Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pouco jornalismo em reportagens enviesadas

O quinto ato convocado pelo Movimento Passe Livre contra o aumento das tarifas do transporte público em São Paulo começou tenso e acabou com repressão violenta da Polícia Militar. Novamente.

Novamente, também, as críticas à péssima cobertura midiática que repetem o ciclo de junho de 2013. Na época, a mídia se colocou francamente ao lado da repressão policial, do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad e contra os manifestantes que exigiam a redução das tarifas do transporte público (ou mesmo sua extinção, pauta principal do MPL – Movimento Passe Livre).

Repressão a protestos de rua em São Paulo / Foto Wikimedia / CC

Repressão a protestos de rua em São Paulo / Foto Wikimedia / CC

Após a escalada de violência não apenas contra manifestantes, mas também contra jornalistas (que chegaram a ser alvos preferenciais da PM, com ao menos um fotógrafo sendo cegado pelas balas de borracha usadas e outra que, por sorte, se viu atingida no olho, mas não perdeu a visão), a mídia passou a criticar a repressão policial e até mesmo a simpatizar com as pautas populares. Os protestos acabaram sendo os maiores que o país jamais tinha visto, com milhões de pessoas nas ruas apoiando a pauta da Tarifa Zero – dentre outras.

Agora, em 2016, o MPL voltou novamente às ruas e os atores são os mesmos. Fernando Haddad e Geraldo Alckmin promovem a violência, ao passo que a mídia vende o discurso de que quem está nas ruas são “vândalos” irascíveis que querem “sequestrar” a cidade. E, como em 2013, a mídia começa a pagar o preço pelo seu apoio à repressão.

Durante o ato de 12 de janeiro, a cobertura da GloboNews se destacou pelo absurdo. Seus jornalistas estavam nas ruas e se revezaram na cobertura, mas em vários momentos buscaram espécies de “desculpas” para a repressão, justificando bombas e balas diante de pessoas desarmadas em fuga, chamando de “invasão” quando um grupo de manifestantes entrou na área comum de um prédio para fugir da violência ou mesmo justificando agressões contra manifestantes acuados que jogavam pedras para tentar sair de onde estavam sem ferimentos graves.

“Característica de contextos autoritários”

Em dado momento bombas foram jogadas contra a própria equipe da GloboNews, que não tremeu: a PM estava correta.

Protestar é um direito. É preciso deixar isto claro, antes de mais nada. E a polícia impediu sistematicamente centenas de manifestantes de exercer este direito. Impediu até mesmo a chegada de muitos, ao isolar a região da paulista e fechar ruas para… evitar que os manifestantes fechassem as ruas. A cada nova tentativa de se agrupar após mais uma onda de repressão, mais repressão. E mais defesa entusiasmada dos jornalistas que cobriam a manifestação para o canal por assinatura da Rede Globo. Permitir que o protesto seguisse (ou começasse) era inaceitável.

Na ausência de vidraças quebradas – pese o secretário de Segurança de São Paulo ter dito em coletiva que “vândalos” teriam atacado o Instituto Cervantes, quando na verdade estes buscavam se refugiar na instituição das bombas da polícia –, a criminalização seguiu pela escolha cuidadosa de palavras.

Durante o protesto do dia 20 de janeiro, mais um show de cobertura vergonhosa. Tão vergonhosa que até a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) foi forçada a se manifestar:

Violência contra jornalistas em protestos de rua em São Paulo / Foto Wikimedia

Violência contra jornalistas em protestos de rua em São Paulo / Foto Wikimedia

“Repórteres e fotógrafos foram novamente agredidos pela Polícia Militar (PM) durante ação contra manifestantes concentrados na Praça da República, em São Paulo, na noite dessa quinta-feira (21 de janeiro de 2016). A Abraji identificou sete profissionais vítimas da ação policial. Com os novos registros, sobe para 21 o total de vítimas: 17 agredidos e quatro constrangidos durante a cobertura. Imagens registradas por câmeras de celulares e equipes de televisão mostram que, mesmo identificados, repórteres foram alvo de golpes de cassetete, empurrões, bombas e balas de borracha.

