Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre o direito e o risco de informar

Foram 157 dias de cativeiro no Iraque e de mobilização nacional na França. Desde que a jornalista Florence Aubenas e seu guia Hussein Hanoun Al-Saadi foram seqüestrados, em 5 de janeiro, a França começou o trabalho de bastidores, complexo e secreto, para conseguir a libertação que se deu sábado (11/6), em Bagdá, mas só foi divulgada em Paris na manhã de domingo, dia 12.

Florence Aubenas é considerada uma apaixonada por seu trabalho, uma repórter de campo que estabelece imediatamente uma relação de confiança com suas fontes. A jornalista trabalhou em Ruanda, Kosovo, Argélia, Afeganistão e Iraque, cobrindo guerras e conflitos de alto risco e é muito respeitada no meio jornalístico.

Na manhã de domingo, o presidente Jacques Chirac fez um discurso, transmitido ao vivo pela televisão, para saudar o fim do seqüestro, render homenagem a todos os que trabalharam na solução do caso e para lembrar de outros reféns que ainda estão em mãos de seus seqüestradores, como Ingrid Bettancourt. No fim do dia, Chirac foi pessoalmente receber Florence Aubenas num aeroporto militar perto de Paris.

O alívio e a alegria dos franceses, que se precipitaram para a TV para acompanhar a novidade ao vivo, só podem ser compreendidos por quem viu o país viver durante cinco meses ritmado por toda espécie de encontros e manifestações públicas de atores, cantores, políticos, dirigentes de empresas jornalísticas.

A associação Repórteres Sem Fronteiras esteve à frente de diversas iniciativas. Diariamente, em algum lugar da França, havia uma manifestação em favor da libertação de Florence e Hussein. O Libération, o jornal de Florence, participou de todo tipo de evento e publicava diariamente textos e cartas de apoio à campanha de libertação. O diretor do jornal, Serge July, esteve em todas as frentes – diplomáticas e midiáticas – para trazer sua enviada especial de volta à redação.

A libertação de Florence foi a manchete da segunda-feira (13/6) de todos os jornais franceses. Libération dedicou várias páginas à chegada da jornalista e fez uma completa retrospectiva do caso.

Diariamente, durante todo o tempo do cativeiro, os jornais de rádio e TV indicavam o número de dias de detenção de Florence e Hussein. Os jornais impressos publicaram diariamente a foto dos dois com o número de dias em que estavam desaparecidos. Os seqüestrados passaram a simbolizar o direito da imprensa a informar, a não se contentar com a cobertura de segunda mão ou com as informações oficiais. Alguns cartazes diziam: ‘Eles partiram por vocês. Voltarão graças a vocês’.

Ao chegar a Paris, Florence contou a única vez que os seqüestradores lhe permitiram ver televisão, o canal francês TV5. Ela viu uma manifestação em Paris por sua libertação e se sentiu fortalecida, mas ao mesmo tempo culpada por nunca ter participado desse tipo de mobilização.

Repórteres nos bunkers

Ir ou não cobrir a guerra do Iraque? Essa questão é onipresente na mídia francesa, seja em debates televisivos, nas rádios, nos jornais ou nas revistas. A maioria dos jornalistas defende o envio de correspondentes, mas há veículos jornalísticos que se retiraram do país por julgarem que não vale a pena o risco.

Em encontro com jornalistas logo depois do seqüestro de Florence e de seu guia, o presidente Chirac expressou sua opinião desfavorável a uma cobertura que ele classificou como ‘arriscada demais’. Ao declarar que o Iraque não oferece condições mínimas de segurança para o trabalho de correspondentes, Chirac foi muito criticado pela imprensa francesa, que não quer ser impedida nem por terroristas nem pelo bom senso do presidente de cobrir a guerra no Iraque.

Mas ninguém nega que o Iraque é arriscado. Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, 54 correspondentes e seus colaboradores foram mortos no país desde o início da guerra. A maioria dos jornalistas franceses pensa que cobrir essa guerra é garantir as liberdades democráticas. ‘Não pode haver democracia se não houver liberdade de imprensa’, disse Serge July, diretor de Libération. E acrescentou: ‘Mas se devemos mandar nossos correspondentes, temos de fazê-lo com muito mais precaução’.

