Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Segue o tango em Buenos Aires

Destaque na edição de sexta-feira (23/9) da Folha de S.Paulo, a notícia de que a Justiça da Argentina está prestes a quebrar o princípio do sigilo da fonte jornalística tem potencial para levantar uma polêmica de grandes proporções.

Em decisão ligada a um processo movido pelo governo de Cristina Kirchner por intermédio do secretário de Comércio Interior, um juiz acaba de determinar aos principais jornais do país que informem os dados pessoais de todos os jornalistas que escreveram sobre índices de inflação desde 2006. Os jornais devem fornecer nomes, endereços, telefones e listas de contatos dos editores e redatores que tenham se dedicado ao tema nesse período.

A determinação judicial faz parte de uma disputa entre o governo e um grupo de economistas e consultorias que elaboram índices de preços paralelamente aos do Indec – Instituto Nacional de Estadística y Censos –, uma espécie de IBGE da Argentina.

Indicadores paralelos

Parte da imprensa tradicional do país vizinho acusa o governo de vir manipulando os índices de inflação desde 2007, quando o Indec foi reformulado e os métodos de cálculo de preços foram alterados. Segundo os indicadores oficiais, a inflação na Argentina gira em torno de 9% ao ano. De acordo com os cálculos divulgados pela imprensa em geral com base em consultorias privadas, a inflação anual seria em média de 25%.

Autoridades federais passaram a investigar algumas dessas consultorias, acusando-as de atuar com motivação política e por interesse em desestabilizar a economia do país. Desde o começo deste ano, segundo a reportagem da Folha, oito consultorias já foram multadas por infrações variadas. Elas são acusadas geralmente de cometer “fraudes do comércio e indústria” ao publicar índices sem metodologia científica.

Uma fonte do Judiciário citada pelo jornal afirma que o pedido de fornecimento de dados pessoais tem o objetivo de ouvir os jornalistas que publicam esses índices na qualidade de testemunhas, não como réus.

No entanto, os dirigentes de jornais entendem que os jornalistas podem acabar sendo indiciados por cumplicidade na divulgação de indicadores paralelos, se a Justiça considerar que há motivação criminosa na ação das consultorias.

Quando um não quer, dois não brigam

Assim como no Brasil, o sigilo da fonte de informação jornalística é garantido pela Constituição da Argentina. Além disso, faz parte da polêmica o fato de que as fontes dos índices paralelos de preços são citadas nas reportagens, o que aumenta a percepção de que a medida judicial tem um propósito de intimidação sobre a imprensa.

A inflação é uma das principais fragilidades do governo Kirchner e uma das maiores preocupações da população, segundo pesquisas de opinião pública. Mas as prévias eleitorais indicam também que Cristina Kirchner segue liderando as preferências para a disputa presidencial do dia 23 de outubro, observa a Folha de S.Paulo.

O embate entre o governo e a imprensa argentina tem em muitos casos alguma semelhança com o que foi a relação tempestuosa da imprensa brasileira tradicional com o governo do ex-presidente Lula da Silva. Mas, como diz a velha canção americana, “são necessárias duas pessoas para o tango” e a diferença é que, no caso brasileiro, o governo não usou os poderes do Estado para retaliar a imprensa.

A única iniciativa do governo Lula nesse sentido, nunca concretizada, foi a proposta de regulamentar o controle da concentração da propriedade dos meios de comunicação. Ainda assim, Lula segue sendo demonizado pela chamada grande imprensa, nove meses depois de haver deixado o poder.

No caso da Argentina, conforme lembra a Folha, a crise entre imprensa e governo começou ainda no mandato do ex-presidente Néstor Kirchner, que logo ao assumir passou a enfrentar a oposição declarada do jornal La Nación.

A sequência de divergências chegou a um ponto de paroxismo em 2008, quando o governo, já conduzido por Cristina Kirchner como sucessora do marido, propôs a nova Lei de Servicios Audiovisuales, que limita a participação de empresas privadas no setor de radiodifusão.

Em seguida, o governo golpeou principalmente as emissoras e a empresa de TV a cabo pertencentes ao grupo que edita o diário Clarín  ao firmar contrato com a Associação do Futebol Argentino para transmitir as partidas dos torneios nacionais.

No Brasil, as escaramuças recentes entre imprensa e governo nunca chegaram a esse ponto, pelo menos pelo lado do governo. Mas há um potencial de conflito entre o jornal O Estado de S.Paulo e setores do Judiciário.