O papel das forças de segurança é proteger cidadãos e garantir o direito de a imprensa trabalhar. Agressões de policiais contra jornalistas durante o exercício de suas atividades são características de contextos autoritários e inaceitáveis em regime democrático. A Abraji comunicará as novas agressões à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Espera que os abusos sejam apurados e, os responsáveis, punidos por esses atos.

A PM já havia ferido 12 repórteres e intimidado outros dois nos protestos de 2016. A Abraji se manifestou pela primeira vez após as agressões de 12 de janeiro. Dois dias depois, a PM agrediu outros quatro jornalistas.”

Muito press release e pouco ou nenhum jornalismo

O uso de termos como “confronto”, quando claramente apenas um dos lados agride enquanto o outro foge, beira o grotesco. A grande mídia se especializou ainda no uso do termo “reagir”, para justificar o uso de armas potencialmente letais contra ativistas desarmados que cometiam o crime de querer se manifestar livremente. A PM “queria o fim do ato”, foi a frase escolhida pela BBC para justificar a repressão, afinal, a Polícia Militar tem o direito de impedir o livre exercício de um direito constitucional. A ativista e jornalista Helena Palmquist desabafou no Twitter:

“Corre-corre, confusão, tumulto, confronto. Palavras do marketing. Em jornalismo isso se chama repressão violenta. E não tem justificativa.”

Ao passo que o professor Pablo Ortellado anunciou em seu Facebook o cancelamento de sua assinatura da Folha de S.Paulo:

“Mesmo tendo dois jornalistas humilhados pela Choque e um fotógrafo ferido, a cobertura da Folha foi porca. A manifestação não terminou com um massacre, mas ‘em confusão’, o trajeto da PM não foi imposto mas foi ‘proposto’. A repressão da PM, para a Folha, teria começado com o arremesso de garrafas que não existiram em nenhum depoimento ou na cobertura de qualquer outro veículo. O caráter ridículo do pretexto da PM de que a determinação arbitrária de um trajeto se deveria à coincidência do ato do MPL com o ato dos motoristas de vans que tinha acabado *horas antes* não é mencionado. As dezenas de feridos e os abusos flagrantes (que não aqueles cometidos contra os seus jornalistas) também não aparecem no texto. O desrespeito à liberdade de manifestação, assegurada constitucionalmente, parece que não ocorreu. Quando a Folha toma uma postura editorial, como a que tomou ao defender o aumento das passagens, pode esperar que a reportagem vai ser uma droga. Não é a toa que ela está contratando um a um os colunistas da Veja. Seu jornalismo está ficando do mesmo nível.”

A mesma Folha de S.Paulo teve seus jornalistas revistados com truculência por “atitude suspeita” em frente à sede da empresa no dia do mesmo protesto.

A pergunta que fica é porque os jornalistas de grandes veículos de mídia se submetem e se prestam, em conjunto, a deturpar manifestações e a reproduzir discursos que acabam por vitimizar os próprios jornalistas. A função do jornalismo é o de informar, não o de fabricar discursos e realidades para agradar aos patrões.

Ou seja, o que vemos hoje em dia na grande mídia brasileira é muito press release favorável à Polícia Militar e pouco ou nenhum jornalismo. Por sorte ainda contamos com veículos como a Agência Democratize, coletivo Território Livre, TV Drone (cujo fotógrafo foi ferido por estilhaços de uma bomba jogada pela PM), Correio da Cidadania, Global Voices Online, Centro de Mídia Independente (cujo midialivrista, que também transmite ao vivo por streaming as manifestações, chegou a ser agredido pela polícia repetidas vezes) que fazem o trabalho jornalístico básico, abandonado por Globo, Folha, GloboNews, Estadão etc.

***

Raphael Tsavkko García é doutorando em Direitos Humanos e mestre em Comunicação