O jornal fundado por Jean-Paul Sartre, em 1973, defende a cobertura do Iraque como um dever da imprensa mas pretende utilizar daqui para a frente a cautela dos anglo-saxões, que trabalham em verdadeiros bunkers em Bagdá, como mostrou recentemente uma reportagem especial feita no Iraque por uma das redes francesas. Talvez isso explique por que entre os últimos seqüestrados não há nenhum anglo-saxão. Os recentes seqüestros de jornalistas envolveram três franceses, a italiana Giuliana Sgrena e três romenos, todos libertados depois de muitos dias de negociação.

Questão de segurança

Na linha do presidente Chirac, a embaixada francesa em Bagdá chegou a enviar cartas aos jornalistas franceses que cobrem a guerra dizendo que todos devem se perguntar ‘se a liberdade e a preocupação de informar justificam um tamanho risco, assim como a gravidade das conseqüências que um eventual seqüestro implicaria para nosso país’. O texto diz que nada pode justificar o prosseguimento das atividades jornalísticas no Iraque.

O jornalista Christian Chesnot, que lançou há pouco mais de um mês Mémoires d’otages (Memórias de seqüestrados), escrito com o outro seqüestrado, Georges Malbrunot, contou na segunda-feira (13/6) que eles tiveram o cuidado de submeter o livro sobre o cativeiro de 120 dias a uma leitura do serviço de inteligência francês – para que nenhuma frase, nenhuma informação pudesse prejudicar Florence e Hussein, que se encontravam nas mãos de seqüestradores.

O iraquiano Hussein era guia e tradutor de Florence Aubenas. Ser acompanhante, tradutor e guia de jornalistas no Iraque virou uma profissão. Eles podem ser ex-funcionários do antigo regime e muitos possuem agendas e contatos extremamente úteis. Os franceses os chamam de fixeurs (do inglês, organizar, marcar) e americanos e japoneses os disputam a peso de ouro. Os jornais de todos os países que têm correspondentes no Iraque incluem o preço do fixeur nos custos da cobertura.

Um problema nebuloso que ficou depois da libertação de Christian Chesnot e de Georges Malbrunot, em dezembro passado, foi o pagamento ou não de resgate. As autoridades negam que qualquer tipo de resgate tenha sido pago nos dois casos. Depois de libertados, tanto Chesnot e Malbrunot quanto Florence passaram por um interrogatório-briefing dos serviços de segurança, que os ‘enquadrou’ para todo tipo de informação que pode vir a ter conseqüências futuras.

Bilhete premiado

Os seqüestrados calam todos os detalhes que possam prejudicar as investigações em curso para determinar quem são de fato os seqüestradores. No caso de Chesnot e Malbrunot, os seqüestradores reivindicaram imediatamente a ação e se identificaram como um grupo islamita que exigia a revogação da lei francesa contra o véu islâmico, aprovada pouco tempo antes.

No caso de Florence e Hussein, não houve identificação do grupo nem reivindicação política. Os boatos diziam que se tratava de um seqüestro com o único objetivo de arrecadar fundos para um grupo mafioso.

Prudentes e reservados, os diplomatas e políticos franceses guardam silêncio sobre o que sabem. Todos negaram o pagamento de resgate. Com que objetivo então os seqüestradores de Florence teriam agido, já que não divulgaram nenhuma exigência política?

Muitos comentaristas admitem que o governo francês não tem outra saída a não ser negar que tenha pago qualquer resgate. De outra forma, todos os franceses que se encontram no Iraque passariam a ser vistos como uma bilhete premiado por todos os tipos de gangues que povoam o caos iraquiano.

De todo modo, parte da história vai ser conhecida a partir desta terça-feira, quando Florence Aubenas dá uma entrevista coletiva na sede do Libération. A experiência que mudou sua vida para sempre será narrada em livro em breve, sem dúvida. Mas ninguém nunca saberá quanto o governo francês pagou pelos dois seqüestros.