Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Repórteres fustigam presidente mexicano

Em meio as ásperas, cruéis e não poucas vezes gozadoras críticas da oposição, das pressões abertas e nos últimos tempos contínuas, atrevidas, do embaixador americano Tony Garza, exigindo maior vigor no combate ao narcotráfico e um controle mais eficaz da segurança fronteiriça – além do penoso espetáculo de ver sua mulher, Marta Sahagún, depondo em tribunais –, o presidente mexicano Vicente Fox bem poderia telefonar a Brasília e trocar algumas palavras de consolo recíproco com o colega e amigo Luiz Inácio Lula da Silva.


Talvez até o aconselhasse, escorado na habilidade técnica de sua equipe (jornalistas, publicitários e relações públicas), como amenizar os sacolejões da forte turbulência gerada por escândalos captados em vídeos, livros, matérias investigativas na imprensa, de segunda a domingo. E bota turbulência nisso! (A edição de segunda-feira (8/8) da combativa e respeitada revista semanal Proceso traz na capa uma chamada inquietante: ‘Los fondos ocultos de Fox’).


Saberia Lula que o recurso recomendado pelos ‘comunicólogos’ de Fox são spots na TV e no rádio, de 20 segundos, falando diretamente com o que ele chama de ‘mis electores, los mexicanos y las mexicanas’. Em pé, terno e gravata escuros, olhando direto para a câmera, ‘lábaro patrio’ ao fundo, ele recita, no seu jeitão coloquial, um texto mais ou menos do seguinte teor:




‘Muitos de vocês acham que o presidente da República manda nos deputados e senadores. De fato, antes era assim. Contudo, depois que vocês me elegeram em 2000, isso mudou, pois eu acredito nos valores democráticos e, dentro deles, na mais absoluta liberdade de expressão e opinião. É verdade: comportar-me assim dá mais mão-de-obra para mim, mas vou morrer na raia, daí ninguém me tira. Esse é o meu estilo de governar.’


(Poucos poderiam, realmente, negar esse mérito a Fox, o de vir batalhando pela democratização plena do México, erros e desvios graves à parte, incluindo a perseguição e assassinato de jornalistas no país, fenômeno sinistro que não tem conseguido debelar.)


Não é com ‘nóis’


Fora do espaço televisivo, Fox, encurralado pelos repórteres políticos em suas viagens pelo México, também se mostra lacônico e evasivo, no máximo reconhecendo que, ‘como qualquer ser humano, não gosto das críticas’. Por elas se sente afetado, mas esse é o preço a pagar por suas posições e decisões no comando do país. Nenhuma menção explícita aos ataques e seus perpetradores.


A primeira-dama, Marta, conhecida nos bastidores por sua personalidade durona, mão-de-ferro, é algo mais direta: ‘Quem não quer ser apontado ou criticado, que fique em casa. Mas as calúnias, difamações e mentiras machucam, sem dúvida…’


Num resumo das duas técnicas retóricas de se explicar à opinião pública, o porta-voz presidencial Rubén Aguilar garante que a aparição recente de livros questionando ‘sem fundamento a honradez inquebrantável do presidente e família são parte de uma ‘estratégia política’ para desprestigiar o primeiro mandatário’.


Pode até ter certa razão. Afinal, o México entra em cheio, em 2006, numa acirrada campanha presidencial e o partido de Fox, o conservador PAN, corre riscos, já não tão remotos, de ter que devolver o trono ao dinossáurico PRI ou, mais provável, para o PRD, de esquerda moderada, liderado pelo político de trajetória mais fulgurante em épocas recentes, o agora ex-governador da capital mexicana, o verbalmente desarticulado mas competente populista e hábil manipulador de massas Andrés Manuel López Obrador.


No ar, porém, paira um cheiro meio azedo. O que omitem, nesses arredios testemunhos na base do ‘isso não é comigo’, tanto o presidente como sua mulher? E por que o porta-voz, normalmente controlado, malandro velho que é, mostra-se indócil quando os jornalistas que cobrem a Presidência insistem em obter mais detalhes dos rumores que colocam Fox e Marta nessa tremenda saia-justa, cheia de furos e remendada com suspeitas por todo lado?


Nas últimas duas semanas, o motivo desse mal-estar na residência oficial de Los Pinos, ao sul da cidade, é um novo livro sobre os ‘malos manejos’ do dinheiro dos contribuintes por parte do presidente e sua mulher, apurado e escrito por duas jovens jornalistas mexicanas – Anabel Hernández, do El Universal e Arelí Quintero, do Diario Monitor. O título é La Familia Presidencial. El gobierno del cambio bajo sospecha de corrupción (271 pp., Grijalbo, México, 2005; 219 pesos, cerca de 20 dólares).


A obra, com oito capítulos, tiragem inicial de 25 mil exemplares, bem procurada nas boas livrarias da Cidade do México, surge na esteira incômoda e inoportuna dos dois livros anteriores da jornalista argentina Olga Wornat, em cima dos supostos mandos e desmandos de Marta Sahagún e seus três filhos do primeiro casamento, acusados de tráfico de influências e rápido enriquecimento – graças, por assim dizer, ao acesso materno ao poder. Havia ainda insinuações sobre a separação religiosa de Marta, católica fervorosa, obtida por conta de pistolões nas altas esferas do Vaticano.


