacional, Ivan Barnes, mostrou um despacho da Reuters, de Bonn. “Aha!” ele trovejou. “Os diários são falsificações!” O governo da Alemanha Ocidental havia provado que eles devem ter sido escritos muito depois da morte do Führer.

Então Barnes me mandou para o escritório do editor Charles Douglas-Home com a história da Reuters. Cheguei e encontrei Charles e Murdoch na sala. “Eles dizem que são falsificações, Charlie”, eu anunciei, tentando não olhar para Murdoch. Mas eu olhei quando ele reagiu. “É, lá vem você”, o magnata refletia com uma risadinha. “Quem não se aventura não ganha nada”. A despreocupação do homem estava quase funcionando. Grande História. Só tinha um problema. Não era verdade.

Política oficial

Estranhamente, ele nunca apareceu ser o ogro das trevas, cheio de maldade e veneno que tem sido pintado nos últimos dias. Talvez seja porque seus editores e subeditores e repórteres repetidamente adivinhassem o que Murdoch pensava. Murdoch era o proprietário do The Times, quando eu cobria a invasão e ocupação israelense encharcada de sangue no Líbano em 1982. Nem uma linha foi removida das minhas reportagens, não importando o quão críticos a Israel fossem os textos.

Após a invasão, Douglas-Home e Murdoch foram convidados pelos israelenses a fazer uma viagem de helicóptero militar no Líbano. Os israelenses tentaram desqualificar as minhas reportagens. Douglas-Home disse ter me defendido. No voo de volta a Londres, Douglas-Home e Murdoch se sentaram juntos. “Eu sabia que Rupert estava interessado no que eu estava escrevendo”, disse mais tarde. “Ele meio que esperou por mim para dizer-lhe o que era, embora ele não estivesse exigindo. Eu não mostrei a ele.”

Mas as coisas mudaram. Antes de ser editor, Douglas-Home escrevia para a revista de língua árabe Al-Majella, muitas vezes com um ponto de vista profundamente crítico de Israel. Seus editoriais no The Times passaram a emitir uma visão otimista da invasão israelense. Ele afirmou que “não há agora um palestino digno com quem o mundo possa dialogar” e – pelo amor de Deus – que “talvez, finalmente agora os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza deixem de lado esperanças de que pirotecnias de gente como Arafat possam resgatá-los milagrosamente de fazer negócios com os israelenses.”

Tudo isso, claro, era a política oficial do governo israelense na época.

“Homem do ano”

Então, na primavera de 1983, outra mudança. Eu havia, com pleno consentimento de Douglas-Home, passado meses investigando a morte de sete prisioneiros palestinos e libaneses em Sidon. Era óbvio, eu concluí, que os homens haviam sido assassinados – o coveiro até me disse que os cadáveres tinham sido trazidos para ele com as mãos amarradas atrás das costas, mostrando marcas de hematomas. Mas agora Douglas-Home não via “justificativas” para uma reportagem “tanto tempo depois do evento”.

Em outras palavras, o próprio sistema do jornalismo investigativo – checagem de fatos e meses de entrevistas – tornou-se autodestrutivo. Quando chegamos aos fatos, muito tempo havia se passado para imprimi-los. Pedi aos israelenses se eles iriam realizar um inquérito militar e, ansiosos para mostrar o quão humanitários eram, eles me disseram que haveria uma investigação oficial. O “inquérito” de Israel foi, eu suspeitava, uma ficção. Mas era o suficiente para “justificar” publicar minha longa e detalhada reportagem. Contanto que os israelenses se passassem por mocinhos, as preocupações Douglas-Home se dissipariam.

Quando ele morreu de câncer foi anunciado que o seu vice, Charles Wilson, editaria o jornal. Murdoch disse que Wilson era “a escolha de Charlie” e eu pensei que estava tudo muito bem – até que eu conversei com a viúva de Charlie, e ela me disse que era a primeira vez que ela tinha ouvido falar que a escolha de Wilson tinha sido decisão de seu falecido marido. Todos nós sabíamos que Murdoch havia se comprometido com garantias de independência editorial quando ele comprou o The Times – e então demitiu seu primeiro editor, Harold Evans. Ele iria lidar com os sindicalistas mais tarde.

Charles Wilson – que mais tarde tornou-se, brevemente, o editor do The Independent – era um homem duro e amistoso, que poderia mostrar grande bondade, assim como aspereza, para sua equipe. Ele foi gentil comigo também. Mas uma vez, quando eu estava visitando Wilson em Londres, Murdoch entrou em seu escritório. “Olá, Robert!”, Murdoch cumprimentou-me, antes de conversar com Wilson. E, depois que ele saiu, Wilson me disse em voz baixa: “Viu como ele te chamou pelo seu primeiro nome?” Isso foi engraçado. Como o sorriso de Assad ou o “Sir” do Rei Hussein. Não significava nada. Murdoch estava brincando com seus ministros e membros da corte.

