Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Prisões, demissões e envenenamentos

A tragédia na escola de Beslan, que resultou na morte de mais de 350 adultos e crianças, revelou também um alarmante problema presente na sociedade russa: a falta de liberdade de imprensa. Segundo organizações internacionais de defesa da liberdade de imprensa, o governo do presidente Vladimir Putin exerce um controle ferrenho sobre o conteúdo veiculado pela mídia no país. Críticas ao governo são praticamente proibidas, assim como a abordagem de certos assuntos. A crise com a Chechênia seria considerado o maior tabu. E os veículos mais vigiados são as emissoras de televisão, na maioria controladas pelo próprio governo.

As TVs russas foram cautelosas na cobertura do seqüestro da escola de Beslan. Como o assunto não podia ser completamente ignorado, as emissoras evitaram pelo menos criticar as ações do governo diante da crise. Quem criticou – ou poderia criticar – a situação sofreu alguma conseqüência. Jornalistas foram demitidos, detidos em aeroportos a caminho do cenário do massacre e, suspeita-se, até envenenados.

Teoria da conspiração

A repórter Anna Politkovskaya, do jornal moscovita Novaya Gazeta, sofreu infecção intestinal aguda e desidratação após beber um chá no avião a caminho da Ossétia do Norte. Anna havia levado sua própria comida para a viagem e tomou apenas o chá servido durante o vôo. Desmaiou 10 minutos depois e foi internada em um hospital, tão logo o avião aterrisou.

A jornalista estava indo a Beslan não apenas para cobrir os eventos, mas também para tentar negociar com os terroristas. Há dois anos, ela negociou com os seqüestradores chechenos de um teatro em Moscou, e desta vez estava disposta a se oferecer para fazer o mesmo. Conhecida e respeitada em seu país, Anna é uma crítica contumaz do governo – especialmente na questão da Chechênia. As autoridades russas não comentaram o caso de possível envenenamento da repórter, mas o jornal em que trabalha irá prestar queixa para que o caso seja investigado.

Uma outra jornalista afirmou também ter sido envenenada. Nana Lezhava, da emissora independente Rustavi-2, da Geórgia, foi detida pelas autoridades russas junto com seu cinegrafista, Levan Tetvadze. Os dois foram acusados de não ter o visto para entrar no país e foram levados para a cadeia, impedidos de cobrir o massacre em Beslan. Nana afirma que dormiu por 24 horas depois de tomar uma xícara de café colocada por policiais em sua cela, e que acordou sentindo fraqueza. Testes de urina solicitados pela emissora revelaram traços de tranqüilizante em seu organismo. Os dois jornalistas foram liberados depois que o presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, entrou em contato com Putin.

Cena de cinema

Além dos jornalistas da Geórgia, outros dois repórteres foram detidos ao tentar cobrir o massacre. Andrei Babitsky, correspondente da Radio Liberty, fundada pelos EUA, foi detido no aeroporto de Moscou sob suspeita de que estaria carregando explosivos. Após ter sua bagagem inspecionada e de nenhum explosivo ter sido encontrado, Babitsky ainda foi provocado para uma briga por dois homens – que depois teriam admitido ser seguranças do aeroporto que teriam recebido ordens para arrumar confusão com o jornalista. Depois de tantos contratempos, o correspondente não pôde viajar a Beslan. Além dele, o chefe do escritório de Moscou da rede de TV al-Arabiya também foi detido no aeroporto quando tentava pegar um avião para a Ossétia do Norte.

Imprensa prejudicada

As manobras que impediram diversos jornalistas de chegar a Beslan são dignas de uma teoria da conspiração, mas não puderam ser completamente comprovadas. Por isso, os casos podem ser considerados coincidências. O governo não usou armas de censura formal para calar a imprensa. Um dos editores do Novaya Gazeta, Sergei Sokolov, disse que o jornal não sofreu nenhum tipo de pressão governamental para mudar sua linha editorial nos últimos dias. Mesmo assim, Sokolov conta que alguns jornais russos começaram a praticar uma espécie de autocensura no caso da cobertura da questão chechena.

O exemplo de maior destaque é o do jornal Izvestiya, que demitiu o editor Raf Shakirov na semana passada. Acionistas do jornal reclamaram da cobertura comandada por Shakirov no fim de semana após o massacre, que contou com a publicação de grandes fotos de reféns feridos e mortos. Formalmente, Shakirov teria pedido demissão, mas ele afirmou à agência de notícias Reuters que foi obrigado a deixar o posto no jornal. ‘Não tenho desejo de fazer isso. Mas não há outra alternativa’, disse.

Credibilidade baixa

Com tanta confusão, a maior prejudicada é a sociedade russa. Seja pela informação que a ela nunca chega, seja pela falta de credibilidade da imprensa. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, há uma total desinformação sobre o que se passa na Chechênia, já que os cidadãos russos não recebem muitas informações independentes e completas. E, quando as recebem, não sabem distinguir sua natureza. Uma pesquisa divulgada na semana passada pelo Independent Analytical Centre, de São Petesburgo, mostrou que apenas 13% dos russos acreditam nas notícias que a imprensa divulgou sobre a tragédia de Beslan. Com informações de Beth Gardiner [AP, 7/9/04], Claire Cozens [The Guardian, 7/9 e 10/9/04] e Reuters [6/9/04].