O segundo livro, Crónicas Malditas, também da editora Grijalbo, espertíssima na promoção de seu catálogo, é o que tem feito maiores estragos na reputação de Marta – obviamente, ventilador ligado, sobrando para o marido presidente.


Por causa desse segundo livro da jornalista argentina, Marta tascou-lhe um processo por injúria, calúnia e difamação e, na sexta-feira (5/8), viu-se obrigada, educada primeira-dama que é, a uma acareação de cinco horas com a tenaz e meio despachadona inimiga portenha. (Na verdade, conforme as fotos, uma de costas para a outra e apoiadas por seus advogados.)


Marta defendeu-se sob o argumento de que fora atingida em sua dignidade, tendo violada também sua privacidade. A acusada respondeu que ‘Marta é uma pessoa que vive do erário público e, portanto, é pública’. Nem pensar num acordo legal ou qualquer tipo de reconciliação pessoal. O processo vai continuar, dispensando a presença das duas señoras, representadas daqui em diante por seus advogados.


Allá en el Rancho Grande


Num país onde é baixíssimo o nível de leitura (1,2 livros por ano lê o cidadão médio) e grande a indiferença e até mesmo o repúdio do povão aos políticos e a política, o livro das repórteres mexicanas não teria uma repercussão polêmica se não fosse convertido em capa (e mais 32 páginas internas) de Proceso, com fotos e documentos do bate-perna investigativo das duas jornalistas. E, é claro, pegando uma bela carona nos aspectos amarillistas (sensacionalistas) da acareação entre a mulher do presidente e a estrangeira fofoqueira.


A revista, que saiu no domingo (31/7), e logo na manhã de segunda-feira já se esgotara, publicava trechos do livro, descrevendo, entre outras cositas calientes, as compras compulsivas de roupas da primeira-dama, além dos enormes gastos que o próprio Fox fez não só em seu rancho San Cristóbal, como em outro, mais escondido, onde passa os fins de semana montando a cavalo e descansando das agruras do poder. Tudo isso, segundo as denúncias, com grana tirada do orçamento federal.


Acontece que esse refúgio até então secreto, e predileto do presidente mexicano, de 300 hectares, que vem sendo, desde sua posse, remodelado ao seu gosto, com todas as comodidades modernas, pois ali sonha morar quando se aposentar, não consta de sua declaração patrimonial.


Me dá um Chanel aí


O escândalo dos gastos de vestuário de Marta já vinha sendo observado e criticado por deputadas e senadoras da oposição – que, estridentes, exigiam uma prestação de contas imediata e rigorosa. Com a publicação do livro, a pressão aumentou e a primeira-dama, num gesto teatral, doou seu guarda-roupa de grife, usado, para ser leiloado pela Associação Mexicana de Ajuda as Crianças com Câncer. Os resultados foram patéticos: das 28 peças leiloadas, que renderiam por volta de 20 mil dólares, só se venderam quatro, num total de 1.200 dólares. Encalharam,. entre outros trapinhos caríssimos, um vestido Chanel, um Armani e um conjuntinho Escada.


Experientes, as duas jornalistas evitaram, dentro do possível, num período de três anos, correr os riscos de serem acusadas – como estão sendo, aliás – de distorcer os dados levantados em arquivos públicos ou tergiversar as informações apuradas em centenas de entrevistas, muitas delas on the record, além do farto e nítido material fotográfico apresentado, que não deixa dúvidas até mesmo nos mais céticos analistas da vida política mexicana.


Um dos trechos mais comprometedores do livro, por exemplo, são as declarações ipsis litteris do ex-marido de Marta, Manuel Bribiesca, próspero dentista de interior, quanto aos negócios para lá de suspeitos de seus três filhos, sobretudo o mais velho, Manuel: ‘Se meus filhos não aproveitam as relações que têm agora, por ser quem são, seriam uns trouxas’.


Os outros filhos da família presidencial, incluindo o primogênito de Fox, Vicente Júnior, e os irmãos do presidente também são mencionados no livro de forma pouco abonadora.


Um dos mais agudos críticos de Fox, o jornalista Jorge Zepeda Patterson, do jornal El Universal, em seu artigo de domingo (7/8), comentando alguns escorregões no tratamento das informações apuradas pelas duas jornalistas, termina o texto de forma sóbria:




‘Considero a Fox como um chefe de Estado com muitas limitações, mas também acredito que é uma pessoa honesta (ou menos corrupta) que a classe política tradicional. Por isso é que este livro dá conta de uma história trágica, triste: o poder absoluto termina por corromper e a única maneira de evitar isso é abrir os expedientes e colocar os poderosos sob a lupa da opinião pública. Este livro, com todas suas limitações, é um passo nessa direção’.


Seja como for, os mexicanos, como os brasileiros, aguardam agora, entre bocejos de monotonia ou palavrões de perplexidade, os próximos capítulos das emocionantes vidas e principescos confortos presidenciais.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México