Um sinal de alerta. Ainda na zona oeste de Beirute, onde dezenas de ocidentais estavam sendo sequestrados, abri o The Times para encontrar um escritor pró-Israel reivindicando, em nossa página de centro, que todos os jornalistas na zona oeste de Beirute, claramente intimidados pelo “terrorismo”, deveriam ser considerados apenas “sanguessugas”. Estaria o jornal alegando que eu também era um sanguessuga? Nesse tempo todo, Murdoch havia expressado exclusivamente pontos de vista pró-Israel, e aceitado um “Homem do Ano” de uma proeminente organização judaica-norte-americana. Os editoriais do Times tornaram-se mais e mais pró-Israel, o uso da palavra “terrorista” cada vez mais promíscuo.

Mundo estéril

O fim chegou para mim quando eu voei para Dubai em 1988, após um Vincennes dos EUA ter derrubado um avião de passageiros iraniano sobre o Golfo. Em 24 horas, eu tinha falado controladores de tráfego aéreo britânicos em Dubai, e descobri que os navios dos EUA tinham rotineiramente ameaçado aviões da British Airways, e que a tripulação do Vincennes parecia ter entrado em pânico. A redação me disse que a reportagem seria capa. Eu avisei a eles que eram mentiras os “vazamentos” dos americanos de que o piloto da IranAir estava tentando jogar seu avião sobre os Vincennes. Eles concordaram.

No dia seguinte, o meu texto apareceu com todas as críticas aos americanos cortadas, com todas as minhas fontes ignoradas. O The Times chegou a publicar um editorial sugerindo que o piloto era realmente um suicida. Mais tarde, um relatório oficial dos EUA e testemunhos de oficiais navais dos EUA provaram que minha reportagem estava correta. Exceto que os leitores de The Times não foram autorizados a vê-la. Isto foi quando eu fiz contato com The Independent. Eu não acreditava mais no The Times – certamente não em Rupert Murdoch.

Meses depois, um editor sênior que estava de plantão na noite em que minha reportagem sobre o Vincennes chegou à redação, lembrou em uma carta que ele havia colocado minha reportagem na capa e que Wilson dissera: “Não há nada nisso aí. Não há um fato sequer. Eu nem mesmo rodaria essa besteira”. Wilson, o editor da noite disse, chamou de “porcaria” e “bobagem”. O diário do editor da noite naquele dia finalizou assim: “Caos na história do Golfo. [George] Brock [editor de Internacional] reescreve Fisk”.

A boa notícia: poucos meses depois, eu era correspondente no Oriente Médio para o The Independent. A má notícia: eu não acredito, pessoalmente, que Murdoch tenha interferido em nenhum dos eventos acima. Ele não precisava. Ele tinha transformado o The Times em um jornal manso, pró-Conservadores, pró-Israel e despojado de toda sua independência editorial. Se eu não tivesse vivido no Oriente Médio, é claro, poderia ter me levado mais tempo para entender tudo isso.

Mas eu trabalhei em uma região onde quase todos os jornalistas árabes sabem da importância da autocensura – ou censura direta – e onde os reis e ditadores não precisam de dar ordens. Eles têm sátrapas e os ministros e altos funcionários da polícia – e governos “democráticos” – que conhecem os seus desejos, seus gostos e desgostos. E eles fazem o que eles acreditam que seu mestre quer. Claro, todos eles me disseram que aquilo não era verdade e afirmaram que seu rei/presidente estava sempre certo.

Nestas últimas duas semanas, estive pensando em como era trabalhar para Murdoch, o que estava errado sobre isso, sobre o uso do poder por procuração. Para que Murdoch nunca pudesse ser responsabilizado. Murdoch foi mais califa do que nunca, não é mais responsável por um editorial ou uma “notícia” do que um presidente da Síria é por um massacre – este último seria realizado sob as ordens de governadores que sempre poderiam ser julgados ou demitidos ou expulsos – e o líder invariavelmente ungiria seu filho como sucessor. Pense em Hafez e Bashar Assad ou Hosni Mubarak e Gamal ou Rupert e James. No Oriente Médio, jornalistas árabes sabiam o que seus donos queriam, e ajudaram a criar um deserto jornalístico, sem a água de liberdade, uma versão totalmente distorcida da realidade. Assim, também, dentro do império Murdoch.

No mundo estéril dos Murdoch, novas tecnologias foram utilizadas para privar o povo da sua liberdade de expressão e privacidade. No mundo árabe, potentados sobreviventes não tiveram problemas na nomeação de primeiros-ministros. Quem não se aventura não ganha nada.

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[RobertFisk é repórter do The Independent]

 

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